A política para além do processo eleitoral, por Luis Felipe Miguel

A frente ampla, que reúne Kassab, FHC, Flávio Dino, Márcio França, Marta Suplicy, Ciro Gomes e até Noam Chomsky, aponta para uma "normalização" pós-bolsonariana que aceita o golpe como dado.

A política para além do processo eleitoral

por Luis Felipe Miguel

Deve a esquerda participar da nova “frente ampla” contra o bolsonarismo, lançada faz uma semana na PUC paulistana?

Em artigo no Intercept Brasil, João Filho responde com um sonoro “sim” e critica PT e, secundariamente, PSOL pela ausência no ato.

O artigo é vibrante de indignação, mas raso de argumentos. Aplica à política uma moral de parquinho infantil: sejamos todos amiguinhos.

O título, aliás, é explícito: o PT “se recusa a dar as mãos na hora de defender o país”.

O PT seria fominha (“o cacoete da hegemonia”). Teria dificuldade de superar os “traumas decorrentes do impeachment”. E insistiria na bandeira #LulaLivre, que o articulista reconhece justa – mas fala mais alto o fato de “que muita gente no campo democrático […] discorda de que essa seja uma boa estratégia no combate ao bolsonarismo”.

Seria fundamental, portanto, esquecer o golpe e engavetar a bandeira da libertação de Lula, em nome do bem comum. Afinal, “não se trata mais de esquerda x direita, mas de civilização x barbárie”.

Mais pro final do texto, João Filho escancara: “As lições da última eleição foram ignoradas”. E a lição é, claro, que o PT devia ter apoiado Ciro Gomes.

O artigo é mais que uma coleção de equívocos. É uma demonstração de como muita gente do campo progressista ficou presa na armadilha que o golpe de 2016 e o bolsonarismo criaram.

A frente ampla, que reúne Kassab, FHC, Flávio Dino, Márcio França, Marta Suplicy, Ciro Gomes e até Noam Chomsky, aponta para uma “normalização” pós-bolsonariana que aceita o golpe como dado. Aceita uma recomposição muito parcial do pacto constitucional de 1988. Aceita a restrição dos direitos da classe trabalhadora, a desnacionalização da economia e o retrocesso nas políticas sociais. Aceita que o campo popular seja condenado à posição de coadjuvante do debate político.

É esse o mínimo denominador comum que garante sua frontal amplitude.

Em suma: vamos tirar o bode, Bolsonaro, da sala. E ficar contentes com o que nos sobra, que é o Brasil do projeto original do golpe de 2016.

A recusa à defesa da liberdade para Lula é um emblema disso tudo. Trata-se de uma questão simples de justiça: um homem, um septuagenário, está preso após um processo viciado (hoje, mais do que comprovado que foi viciado, conduzido por um juiz canalha, dentro de uma estrutura judiciária corrompida). Como deixar isso de lado?

Mas a bandeira “Lula Livre” não é só um imperativo moral, é também uma exigência da ação política. Abandoná-la – para evocar as palavras célebres atribuídas ao chefe da polícia de Napoleão, Joseph Fouché – “é pior que um crime: é um erro”.

A conspiração midiática e judicial que colocou Lula na cadeia é o fio que liga o golpe de 2016 à vitória do bolsonarismo em 2018. Defender a anulação do processo que o condenou, sua libertação imediata, a punição aos responsáveis é defender o retorno do ideal de império da lei e da livre competição política, sem criminalização de partidos ou tendências, no Brasil.

Quando João Filho diz que “corre-se o risco de não se ter nem democracia nem Lula livre”, ele está dizendo que devemos nos contentar com uma democracia que inclua perseguição judicial, criminalização de um lado do espectro político, repressão policial seletiva, suspensão das garantias constitucionais para os indesejados, tutela sobre o processo eleitoral… Opa, que democracia seria essa?

O oportunismo da “frente ampla”, portanto, é maroto para a direita que quer uma retomada contida e tutelada da democracia e do Estado de direito, para não ameaçar o projeto das contra-reformas que a une a Bolsonaro, e contraprodutivo para as forças progressistas, que precisariam perder identidade e inibir seu próprio discurso.

