35 anos e muito pouco a comemorar, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O golpe de estado de 2016 e os governos Michel Temer e Jair Bolsonaro removeram o brilho que restava do nosso texto constitucional

35 anos e muito pouco a comemorar

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Ainda sou capaz de lembrar a excitação que sentia quando participava de congressos estudantis durante a Assembleia Constituinte. Nós eramos apenas algumas centenas de acadêmicos de direito de todo país, mas discutíamos os grandes temas políticos, econômicos e institucionais como se fossemos verdadeiros constituintes.

Resoluções eram fervorosamente debatidas, negociadas e aprovadas como se pudessem mudar o Brasil. Mas quando retornava à Faculdade de Direito de Osasco o choque com a realidade era doloroso. A maioria dos estudantes era apática. Muitos alunos (policiais civis e militares) olhavam para mim e para meus colegas de movimento estudantil com desconfiança, desprezo ou ódio. Quando alguém rangia os dentes, nós sorriamos com a autoconfiança de quem estava ajudando a derrotar uma ditadura.

Nos primeiros anos de vigência da Constituição Cidadã ocorreram os primeiros golpes contra o texto constitucional. Eles foram dados tanto pelo Congresso Nacional quanto pelo STF. A reação na imprensa era ambígua. Alguns jornalistas e comentaristas defendiam a preservação do texto tal como foi aprovado. Outros aplaudiam a reação às inovações que o Centrão não conseguiu derrotar durante o processo constituinte.

35 anos depois, o que restou da Constituição Cidadã originalmente aprovada. Muito pouco. A censura retornou com força, passando a ser seletivamente aplicada por juízes sempre com finalidade política. A violência policial cresceu. A tortura nos presídios e nas Delegacias de Polícia raramente despertam alguma reação institucional. Nas periferias se nas favelas das grandes cidades do país a democracia não conseguiu realmente entrar, razão pela qual elas foram ocupadas tanto por milícias, gangues de marginais e igrejas evangélicas. No campo a violência genocida se tornou uma triste realidade incentivada pelo clã Bolsonaro.

Juízes, desembargadores, Ministros de Tribunais, promotores, procuradores, prefeitos, governadores, vereadores, deputados estaduais e federais, senadores, banqueiros, grandes empresários, generais, rentistas bilionários, barões da mídia, fazendeiros, pastores donos de igrejas evangélicas etc… vivem em bolhas de conforto desfrutando privilégios mais ou menos legalizados. As regras que se aplicam a eles nunca são as mesmas aplicadas ao conjunto da população.

A separação social que existia entre a nobreza e o populacho não deixou de existir com o fim do Império. E ninguém pode dizer que ela retornou nos últimos anos. Na verdade essa característica da sociedade brasileira nunca deixou de existir sob o verniz de todos os nossos regimes constitucionais republicanos.

O golpe de estado de 2016 (com o STF com tudo) e os governos Michel Temer e Jair Bolsonaro removeram o brilho que restava do nosso texto constitucional. Ele ficou tão enfraquecido que agora pode ser remendado sempre que o STF profere uma decisão dizendo qual regra será ou não aplicada em que momento de acordo com as necessidades das forças ocultas que comandam o show de horrores brasileiro.

Que fazer? Não é possível recuperar a força e o frescor de um texto constitucional que o andar de cima não quer respeitar e que nunca penetrou realmente no subsolo da sociedade. A solução seria uma nova constituinte, mas quem sairia ganhando: os evangélicos, os Bolsonaro ou as vítimas do fascismo nosso de cada dia?

Quando os EUA conseguiram fazer a ONU aprovar uma resolução para legitimar a invasão, ocupação e pilhagem das riquezas petrolíferas do Iraque eu fiquei horrorizado. Na época publiquei um pequeno texto na internet dizendo que a ONU havia morrido. Mas como a comunidade internacional não tinha nada para colocar no lugar dela todos continuariam a reverenciar aquele zumbi.

