A vilania da guerra de propaganda
por Arnaldo Cardoso
A pintura de um grande mural com a face do escritor russo Fiodor Dostoievski (1821-1881) feita pelo artista italiano Jorit, na fachada lateral do edifício de cinco andares do Liceu de Fuorigrotta Augusto Righi, em Nápoles, sul da Itália, terminou por produzir mais um episódio (dos mais brandos) da guerra de propaganda que ocorre simultânea à guerra que tem devastado a Ucrânia.
Segundo o artista, a decisão de produzir o mural foi uma forma de protesto ao “cancelamento” da Rússia e uma manifestação de apoio ao professor Paolo Nori, cujo curso sobre Dostoievski havia sido suspenso da programação da Universidade Milão-Bicocca e, após repercussão negativa, restabelecido.
A manifestação do artista de rua não passou despercebida pelo presidente russo Vladimir Putin que, em uma coletiva de imprensa, elogiou a homenagem ao grande escritor russo e com habilidade retórica, explorou em seu favor a manifestação artística.
Queixando-se do “cancelamento da cultura russa pelo Ocidente” Putin emendou “A verdade seguramente vai seguir seu caminho, através da simpatia recíproca entre os povos e através de uma cultura que conecta e une todos nós”. Putin também não perdeu a oportunidade para mais uma vez trazer o nazismo para o embate, resgatando que a perseguição de autores e destruição de obras literárias e artísticas indesejadas foi posto em prática na Alemanha nazista.
Após a repercussão do mural, o artista italiano deu diversas declarações para a mídia expondo sua intenção de “passar uma mensagem de que só com a cultura é possível compreender as causas das guerras e construir a paz”.
Contrário à guerra em todas as suas formas, Jorit tem outros trabalhos que expressam suas convicções político-ideológicas como o mural intitulado “Paz”, em Salerno.
Cabe aqui também lembrar que Dostoievski, homenageado por Jorit, sofreu a perseguição política na Rússia czarista, foi preso e sentenciado à morte. O sofrimento produzido por essa sentença marcou o escritor profundamente e, mesmo tendo a sentença revogada, foi enviado para campos de trabalho forçado na Sibéria. Hoje, quem visita a cidade de São Petersburgo pode conhecer a fortaleza de Pedro e Paulo onde fica a prisão política em que Dostoievski e outros nomes da história política e cultural russa foram presos. A cela de Dostoievski é uma das que merece maior atenção dos visitantes. (Eu visitei a fortaleza e a prisão em julho de 2017, em viagem por ocasião do centenário da Revolução Russa).
Russofobia
O episódio italiano acima relatado se incorpora a uma já extensa lista que inclui até de um restaurante brasileiro que retirou do cardápio o strogonoff, em protesto à guerra comandada pelo governo russo.
Diante disso, não são poucos os analistas que apontam para uma ação política deliberada – em curso desde o desmonte da ex-URSS e intensificada no presente – como parte de uma guerra híbrida, reunindo atores ocidentais (governos, instituições e mídia internacional) com o objetivo de disseminar uma imagem da Rússia como um país essencialmente agressivo, de uma sociedade reprodutora de uma cultura autoritária e corrupta, atualmente governada por um déspota criminoso. O estímulo a uma russofobia integraria uma política de cerco à Rússia, comandada pelos Estados Unidos e com apoio da Europa.
E para essa “campanha” estariam sendo maliciosamente articulados registros e narrativas, misturando fatos históricos de passado distante com narrativas preconceituosas do presente.
Uma vocação expansionista que remonta ao menos ao século XVI, governantes tirânicos, o czarismo russo, a revolução comunista, o stalinismo, os gulags, a perseguição e extermínio de milhões, a ameaça nuclear, a derrocada do regime soviético e ascensão de um alcoólatra – bebedor de vodka – ao comando de uma potência decadente, a formação de uma cleptocracia com oligarcas corruptos se apropriando das riquezas nacionais e exibindo luxo no Ocidente, uma classe de ricos vulgares consumindo produtos de grifes em shoppings centers luxuosos construídos sobre ex-armazéns do regime soviético, até a chegada de um ex-agente da KGB para se entronizar no poder perseguindo e envenenando opositores.
