Uma Homenagem ao Gigante Nicolau Sevcenko

Uma Homenagem ao Gigante Nicolau Sevcenko

É ainda sob um imenso impacto emocional que redijo estas singelas palavras, como um esforço tão particular quanto insuficiente para homenagear Nicolau Sevcenko – que ontem, tão súbita e precocemente, nos deixou rumo à eternidade aos 61 anos. Nós perdemos um dos pensadores mais importantes da história brasileira – não apenas de seu campo, com H maiúsculo, mas de toda a nossa intelectualidade. Do ponto de vista da reflexão crítica, seu desaparecimento tem o peso e o significado das passagens de um Celso Furtado ou de um Paulo Freire. Mas, essencialmente, perdemos a partir deste triste 13 de Agosto a oportunidade de conviver, de alguma forma, com um ser humano espetacular. Eu diria, sem o prejuízo da subjetividade, que Nicolau realizou como muito poucos a potência humana com todo o vigor capaz de ser apreendido.

Sevcenko era alguém cuja razão de ser, quase naturalmente, era pensar, agir – e estimular seus alunos e interlocutores – para fora da caixa. Filho de russos de origem ucraniana, o canhoto Nicolau nos contava – às vezes para, quase anedoticamente, justificar alguma confusão de raciocínio (que, para nós, jamais existia) – que, quando pequeno, prendiam sua mão esquerda nas costas com um barbante para forçá-lo a escrever com a direita. Tornou-se, então, ambidestro. Aliás, eu me recordo de uma vez em que contou a respeito dessa condição desenvolvida de forma sui generis e de sua paixão pelo Handebol – talvez, pouca gente saiba que ele e os irmãos foram alguns dos responsáveis por popularizar o esporte no Brasil, ainda em fins da década de 60. De alguma forma, o professor foi capaz de contornar essas dificuldades de aprendizagem de forma a produzir alguns dos percursos de pensamento e criação mais inovadores e transgressores da academia brasileira, sempre a partir de posicionamentos radicalmente anti-autoritários – combinando, por vezes, uma certa leitura psicanalítica com um marxismo altamente heterodoxo, ambidestramente, mas sempre orientado ao progressismo mais arejado.

Após se graduar em História pela FFLCH/USP, desenvolveu uma tese de doutorado absolutamente original tratando das tensões entre a produção literária e a realidade material no Brasil da virada do século XIX para o XX a partir de Euclides da Cunha e Lima Barreto. Na prática, sua linha investigativa abria um imenso flanco para a pesquisa capaz de apreender, na História Social brasileira, interpretações ricas e pujantes sobre os processos de modernização a partir das produções literárias. Em seu pós-doutorado em Londres, teve a oportunidade de conviver com o historiador Eric Hobsbawm, tendo produzido em seguida uma tese referencial a respeito do processo de efervescência tecnológico-cultural da São Paulo dos anos 20. Nicolau ainda foi responsável por fazer uma das melhores e mais conhecidas traduções de Alice no País das Maravilhas. Seu foco, no entanto, sempre esteve na análise das produções culturais, das buscas pela compreensão das transgressões sociais, pela contagem das histórias do ponto de vista dos oprimidos, notadamente a partir das experiências de reforma urbana – como tão brilhantemente fez em “A Revolta da Vacina”.

Nicolau tinha especial interesse por entender o papel da tecnologia no dimensionamento das experiências humanas, em especial em nossa época, particularmente marcada pela aceleração do tempo. Sua lucidez e sensibilidade permitiam com que redigisse ensaios e artigos com uma fluidez impressionante, sem jamais parecer com que fossem reflexões simplistas, muito pelo contrário. Eram sempre elaborações muito sólidas, e sempre partes de uma história aberta, que nos convidava necessariamente a não nos contentarmos com o que líamos: tratava-se invariavelmente de um convite a avançarmos em busca de novos conhecimentos e interpretações.

Foi na sala de aula, no entanto, que tive a oportunidade de conhecer, para além do acadêmico prolífico, o intelectual único, o docente magnífico e o ser humano tão sensivelmente especial. Assisti, por três anos, seus semestres como professor de História Contemporânea. Nunca uma aula foi igual à outra. Ainda que pudesse vir a abordar um tema mais de uma vez, jamais percorria uma mesma trajetória para explicitar seu raciocínio. Aliás, Nicolau também era especialmente inovador na estratégia que adotava para construir suas narrativas: tantas e tantas vezes partia de um objeto do dia-a-dia para produzir uma interpretação histórica multissecular e multidisciplinar. Quantos e quantos não aprenderam sobre o processo empírico de constituição do direito à propriedade a partir da história do arame farpado? Sobre o imperialismo e a contracultura, num esforço incrível de reflexão no interior de uma mesma explicação partindo-se de uma banana? Sobre o colonialismo, o aquecimento global e a globalização a partir do óleo de palma? Contando-se assim, parece que eram elocubrações bizarras, desconexas e superficiais, mas certamente não o eram. Não eram meras curiosidades, ou amenidades. Tratava-se de uma genialidade transgressora, pedagógica e metodologicamente, em ação.

