De acordo com a Organização de Associações de Produtores de Cana do Brasil (Orplana), as queimadas registradas em áreas agrícolas desde o fim de agosto geraram prejuízos de mais de R$ 1,2 bilhões.
Mas os convidados do programa Nova Economia da última quinta-feira (19) apontaram que os danos causados pelas queimadas criminosas e intencionais para destruir biomas a fim de abrir mais espaço para a pecuária vão muito além da questão financeira, pois podem comprometer ecossistemas a ponto de a recuperação se tornar irreversível.
A bióloga Mercedes Bustamante, professora titular da Universidade de Brasília (UnB) e referência em clima e em Cerrado, observou que a situação do bioma deveria ser um ponto de preocupação para todo o país, uma vez que o Cerrado já perdeu cerca de 50% da cobertura nativa e, na área restante, a condição da vegetação não está no seu melhor estado de conservação.
“Isso inclui paisagens fragmentadas, áreas degradadas, e todo esse processo ele vem impactando o funcionamento, a forma como o Cerrado funciona ecologicamente. Então, nós já temos estudos mostrando que esse processo de muitos anos de conversão do Cerrado já tornou o Cerrado mais quente e mais seco, sem contar a mudança climática global. Então, se a gente soma isso ao impacto da mudança global, isso se torna mais preocupante. Se o coração das águas e o coração das águas se tornarem mais quentes, mais secos, as partes que recebem a água do Cerrado também vão ser impactadas”, inicia a bióloga.
A nova frente de desmatamento atinge áreas do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, remanescentes do bioma Cerrado e, segundo Mercedes, há áreas em que o desmatamento voltou a subir porque órgãos estaduais passaram a autorizar novos desmatamentos, a exemplo de Goiás.
“Não conseguimos nem restaurar o que foi desmatado de forma irregular no passado e continuamos avançando sobre novas áreas. Então, essa é, efetivamente, a receita de um desastre ambiental de larga escala para o Brasil e o que acontece no Cerrado não vai ficar restrito ao bioma Cerrado”, continua a bióloga referência em clima.
Entre as consequências do avanço do desmatamento no Pantanal, que fornece água para o Cerrado, está a ameaça também para a bacia do Rio São Francisco, cuja água vem do Cerrado e abastece uma região de semiárido e também a região sul, a partir da bacia do Rio Paraná.
“Se a gente não cuidar de uma situação de clima que está mudando, nós estamos acabando com os nossos grandes reservatórios de água. Isso, efetivamente, é insustentável, não tem outra palavra para colocar”, acrescenta Mercedes Bustamante.
Desmonte
A crise ambiental que o Brasil enfrenta agora foi construída ao longo da gestão de Jair Bolsonaro (PL), tendo em vista o desmonte em termos de políticas ambientais. Vale ressaltar ainda que, na maioria dos Estados, não secretarias integralmente dedicadas ao meio ambiente. Em geral, os secretários de meio ambiente respondem também pela agricultura.
“Já vínhamos de um déficit e ainda com a obrigação de ter muito mais um estado de prontidão, de preparação para esse tipo de emergência, de ter os mecanismos financeiros apropriados. Então, eu tenho comentado muito que a variável tempo, quanto mais a gente demora para tomar a ação e a decisão, a variável tempo vai se tornando mais importante, porque menos espaço de oportunidade a gente tem para reverter esse quadro. E aí, nesse sentido, eu acho que hoje a gente tem ainda um enfrentamento muito duro com setores dentro do Congresso Nacional”, aponta a professora da UNB.
Um exemplo citado pela bióloga foi um projeto de lei aprovado no Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado (CCJ), em que mesmo diante das enchentes históricas que devastaram boa parte do Rio Grande do Sul, fora os ambientes de seca extrema e queimadas cujas fumaças cobriram 60% do país, que altera o Código Florestal e permite que áreas de proteção ambiental permanente sejam utilizadas na pecuária.
“É o oposto que a gente deveria estar fazendo. Quando você olha o projeto de lei, é um projeto de lei com três artigos somente, o terceiro é só aquele cúmplice, e uma justificativa de uma página e meia. Então, a gente mexe com um mecanismo, um instrumento tão importante do Código Florestal, que as áreas de proteção permanente, como o nome diz, com uma facilidade enorme. Então, há uma preocupação hoje que o Congresso vem tornando várias coisas que eram ilegais, legais”, aponta Mercedes.
Sem as políticas de proteção e reflorestamento adequadas, o desmatamento no sub-Cerrado avança tão rápido segundo a bióloga que não haverá tempo de ter um ponto de não retorno no Cerrado.
“Algumas formas de vegetação do Cerrado, sobretudo nas áreas úmidas, que são tão importantes novamente para a questão da água, a gente já vem observando uma alteração mais permanente. Por quê? Porque o lençol freático está baixando, essas áreas úmidas estão secando e outras formas de vegetação vão entrando nessas áreas úmidas, alterando as suas características. Então, para partes do cerrado, eu diria que sim, a gente já começa a observar um ponto de não retorno”, conclui.
Esforços
Também convidado do Nova Economia, Paulo Artaxo, doutor em física atmosférica pela USP e membro titular da Academia Brasileira de Ciências, participou de reuniões com o governo para discutir soluções para a questão ambiental.
“O governo brasileiro, como todos conhecemos, é caracterizado por contrastes importantes e por uma luta entre a preservação ambiental e a hiperexploração econômica, que caracteriza, basicamente, a luta que temos entre o Congresso, o Judiciário e o Poder Executivo”, resume o doutor em física.
Na sua percepção, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tenta implementar políticas de reforços ambientais, “praticamente destruídos no governo anterior”, e políticas de preservação ambiental.
“E, infelizmente, 2023 e 2024 pegaram o Brasil de calças curtas na emergência climática. Então, essas queimadas que a Mercedes mencionou, por exemplo, não ocorrem, obviamente, só no Cerrado, mas na Amazônia. Observamos que 60% do território brasileiro coberto por fumaça. Isso levou o Lula a convocar uma reunião com os Três Poderes que ele está costurando, com o Judiciário e também com o Legislativo, para que a gente possa, na verdade, salvar o que restou dos ecossistemas brasileiros, dos quais a própria nação brasileira depende para sua sobrevivência no futuro”, diz.
Confira o debate na íntegra em:
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