Há um ponto no texto de João Filho, porém, que merece atenção. Ele diz que “o PT calcula que o melhor a se fazer é deixar Bolsonaro sangrando até 2022, perdendo popularidade e, assim, derrotar a direita nas urnas”.

É errado singularizar o PT nessa posição – a ideia de que um mandato de Bolsonaro seria um bom “castigo” para o Brasil aprender presidiu, por exemplo, a neutralidade imperdoável de Ciro Gomes no segundo turno. E o que dizer de todos aqueles que embarcaram na campanha do “ele não” quando achavam que podiam tirar uma casquinha, mas na hora H preferiram a “neutralidade” ou mesmo o apoio ao Coiso, em nome do oportunismo de fôlego curto?

E é errado julgar que o equívoco da posição é “subestimar […] a força avassaladora do antipetismo”. Parece então que o problema estaria só no cálculo eleitoral errado. Se não houvesse o fantasma do “antipetismo”, então estaria tudo bem em esperar uma vitória certa em 2022?

O fato é que muitos dirigentes – do PT, mas não só dele, e incluindo o próprio Lula em muitas de suas falas – parecem não ser capazes de pensar a política para além do processo eleitoral. No entanto, o processo eleitoral, que sempre é insuficiente como forma de participação política, torna-se desprovido de qualquer sentido quando está submetido ao veto do judiciário, dos militares, dos ianques, do capital, da mídia. Com isso em mente, a proposta da “frente ampla” se torna ainda menos sedutora.

Ou, nas palavras imortais do caminhoneiro Pedro: é cilada, Bino!

Bolsonaro tem que ser retirado da presidência? Sem dúvida. Mas não basta. E, na tarefa mais ampla de retomada do caminho da democracia e da justiça, muitos dos amiguinhos da “frente ampla” estão do outro lado das trincheiras. Formalizar a união com eles, da forma com o articulista do Intercept exalta, significa uma rendição precipitada ao estreitamento do universo de possibilidades políticas que o golpe de 2016 promoveu.

O GGN prepara uma série de vídeos explicando a interferência dos EUA na Lava Jato. Quer apoiar esse projeto? Acesse www.catarse.me/LavaJatoLadoB e saiba mais.

Luis Felipe Miguel

13 Comentários

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  1. De esquerda, ali, só Flávio Dino. Até FHC, um dos mentores do golpe e alguns “colegas” ali estavam. Ciro, do partido do eu sozinho, também. E ainda querem que a verdadeira esquerda se junte, E como caudatária. Que gracinha.

    1. E olha que o Dino se apresentou ali dando um ‘OK’ para a entrega de Alcântara, no que não somente todos na reunião estavam de acordo, como até poderiam ter convidado Bolsonaro, o Cu Falante, para participar, pelo menos neste tópico.

  2. O texto é corretíssimo. Porém, por dialogar com o de João Filho, até gasta muito latim.

    A questão é muito mais elementar: FH, Kassab, Marta, et caterva, FICARAM DO LADO DO GOLPE, DA BARBÁRIE. Nem que eles façam muita, mas muita “autocrítica”!

    Querem é que o PT, PT, PT se jogue da ponte para que o guarda da cancela abra passagem pra eles; querem é montar no que ainda resta de popularidade do Lula, do Partido dos Trabalhadores e da esquerda para, mais adiante, apunhalarem pelas costas novamente. Golpista cínico é assim mesmo.

    A abertura dos anos 80 foi assim, a esquerda aniquilada, desvertebrada pela ditadura amassou o barro até os anos 2000, com os sedizentes democratas fazendo de tudo, todos os ardis para que eles permanecessem como coadjuvantes,
    ou até mesmo que definhassem…

    Quem viu o que foi feito com o Brizola aqui no Rio não se surpreende nem um pouco.

    Mas, alguns “cavalheiros” insistem em confiar em quem não devem.