Dando verniz a essa imagem enviesada misturando passado e presente, estariam produções como o filme Leviatã (2014) escrito e dirigido pelo cineasta e roteirista russo Andrey Zvyagintsev que retrata o drama de um cidadão de uma pequena cidade russa oprimido por um sistema corrupto instalado na administração pública da cidade, envolvendo políticos e lideranças religiosas, e do mesmo diretor o filme Desamor (Neliubóv) de 2017, drama que se passa numa periferia de Moscou onde as personagens revelam relações marcadas pelo desalento, solidão e vazio de sentido.
Outro exemplo de produto cultural que estaria sendo utilizado para essa propaganda depreciadora do país e de seu povo seriam livros como “O fim do homem soviético” da escritora ucraniana Svetlana Aleksiévitch, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2015, que em quase seiscentas páginas retrata como a “abertura política e econômica empreendida pelo governo Gorbatchóv” provocou a “extinção do homem soviético” e como a sociedade russa veio se movendo entre “a possibilidade de uma vida diferente e a derrocada da sociedade em que viveram”.
Putinismo
Uma abordagem ocidental também recorrente sobre a guerra na Ucrânia tem sido a de buscar personalizar e psicologizar os acontecimentos, pondo em foco a personalidade do presidente Putin e suas fontes de inspiração.
Da observação das operações empreendidas em Kharkiv, Mariupol, Irpin e Kiev, o reconhecimento de um padrão no comando de Putin indicaria mais que táticas e estratégias militares, um estilo, uma conduta do presidente russo, marcada pela frieza e desumanidade. O fato dele se encontrar no poder há 23 anos convida a esse tipo de abordagem.
Nesse sentido têm sido apontado como um padrão as ações empreendidas em Grozny (Chechênia, 1999-2000) e Aleppo (Síria, 2015). Depois dos quatro meses de bombardeios sobre Grozny a ONU avaliou que a capital chechena se tornou a cidade mais destruída do planeta.
Essas análises insistem em recordar que a conquista de Grozny conferiu a Putin grande popularidade na Rússia e pavimentou sua primeira vitória em eleições no país e a sua instalação no poder até hoje.
Agrega-se a isso uma postura violenta no enfrentamento de manifestações populares contra seu governo, controle sobre canais de comunicação para que opositores sejam calados. O caso mais amplamente divulgado pela mídia ocidental é o da perseguição a Alexei Navalny, vítima de envenenamento e posteriormente pressão e condenação a mais de uma década.
E, no contexto da atual “operação militar especial” empreendida na Ucrânia para desmilitarizar e “desnazificar” o país, a publicação de decreto restringindo a liberdade de imprensa e estabelecendo penas de 10 e 15 anos de reclusão a quem se manifestar criticamente em relação às operações na Ucrânia, deram munição aos que contribuem com a guerra híbrida do Ocidente contra a Rússia e seu presidente.
Os gurus de Putin
Nessa campanha de desacreditação da Rússia e desqualificação de seu presidente, também estaria sendo utilizada a tática conhecida de negar o reconhecimento de racionalidade nas ações de Putin e de seu governo, e em vez disso apontar motivações exóticas, místicas e psicologicamente perturbadas.
Assim, entre os amigos mais próximos de Putin estaria Yuri Kovalchuk, dono de um banco e controlador de vários meios de propaganda que atendem o governo. Kovalchuk, como já foi apontado inclusive por jornalistas russos, mais que um rico empresário é um ideólogo que, dentre outras ideias defenderia a restauração da unidade entre a Rússia e Ucrânia e veria em Putin o agente histórico capaz dessa realização.
Um jornalista russo de nome Zygar escreveu que a visão de mundo de Kovalchuk “é uma mistura de teorias da conspiração antiamericanas, misticismo cristão ortodoxo e hedonismo”.
Outro personagem apontado desde muito como ideólogo de Putin é o filósofo e cientista político Aleksander Dugin. Na abordagem da mídia ocidental ele é apresentado como um “místico-esotérico-reacionário” que inclusive estabeleceu diálogo com o núcleo ideológico do atual presidente do Brasil, que também tinha um ideólogo pouco convencional, o astrólogo Olavo de Carvalho.
Artigo recente do jornal israelense Haaretz sugeriu que “Qualquer pessoa que queira entender a geopolítica e a visão de mundo de Putin, incluindo a campanha ucraniana, faria melhor em ouvir uma pessoa: Aleksander Dugin”.
O próprio Dugin, em entrevista recente para a mídia italiana referiu-se à guerra na Ucrânia nestes termos “Não é apenas uma questão de desnazificar o país e proteger o Donbass, é uma batalha contra o globalismo liberal, o Ocidente, ou seja, o Anticristo”. (No Brasil de Bolsonaro e de Ernesto Araújo, muito também se falou desse inimigo “o globalismo liberal” e o “marxismo cultural”).