E, ao mesmo tempo, poucos foram capazes de sensibilizar tantos e tantos, dada a forma com que as histórias e os relatos eram contados. Não há como não recordar e não se emocionar profundamente com aulas que traduziam, a partir das experiências humanas ricamente apresentadas, o horror da primeira revolução industrial, da primeira guerra mundial e da segregação racial norteamericana no pós-segunda guerra. Nunca mais irei me esquecer dele narrando a saída das tropas francesas, quase juvenis, para a morte, nos idos de 1916-7, observadas a partir de um silêncio mais do que sepulcral por parte de seus parentes, já posicionados como um cortejo fúnebre antes do tempo. Não há como não rejeitar, por exemplo, o belicismo a partir daí, e não há como não perceber a força emancipatória que uma compreensão sensível da História pode nos trazer. E foram várias e várias vezes que me emocionei, sinceramente, com suas aulas, com sua sensibilidade, com seu poder de explicação.

O carinho dos alunos por Nicolau é um demonstrativo da sua relevância secular para Universidade de São Paulo. Por várias vezes circulavam boatos – na época em que ainda frequentava a faculdade, em especial entre 2008-2010 – de que ele não mais daria aulas (de fato, ele se aposentou em 2012 e se tornou professor em Harvard). Por vezes, então, os alunos esperavam a abertura – nos sistemas internos – da disciplina por ele ministrada nos segundos semestres, e o número de inscrições chegava aos quatro dígitos: 1000, 1100 pessoas cadastradas para 80 vagas! Em certo ano, havia mais de 400 alunos tentando assistir à sua aula inaugural (eu era um deles). Centenas e centenas de carteiras eram posicionadas nos corredores – retiradas de outras salas que também estavam em aula. Obviamente quase ninguém que estivesse fora da sala (absolutamente lotada e abafada, dada a precariedade da ventilação no prédio dos Departamentos de História e Geografia) conseguia ouvir direito, mas todos queriam estar lá. Houve um ano (creio que em 2009) que chegaram a montar um telão do lado de fora, tamanha a popularidade de suas aulas. Quando o turno era encerrado, Nicolau não conseguia sair da sala: 30, 40, até 50 pessoas o circundavam. E ele atendia um a um, pacientemente – e, vez ou outra, pedia para que alguém lhe comprasse um salgado na lanchonete, quando se tornava absolutamente inviável que o fizesse (tantos outros iam lhe abordando nas rampas do prédio). Sempre, com muita humildade, agradecia os elogios que lhe eram feitos.

Nicolau foi meu maior referencial intelectual, e mais do que isso. Nunca conheci alguém que fosse tão capaz de fazer uma defesa ao mesmo tempo tão qualificada, vigorosa e sensível a respeito da necessidade, da possibilidade e da viabilidade da emancipação humana. Nunca vi alguém que soubesse tanto a respeito das aporias da humanidade e que fosse tão firme e consciente em sua visão positiva a respeito da potencialidade das pessoas. Nunca entrei em contato com qualquer pessoa que conseguisse despertar, em cada um de nós, um desejo tão ardente e profundo pela transformação social. Nicolau nos fazia nos sentirmos capazes, todos os dias, de mudar o mundo, com o melhor das nossas forças, com a mais verdadeira das nossas intenções. Por meio de suas aulas e reflexões, ele nos incentivava a questionar todos os lugares comuns, todas as obviedades e tudo aquilo que fosse visto como supra-histórico: o trabalho, a natureza humana, a opressão. E cada ensinamento era feito com uma singeleza ímpar, pois Sevcenko possuía um olhar radicamente democrático, horizontal, plural, anti-professoral. Ele era capaz de transformar as discussões mais irrisórias e os posicionamentos supostamente mais infelizes de um ou outro aluno em oportunidades épicas de aprendizado coletivo – como ocorreu, certa vez, em uma aula/seminário a respeito do modelo de educação da Comuna de Paris, que passou da meia-noite e que manteve em sala, extasiados, mais de 150 alunos. O querido professor nos ensinava a sermos radicais com o coração mais aberto do mundo.

