Por Thais Reis Oliveira
Delação, tortura, captura, prisão. Sem o devido contexto, essas palavras logo remetem ao nazismo na Alemanha. E, embora tenham feito parte da realidade de uma empresa alemã, aconteceram aqui.
A Volkswagen, que durante a Segunda Guerra Mundial usou escravizados judeus na fabricação de carros para o exército de Hitler, também cometeu graves violações aos direitos humanos em conluio com a ditadura brasileira.
Durante anos, a fábrica da montadora no ABC paulista abrigou um esquema ativo de colaboração com o Departamento de Ordem Política e Social. Documentos revelados pela Comissão da Verdade indicam que a direção da Volks delatou, capturou e permitiu a prisão de operários considerados subversivos.
Sob a batuta do coronel Adhemar Rudge, militar reformado que poucos anos antes assumira a chefia do departamento, os próprios seguranças atuavam como espiões.
O caso mais emblemático é o do ferramenteiro Lúcio Bellentani, à época militante do PCB. Em agosto de 1972, pouco antes de recomeçar o turno de trabalho, ele foi algemado e agredido por dois seguranças acompanhados por um policial do Dops. Naquele dia, Bellentani bateu cartão na entrada, mas não na saída. De lá foi levado à sede do Dops. E passou um ano e meio atrás das grades.
Só em 1998 a Volkswagen seria devidamente responsabilizada pelos crimes do nazismo. Por exigência judicial das vítimas, criou-se um fundo milionário para indenizar os trabalhadores escravizados sobreviventes.
No Brasil, Bellentani morreu no ano passado, aos 74 anos, sem receber um tostão.
“A cada mês morre um dos nossos. Isso nos força a ter pressa”, lamenta Tarcísio Garcia Pereira, presidente da Associação Heinrich Plagge, que reúne 60 trabalhadores prejudicados pela empresa. “Outro dia, ouvi de um companheiro doente: ‘queria pelo menos poder arrumar a minha casinha, deixar algo para os meus filhos’.”
Investigada desde 2015, a filial brasileira foi chamada a reparar os danos causados à sociedade e aos trabalhadores. Nesses quase cinco anos, tem negociado como fazê-lo com procuradores federais, estaduais e do Trabalho. Por enquanto, extrajudicialmente. O objetivo é conseguir firmar um Termo de Ajustamento de Conduta. Os procuradores e os 60 trabalhadores pleiteiam o pagamento de indenizações individuais. Além de um pedido oficial de desculpas e algum tipo de reparação coletiva – como a criação de um memorial. Nada disso saiu do papel. As tratativas são marcadas por idas, vindas e entraves de toda a sorte.
Em meados de abril do ano passado, com o inquérito em fase final, o acerto parecia caminhar para um desfecho rápido e satisfatório: os procuradores estavam convencidos da responsabilidade da Volks, e a matriz alemã havia dado sinal verde. Além dos depoimentos de testemunhas e da farta documentação, havia ainda relatórios do perito brasileiro Guaracy Mingardi e do historiador alemão Christopher Kopper, contratado pela montadora. Ao longo dos meses, a Volkswagen adotou, porém, outra postura e passou a postergar o acordo. Mais recentemente, as negociações foram suspensas por conta da crise do coronavírus. A companhia registrou um prejuízo de 1,4 bilhão de euros no primeiro semestre. Ainda assim, é difícil crer que o problema seja financeiro: para uma empresa que faturou 17 bilhões de euros no ano passado, meia centena de indenizações pagas em reais são ninharia.
Procuradores, advogados e trabalhadores interessados evitam opinar, evocando um acordo de confidencialidade firmado entre as partes. Reservadamente, quem acompanha o caso avalia, porém, se tratar de uma decisão política. A estratégia seria postergar ao máximo um desfecho para ganhar vantagens na negociação e, eventualmente, se livrar da obrigação de fazer uma reparação coletiva e, portanto, de admitir o conluio com mais um regime autoritário.
Caso o acordo fosse levado a termo, a Volkswagen do Brasil seria a primeira a reconhecer perante a lei sua colaboração com a ditadura. Este não é, porém, um ponto pacífico. Enquanto Mingardi apontou a anuência da alta direção da empresa, Kopper concluiu que, embora a montadora fosse “irrestritamente leal ao governo militar”, o coronel Rudge agia por “iniciativa própria”, mas com o “conhecimento tácito” da diretoria. Essa última tese, defendida por meio de nota enviada em abril do ano passado a CartaCapital, em resposta a uma primeira reportagem sobre o assunto, é a mesma que a Volks sustenta até hoje, dizem os envolvidos na negociação: a montadora afirma ter examinado com minúcia sua história e não encontrado evidências de que a alta direção da empresa colaborasse estritamente com o regime. Desta vez, a montadora evitou se pronunciar.
Embora traída pela burocracia alemã, a filial brasileira não era a única empresa a financiar a repressão. Chegou, inclusive, a liderar a troca de “listas sujas” entre os empregadores, que condenavam os fichados ao desemprego, prática que perdurou até os anos 1980. A esperança é de que um devido e amplo acordo abra espaço para a responsabilização de outras companhias.
“A Volks, certamente, teme que se faça um museu específico sobre esse caso”, avalia Pereira.
Representantes da Comissão da Verdade e do movimento sindical sugerem a construção de um local de memória que preserve a história da luta dos trabalhadores contra a ditadura e financie novas pesquisas sobre a parceria entre o setor privado e os porões do regime. Os interessados mantêm a esperança de um acordo em breve.
“Hoje existe uma proteção da empresa, uma aceitação em resolver tudo. Houve um momento de grande distância”, avalia Raimundo Simão, advogado da associação de trabalhadores. A ver.
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