Nesse hipotético panteão do putinismo, outro nome várias vezes citado é o do filósofo religioso russo Ivan Ilin (1883-1954) admirador do fascismo e do nazismo, deportado pelos bolcheviques em 1922 e falecido no exílio na Suíça. Putin teria se engajado na repatriação dos restos mortais do admirado filósofo.
O historiador da Universidade de Yale, Timothy Snider, apontou ainda mais um “guru” de Putin, Lev Gumilev (1912-1992), historiador e etnólogo russo, expoente do eurasianismo, que defendia que as nações derivam seu impulso de raios cósmicos e que a força vital do Ocidente estaria em declínio e a da Rússia em condições de “formar um poderoso estado eslavo abarcando a Eurásia”.
Como tem sido muito difícil inclusive para intelectuais russos, mapear com segurança as fontes mais influentes sobre o processo decisório de Putin, em temas de política externa e interna, até pela pouca transparência dada a gestão pública na Rússia, o Kremlin e seu atual ocupante se converteram em ícones do esoterismo e da perversidade.
A hipocrisia do Ocidente
Vocação expansionista seria um traço exclusivo do império gelado? A defesa de seus interesses políticos, econômicos e geopolíticos através do uso, quando necessário, da força seria uma perversão do Estado russo nas suas relações internacionais? Corrupção em esferas do Estado, apoio de elites egoístas, milionários exibicionistas com patrimônio no exterior, atuação de máfias e milícias, relações duvidosas com lideranças religiosas, distorção dos fatos em narrativas do governo visando manter a coesão e apoio popular, seriam traços presentes apenas na realidade de uma exótica nação eslava, euro-asiática?
Certamente não precisaria muita habilidade para que esses mesmos atributos fossem colados em personalidades políticas e práticas das mais respeitadas sociedades ocidentais “avançadas”. Será que sobre o atual presidente norte-americano não caberia denúncias por autorizar bombardeios sobre cidades atingindo populações civis? E de envolvimento direto ou indireto, através de familiares, em transações internacionais pouco republicanas?
Quando Biden chama Putin de bandido, o presidente russo não teria motivos para devolver a acusação?
É conhecida a avaliação de que as relações internacionais são marcadas pelo cinismo e hipocrisia, mas a cada dia estamos sendo mais pressionados a respondermos se esses são atributos condizentes apenas com os poderosos e qual o significado prático de uma tal equivalência de torpeza entre líderes mundiais.
No bojo dessas indagações, a persistência da investigação e reflexão sobre as fontes da denunciada russofobia estimulada no contexto de uma guerra de propaganda, suscita válidos questionamentos.
A invenção da Rússia
Arkany Ostrovsky, jornalista e escritor russo radicado na Inglaterra, é mais um daqueles que deve estar incluído na lista dos inimigos da nação russa, um vassalo do pensamento neoliberal imperialista americano, pelo que apresenta em seu livro “The invention of Rússia: from Gorbachev’s freedom to Putin’s war” (2015), que indaga: como se instalou no país o “estado policial autocrático da nova Rússia de Putin”?
A construção de Ostrovsky se ergue a partir da seguinte ideia “A União Soviética uniu sonhadores e homens fortes – aqueles que acreditavam em um ideal igualitário e aqueles que defendiam um Estado ainda mais poderoso. A nova Rússia é uma operação cínica, onde o medo e a guerra perpétuos são alimentados por uma teia de mentiras. Vinte e cinco anos depois que a bandeira soviética desceu sobre o Kremlin, a Rússia e os Estados Unidos estão novamente caminhando para um confronto, mas esse curso estava longe de ser inevitável”.
Certamente os críticos – não só russos – de Arkany Ostrovsky diriam que esse curso se fez inevitável para que a Rússia não se tornasse apenas mais uma nação “transformada voluntariamente em outra colônia neoliberal ocidental, como todos os países ex-socialistas europeus”. Afinal não é uma invenção russa a doutrina que defende que “a única maneira de limitar o poder dos estados expansionistas é confrontá-los com um poder igual ou maior”.
Não são poucos os que defendem que a guerra na Ucrânia comandada pela Rússia foi a única ação possível deixada a Putin, depois que Biden rejeitou até mesmo discutir, os termos propostos pelo Kremlin para uma negociação antes da decisão dos bombardeios em 24 de fevereiro.