Ainda que hoje eu me aventure no campo da gestão pública, todos os aprendizados que tive com Nicolau permanecem na ordem do dia. Foi por meio dele que entrei em contato com a obra de Walter Benjamin, que influencia todas as minhas produções intelectuais – e, na medida do possível, minha práxis. Foi a partir dele que compreendi que são a sensibilidade e seus efeitos na experiência humana os motores essenciais da História, e que são por meio deles que devemos trabalhar a emancipação. Aliás, é por isso que, no meu caso, faz tanto sentido rememorar continuamente a convivência com Nicolau, dada a dureza e a impassibilidade contidas na vivência burocrática. Como a Administração Pública seria completamente outra com apenas alguns Sevcenkos formulando e implementando políticas públicas!

Até por todo esse conjunto de aprendizados é que reputo a ele como sendo a pessoa mais inteligente que já conheci, no sentido mais completo e menos hierárquico do termo. Não simplesmente em razão de seu conhecimento enciclopédico, mas pelo fato de ser capaz de tratar tão sistemicamente de qualquer domínio da vida e da história a partir de pontos de vista tão distintos e com tamanha sensibilidade. Com ele, aprendi, inclusive, a distância enorme entre rigor acadêmico e o positivismo cartesiano típico das metodologias tradicionais de pesquisa e interpretação, inclusive existentes no interior do pensamento dito crítico. A partir daí é que passei a relacionar inteligência com sensibilidade como uma correlação necessária, consubstanciada nessa capacidade de produzir o novo sem pretensões hegemônicas: pelo contrário, a sua argúcia lancinante, pós-socrática, lhe permitia extrair conhecimentos dos aspectos supostamente mais mundanos, dos fragmentos mais esquecidos – um ensinamento de Benjamin. Ninguém poderia ficar para trás, muito menos os oprimidos, ou o cotidiano (da opressão). É dessa inteligência que transverte a realidade instituída, de vocação anárquica e transdisciplinar, que o mundo tanto precisa.

É muito, muito difícil se despedir de alguém por quem se nutre uma admiração infinita, de quem foi tão responsável por tanta coisa, por tantos princípios em que se acredita e se busca aplicar, de quem, no fundo, você gostaria, de alguma forma, de ser em seu domínio de atuação, seja ele qual for. Tenho certeza de são esses os sentimentos de muitos e muitos alunos de Nicolau Sevcenko – e é o meu, com a maior profundidade assimilável. Ele fará muita falta como intelectual público brasileiro, tão capaz de pensar e dimensionar a partir de perspectivas tão próprias e progressistas os problemas que envolvem a modernização do nosso país; fará muita falta como professor, por sua coerência única a partir de seus posicionamentos ideológicos, de sua abordagens para os temas discutidos e metodologias de docência e de sua simplicidade, acessibilidade e abertura perante os alunos – ou seja, entre teoria e prática (quando há tantas pessoas de esquerda que, curiosamente, são insensíveis e/ou autoritárias no trato pessoal – ele nos ensinou que essa consistência é um imenso, imprescindível e viável valor) –; como ser humano, por toda a potência emancipatória a qual, todos os dias, foi capaz de irradiar. Apenas a partir de um distanciamento temporal é que o Brasil será capaz de equacionar esta perda de ontem.

Reformulando a inscrição do pórtico de um cemitério cujo texto serviu de base para dar nome a um clássico documentário que ajudou a produzir, nós que aqui estamos, meu caro professor, por vós sentiremos incomensuravelmente a sua ausência. Que cada um de nós consigamos, à nossa maneira, transmitir seu genial legado para nossos pares e descendentes, pois certamente serão algumas das nossas melhores contribuições ao mundo.

Muito obrigado por tudo, Nicolau Sevcenko.

Sérgio Roberto Guedes Reis

Programa Provocações (TV Cultura), 2001

Parte 1: https://www.youtube.com/watch?v=CxFaHUusv5g align:center]

Parte 2: https://www.youtube.com/watch?v=_Jcsf3FTZ0M align:center

Documentário “Nós que aqui estamos, por vós esperamos” (Marcelo Masagão, 1998, Consultoria em História de Nicolau Sevcenko e José Eduardo Valadares): [video:https://www.youtube.com/watch?v=maDnJcVbAoQ

Redação

14 Comentários

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  1. NSevcenko

    SergioRGReis,

    Já tinha ouvio falar do professor, mas à distância.