  3. Isso mesmo Luiz Felipe Miguel. Todos esses sujeitos (Flávio Dino, Ciro Gomes, Eduardo Suplicy, Pedro Serrano, Noam Chomsky etc) que estão buscando reunir forças democráticas para restabelecer o Estado Democrático de Direito são uns merdas. Só o PT é quem sabe o que deve ser feito e detém a plenitude da virtude. Todos os que têm uma mancha no passado devem ser excluídos, jogados na sarjeta que é o lugar desses pecadores vulgares e contagiosos. Saiam da frente, porque o PT irá resgatar nossa Democracia sozinho (no máximo com a ajuda do PCO).

  4. Qual a diferença essencial entre FHC, Kassab, Serra, Ciro e o Bolsonaro? Nenhuma. Todos apoiam essa política econômica neo-liberal. O próprio Ciro defendeu a reforma da Previdência. Bajulou a Lava Jato. Ora, essa direita sempre existiu e pode muito bem fazer oposição a Bolsonaro da forma que bem entender.

  5. A “frente ampla” deveria se chamar:
    Direita já!
    O Bozo não sai, por ter o apoio dos milicos.
    O povo não é trouxa por só votar no capitão Bozo. O povo é trouxa.
    E olha cada Congresso que ele elege!
    O Bozo vai morrer com seu câncer de intestino, mais pra perto do fim do mandato. Sofrendo e, quem sabe, tendo um momento de lucidez em sua vida. Vendo que foi embora cedo, perdeu o gozo do que queria roubar…enfim…quem sabe tenha um lampejo de humanidade e sinta remorso de toda sua patifaria ( de toda sua malandragem, sua vida).
    Esse país caminha para ser um mixto de Líbia e Grécia.
    Para mudar?
    Ter consciência. Votar certo. Desligar a televisão.
    Mas a primeira tarefa é muito difícil, muito difícil.

  6. Kassab, Fhc e Marta me provoca vômito. Não se vale a pena se aliara a esses seres abjetos para o país voltar ao caminho da democracia.
    Mas nesse tempo o maior alhos do PT, Gilmar, é a voz mais sabia do judiciário.
    Lula Livre!!!

  7. Kassab, Fhc e Marta me provoca vômito. Não se vale a pena se aliara a esses seres abjetos para o país voltar ao caminho da democracia.
    Mas nesse tempo o maior algos do PT, Gilmar, é a voz mais sabia do judiciário.
    Lula Livre!!!

  8. Excelente seu artigo! Inclusive por deixar claro que abrir mão de “Lula livre” é, na verdade, não apenas IMORAL – porque injusto com o ser humano, o cidadão Luís Inácio Lula da Silva – mas é também estratégica, política e até “existencialmente” errado. Porque ou se luta para termos todas as prerrogativas de um Estado de Direito pleno, ou estaremos, na verdade, corroborando todos os desejos e objetivos do golpe – uma frente ampla “pró Temer”, talvez? Porque parece que é, realmente, o que contenta a essa turma…. Um país sem o horror do bolsonarismo, um país “civilizado” – na “etiqueta”, nos “modos e comportamentos” do presidente, congressistas, juízes, etc., etc….. Um país maquiado! Que seguiria nas mãos das oligarquias, abrindo mão eventualmente de um autoritarismo ou outro, mas marginalizando o líder e o partido que, no poder, tentaram quebrar os paradigmas sociais que nos governam há séculos. Soa como uma imensa farsa, uma pantomima destinada a redimir gente canalha como FHC, Kassab, Marta Suplicy. O PT estaria, literalmente, se desfigurando, vendendo a sua alma ao diabo e, pior, a troco de nada!

  9. Abandonar a causa Lula Livre é abandonar a causa pela democracia e por nossa soberania.
    Atacam Lula, sua família, Haddad, PT e suas lideranças como atacariam qualquer democrata não entreguista que tivesse hegemonia.
    Que tivesse liderança e votos capazes de derrotá-los.
    Só com esse entendimento será possível construir uma frente ampla democrática.
    Não é Lula por Lula. Não é o PT pelo PT e sim pelo que eles significam para os canalhas que tentam derrubá-los.
    #LulaLivre é igual a luta pela democracia, por nossa soberania, por nossos direitos.