Aceitar ser cercada e isolada por forças da OTAN não era uma conduta a ser considerada por Putin.
Sobre a “desnazificação”
Se de início a declarada motivação russa de empreender uma ação de “desnazificação” foi ridicularizada e refutada pela maioria dos líderes políticos e analistas ocidentais, nas últimas semanas vem se fazendo mais presente na mídia ocidental, principalmente europeia, apreciações mais sérias sobre a verdade que há nisto.
Voltando à Ucrânia de 2014 – sem regressar ainda mais, ao contexto da 2ª Guerra Mundial, quando ucranianos em oposição à opressão stalinista colaboraram com tropas da Alemanha nazista – o acirramento dos conflitos no Leste do país, opondo nacionalistas extremistas e separatistas apoiadores da Rússia, radicalizou as diferenças culturais e políticas entre os grupos, bem como os ânimos.
É importante observar que, se na população ucraniana em geral 17% têm origem russa, no Leste (Donetsk e Lugansk) são 39% e 75% falam russo.
Os protestos que evoluíram em 2014 na capital Kiev e que tiveram na praça Maidan seu epicentro, foram liderados principalmente por milícias de extrema direita apologistas do nazifascismo. Ao conseguirem depor o então presidente Viktor Yanukovych – apoiado pelo Kremlin – as eleições qe seguiram elegeram Zelensky. Ao assumir a presidência, Zelensky incorporou membros dessas milícias ao seu governo, principalmente às forças de segurança do país.
Se em números relativos, esses nazifascistas são minoria, o vigor de suas ações dá-lhes protagonismo. Entre esses extremistas destacam-se as milícias Pravy Sektor e o Batalhão Azov.
A ocupação da Criméia pela Rússia em 2014 acirrou ainda mais a violência nas ações de afirmação desses nacionalistas extremistas e na identificação dos russos como obstáculos à efetivação de seu ideal de nação.
Diante dos números informados por agências internacionais, de mais de 4 milhões de ucranianos refugiados em países da Europa há uma preocupação de analistas com um potencial reforço de ideologias nazifascista no contato desses ucranianos com grupos extremistas dos países que os acolhem.
Também não é menos preocupante a entrega de armamentos aos combatentes ucranianos promovida por potências integrantes da OTAN na atual dinâmica da guerra. Como já se viu em outros conflitos como Afeganistão, Iraque, Líbia e Síria, após o término (ou pausa) do conflito, não há qualquer controle sobre a posse desses armamentos, não raramente fortalecendo milícias e paramilitares.
Sempre parciais e atravessadas por subjetividade e outros senões
É importante ressaltar que não são poucos os estudiosos e analistas de relações internacionais, americanos e europeus que não hesitam em apontar os Estados Unidos como principal responsável pela situação enfrentada hoje pela Ucrânia. Alguns dividem essa responsabilidade entre Estados Unidos e União Europeia. O apontamento de um anacronismo na manutenção da OTAN também tem sido feito por muitos autores, desde muito tempo.
Um exemplo desses estudiosos é o cientista político John Mearsheimer, teórico das Relações Internacionais e autor de livros como “The Israel Lobby and US Foreign Policy” (2007) e “The Tragedy of Great Power Politics” (2001) cuja crítica à política externa dos Estados Unidos é desde muito conhecida e, diante da atual guerra, tem sido uma das vozes mais críticas no meio acadêmico norte-americano e internacional.
Já em 2014, quando Putin anexou a Criméia, Mearsheimer sentenciou “os Estados Unidos e seus aliados europeus compartilham a maior parte da responsabilidade por esta crise”.
No outro extremo, analistas argumentam que independentemente do envolvimento ocidental, Putin conduziria uma política externa agressiva nas relações com as ex-repúblicas soviéticas.
O estudioso sobre a história russa, Stephen Kotkin, professor na Universidade de Princeton, membro sênior da Hoover Institution – Universidade de Stanford e cuja principal obra é uma apurada biografia de Stalin, em três volumes, diverge da análise de Mearsheimer.
Kotkin sustenta que “O que temos hoje na Rússia não é uma espécie de surpresa. Não é algum tipo de desvio de um padrão histórico. [Já estava dado] Muito antes da OTAN existir […] Não é uma resposta às ações do Ocidente. Existem processos internos na Rússia que explicam onde estamos hoje”.