    Seu vigoroso depoimento, com exemplos espetaculares como o da banana e o do arame farpado, deixa à vista de todos a existência, infelizmente tão curta, de um brasileiro verdadeiramente extraclasse. E levante o dedo, quem não gostaria de ter tido o prilégio de ter Nicolau Sevcenko como professor.  

  2. Também tive o privilégio de

    Também tive o privilégio de ser aluno do prof. Nicolau.

    Sem dúvida ele foi quem mais me marcou. Suas discussões em sala de aula eram imperdiveis.

    e estou falando da 1a metade dos anos 80!

  3. Assisti a uma inesquecível

    Assisti a uma inesquecível palestra de Sevcenko, num evento sobre História e Narrativa, em que falou sobre “As raízes xamânicas da narrativa”. Algo extremamente original, erudito e simples, ao mesmo tempo. Estranhei seu sumiço, e eis que recebemos essa triste notícia, em mais uma das mortes de agosto, mês aziago do desgosto, como reza a tradição…

  4. Depoimento comovente

    Sérgio, parabéns pelo depoimento comovente acerca de nosso maravilhoso professor Nicolau Sevcenko, que tão precocemente nos deixou. Fui aluna dele no final dos anos 80 e suas aulas eram realmente muito concorridas, lotadas. Foi um privilégio ter sido sua aluna e conviver com ele durante a graduação em História. Ainda não consigo acreditar que ele tenha falecido. Pessoa digna de muito respeito e admiração, um grande ser humano. Sem dúvida, ele era exemplo de coerência entre discurso e prática,  e como você mencionou ” tantos pessoas de esquerda são tão insensíveis e autoritárias no trato pessoal” e ele quebrava este paradigma, era sensível, humilde e respeitoso com todos. Fará muita falta para todos nós que desfrutamos de sua inteligência vívida.    

  5. Prof. Sevcenko

    O Prof. Sevcenko, participando de um seminário internacional em Campinas, no final dos anos 90, tinha direito a carro com motorista a partir de sua residência. Recusou, e disse que ficaria grato se fosse reembolsado pelas passagens da Aviação Cometa. Raro gesto de nobreza.

  6. Fui estudante de Historia da
    Fui estudante de Historia da PUC -SP , e nos anos noventa, tive a honra de ser uma das primeiras alunas do entao iniciante e proeminente professor de historia comteporanea. Logo a sala ja nao era suficiente, e os alunos se esparramavam pelo corredor. Nesse se começo, ele ja mostrava sua genialidade. Na epoca eu vinha da Zona Leste, pegava o onibus na Praça do Patriarca, que me levaria a PUC. Numa tarde, ja dentro do onibus, senta-se ao meu lado um homem muito branco, semi calvo, fomos conversando, e ele na maior simplicidade disse que morava no bairro do Belem, fez uma observaçao : que a mochila que eu carregava tinha as cores da bandeira francesa……simples assim essa oessoa tao valiosa, inesquecivel para quem conheceu!

  7. Obrigada!

    Sergio, obrigada pelo seu texto. Você traçou um retrato perfeito do grande e tão necessário Nicolau Sevcenko. Sua genialidade generosa vai nos fazer muita falta.

  8. Fui aluno de Nicolau em

    Fui aluno de Nicolau em alguns cursos da graduação.

    Nicolau seguirá vivo em cada um de nós. 

    Parabéns pelo seu emocionante texto, Sérgio.

    ou como diria Nicolau, com sua boca levemente torta quando sorria: “wow, Barbarow!”

    🙂

  9. O meu portugues nao e tao

    O meu portugues nao e tao lindo e erudito, mas concordo com tudo que escreveu sobre o Nicolau. Tive o privilegio de conhecer ele nos anos que estava em Harvard e posso dizer que entre as dezenas de professores–brasileiros e americanos–que davam palestras, seminarios, intervencoes sobre Brasil, ele sem duvida era o unico que merecia o titulo de brilhante.  E ele brilhava– iluminando o passado, o presente, o futuro com suas narrativas cheias de surpresas, desvios, historias da infancia e adolescencia dele quando estava aprendendo a ser brasileiro. Passei uma noite com ele comendo ostras, tomando chopp antes dele sair para casa. Ele falando com aquele jeito dele–deixou a gente sempre querendo mais. Que tristeza saber que ele nunca mais voltaria, deixou um vazio no meu coracao, em Harvard, no Brasil–no universo. Que fique nos bracos da paz.

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