A criação dos BRICS já começou a remodelar lentamente as relações internacionais. Internamente, porém, a Constituição Cidadã é o zumbi ao qual todos tentam se agarrar. Existe um bom motivo político para fazer isso. Especialmente quando são necessárias e inadiáveis, as rupturas são dramáticas, traumáticas e dolorosas. E a maioria das pessoas prefere fazer de conta que a vida pode prosseguir como se nada tivesse que ser feito.

Na arena internacional, a protelação tem evitado uma guerra nuclear catastrófica. Dentro do Brasil somos corridos por um torpor político e institucional que nenhuma série do Netflix conseguiria retratar. Os jornalistas mais velhos ainda não estão cansados. Eles lutam diariamente para tentar preservar o Estado de Direito porque sabem o que significa viver sob uma Ditadura. Os jornalistas mais jovens, entretanto, querem apenas ganhar dinheiro. Alguns deles são clones diplomados de influencers que podem perfeitamente obter lucro convivendo com a anormalidade fascista como se isso fosse normal.

Não sei se realmente devemos comemorar os 35 anos da Constituição Cidadã. Mas estou convencido que ela deixou de ser a blue print política do Brasil. Os pastores pregam “mais Bíblia, menos constituição”. E os banqueiros e rentistas dizem amém, porque existe uma incompatibilidade essencial entre a democracia e a maximização das oportunidades de ganhar dinheiro fácil com juros altos ou privatizações desnecessárias.

O longo caminho que levou à redemocratização do Brasil em 1988 está encerrado. O túnel cavado pelos Bolsonaro e seus aliados que nos levaria à nova ditadura foi temporariamente interrompido. Mas o perigo não deixou de existir, porque o compromisso com o texto constitucional é cada vez mais fraco. Juízes e promotores descumprem acintosamente a Constituição Cidadã e não são punidos. Muitos deles zombam e ignoram decisões proferidas pelo STF e pelo STJ, pois tem certeza que ficarão impunes.

Não há nada que possa ser feito realmente num país em que cada juiz, desembargador, Ministro de Tribunal, promotor, procurador, prefeito, governador, vereador, deputado estadual e federal, senador, banqueiro, grande empresário, general, rentista bilionário, barão da mídia, fazendeiro, pastor dono de igreja evangélica, etc… pode se comportar como um pequeno tiranete. “A constituição nos meus domínios é outra”. “O senhor sabe com quem está falando.” “A constituição sou eu.” “Aqui a sua constituição não tem valor algum, doutor.” E assim por diante.

Existe uma evidentemente e abissal diferença qualitativa entre Bolsonaro e Lula. Mas a verdade é que quem tem a chave do Orçamento da União pode abrir todas as portas lucrativas da nação. Assim sendo, sem se preocupar muito com o que está escrito na Constituição Cidadã (ou justamente porque se esforçam para sabotá-la) os poderosos que se ajoelharam para beijar a mão do capitão amalucado como se ele não fosse ladrão e genocida já fazem salamaleques para Lula porque ele foi eleito presidente.

Lula sabe exatamente em que chão está pisando. Presidente num dia, prisioneiro no outro. A questão é saber se isso também se aplicará a Jair Bolsonaro. A mesma imprensa que impulsionou e aplaudiu o Lawfare contra o líder petista já começa a denunciar os pecadilhos do STF para salvar o capitão genocida. Aliás, ninguém quer mais falar em genocídio. A morte é um negócio lucrativo, mas aqueles que já estão mortos não dão mais lucro. A Constituição Cidadã promulgada há 35 anos garante o direito a vida. Não seria melhor ela garantir o direito à morte e enterro digno? Well… se o Estado brasileiro tiver que pagar um caixão de luxo para cada pobre que morrer certamente os banqueiros, rentistas bilionários, líderes neoliberais e seus “canetas” na imprensa protestarão. Melhor deixar como está, entendem… Assim a despesa é menor.

Na madrugada do dia em que a constituição fez 35 anos ocorreu um assassinato político. Isso prova satisfatoriamente que o texto constitucional já está morto apesar de não poder ser enterrado.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

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Fábio de Oliveira Ribeiro

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