  10. Perfeita análise. Combater Bolsonaro sem combater o golpe de 2016 é tão estúpido como seria lutar contra Médici mas aceitar a quartelada de 64! Essa frente ampla parece mais choro de tragados e esquecidos pelo processo golpista. Abraçaram o capeta e agora que estão no inferno querem voltar ao purgatório. Ali só faltou o Temer mesmo.
    Frente Ampla só com PT e Lula Livre. Esse pessoal não tirou as lições de 2018: o único partido que sobreviveu o golpe foi justamente o PT, que garante pelo menos um terço do eleitorado em cada pleito.

  11. Alto lá! De novo a culpa vai ser do PT?!? Aonde estavam alguns daqueles nomes (Ciro Gomes, Marta Suplicy, Kassab, FHC, Anastasia, Alckmin) que oportun[ístic]amente se reuniram “pela defesa da civilização”, quando a incivilidade criminosa retirou Dilma do cargo para o qual foi eleita, com homenagens do narcísico estrupício bárbaro, que agora governa a Nação, a um narcísico torturador bárbaro? Aonde estavam quando Lula foi massacrado pela imprensa e preso sem provas? Que piadas fizeram naquele contexto? Quantos tiveram a dignidade de visitar o “principal preso político do mundo” (segundo as palavras de Chomsky, que se engana com Ciro, não tenho dúvida)? Aonde estavam quando os petistas e seus admiradores eram submetidos à humilhação pela barbárie? Aonde estavam quando os petistas e seus admiradores, quase solitariamente, defendiam os “valores democráticos” e eram espezinhados pelos oportunistas desejosos de poder político e pelos bárbaros ávidos por poder fascista? Aonde estavam quando os petistas e seus admiradores enfrentavam sozinhos o autoritarismo bárbaro ao qual eram submetidos em todo o país de hora em hora por dias e dias seguidos? Quem destes gritou alguma vez Lula-Livre? O que o tal Cid, irmão do Ciro, publicamente disse quando foi cobrado durante um evento político? : “O Lula tá preso, babaca”… O que estavam fazendo aqueles nomes quando eram cobrados? Estavam rindo, não tenho dúvida. Quem tem que fazer autocrítica? O PT? Quem tem que dar passo atrás? O PT? Deve ser piada isso. De mau gosto, enquanto um homem idoso, vítima de uma trama mesquinha, asquerosa, o “principal preso político do mundo”, envelhece na prisão. Que se dane o “bolsonarismo” agora! Lula Livre é o que importa! Isso é que ser contra o “bolsonarismo” (quanta pretensão pensar-se num “ismo”, numa doutrina, como se o prefixo do ismo fosse capaz de algo semelhante). Depois, alguns daqueles nomes podem voltar a lamber o Dória ou o Ciro ou o Huck … Chomsky crê que o PT ficou desacreditado… mas desacreditado por quem? (só para que nunca esqueçamos: quem foi para o segundo turno foi o Haddad; e quem formou a maior bancada na Câmara foi o PT). Aonde veem tanto antipetismo assim? Na TV? Na Globo? No Globo? Na FSP? No Estadão? Na Veja? No SBT? Na Band? Tenha santa paciência!). Agora é Lula Livre mesmo! Ou ainda não perceberam? Dar a mão ao Ciro? Dar a mão ao PSDB? Ao Kassab? À Marta? Ao Alckmin? Ao FHC, “O protegido”? Ao Anastasia? Ou preferem dar a mão ao Aécio? De onde vieram os “sábios advogados magistrados” e a docente espertalhona que de tudo fizeram, com sucesso (e apoio explícito do PSDB), para derrubar a democracia do voto ganhador em Dilma? Quer dizer que “se não houver eleições” a culpa será do PT??? É piada mesmo…de imenso mau gosto. Juntem-se ao PT! É lá, e com os admiradores do PT que persistem, tenho a forte impressão, que a barbárie vai ser vencida. Não vai ser com “uma frente ampla em defesa da democracia contra os ataques do governo Bolsonaro” — formada por tantos nomes espúrios liderados pela iniciativa de um partido que participou abertamente e originalmente da derrocada da democracia em apoio ao golpe jurídico-parlamentar-midiático — que se fará o que deve ser feito… E também não vai ser com Ciro. Não vai ser com Dória. Nem vai ser com o pretensioso animador de programas de sábados “globais”…

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