Se na produção acadêmica dos países centrais, as escolhas teórico-metodológicas terminam por influir no resultado das análises de fenômenos complexos e inapreensíveis em sua totalidade, para intelectuais de nações periféricas como o Brasil, os desafios são ainda maiores. “Limpar” de idiossincrasias os modelos de análise e as teorias produzidas no centro, em contextos de disputas por hegemonia, construídas na língua dos dominadores, para interpretar criticamente suas ações no presente é desafio permanente para aqueles que almejam um pensamento autônomo e o desenvolvimento de conhecimento com potencial emancipador.
O reconhecimento da importância da adequada compreensão de sistemas de valores e sentidos de culturas distantes, de instituições antigas, influentes sobre processos decisórios, dá os parâmetros do desafio mas tem também a força de quase imobilizar aqueles que, mesmo imbuídos da mais honesta motivação de busca pelo entendimento, cultivam o senso de responsabilidade intelectual e social.
Se mesmo sob o cânone da ciência são inúmeros os embates acerca das apropriações seletivas de elementos da realidade em contextos como os das guerras, o que dizer da produção jornalística, particularmente do jornalismo de guerra, em circunstâncias como a presente?
Bem sabemos que os relatos “diretos do front” não representam garantia alguma de reprodução da realidade. O profissional que se incumbe de tão arriscado trabalho é sempre sustentado por uma organização que o financia e demanda um produto desse trabalho.
É oportuno lembrar que, o jornalismo de guerra tem formalmente sua origem reconhecida justamente na cobertura da Guerra da Criméia (1853-1856) e cujo jornalista irlandês William Howard Russell (1820-1907), contratado do jornal britânico Times, ganhou notoriedade por seus relatos minuciosos e politicamente posicionados acerca da guerra. Seu jornalismo tinha lado, e era o britânico. Ele se tornou referência para as gerações de jornalistas que vieram.
De lá para cá, cada avanço tecnológico nos meios de comunicação e informação (imprensa, telégrafo, telefone, rádio, televisão) produziram novas possibilidades e desafios para a apreensão da realidade e construção de correspondentes interpretações. O advento da internet e da onipresença tecnológica – criticada pelo intelectual Paul Virilio – instituindo a simultaneidade entre o acontecimento e sua narração em substituição à análise, tem tornado ainda mais difícil a formação de juízos, bem como mais danosas as consequências do abandono da busca da objetividade e de uma ética da responsabilidade.
Numa recente live “Por dentro da guerra” conduzida pelo jornalista Gustavo Conde na Rede TVT os experientes analistas brasileiros das relações internacionais Reginaldo Nasser, cientista político, doutor em Relações Internacionais, professor e autor de livros como “A luta contra o terrorismo: os Estados Unidos e os amigos talibãs” (2021) e “Novas Perspectivas Sobre os Conflitos Internacionais” (2010) e o jornalista José Arbex Jr., doutor em História Social, professor e autor dos livros “Guerra fria: terror de estado, política e cultura” (1997) e “Showrnalismo: a notícia como espetáculo” (2001) entre outros, debateram sobre a guerra na Ucrânia, criticaram a parcialidade da cobertura jornalística ocidental desta guerra e endossaram as críticas à russofobia. Entre diversas convergências e algumas divergências, ambos lamentaram o timing das grandes empresas de comunicação que exploram as guerras apenas durante o tempo em que elas conseguem atrair o interesse de seu público, posteriormente desaparecendo das pequenas e grandes telas.
Avaliaram que a indignação popular e os brados por justiça costumam mobilizar grandes audiências apenas enquanto os acontecimentos estão “quentes”, persistindo apenas os grupos de engajamentos mais organizados e antigos para a manutenção dos protestos e encaminhamento de demandas por ações.
Para aqueles que assistiram e apreciaram a live, que em cinco dias atingiu mais de 22 mil visualizações, ficou o desejo de que “produtos” como esse, com virtuosa combinação de meio e mensagem, se tornassem mais disseminados, contribuindo com uma melhor formação política, reflexiva, do público para a formação de juízos.
No momento em que finalizo esse texto o noticiário informa sobre as centenas de corpos encontrados em Bucha, nos arredores de Kiev, com sinais de tortura e de execução, após retirada de tropas russas. Líderes ocidentais denunciaram tratar-se de crime de guerra cuja responsabilidade deve ser imputada a Putin e convocaram reunião emergencial do Conselho de Segurança da ONU. Autoridades do governo russo, diante da repercussão das imagens aviltantes, acusaram os Estados Unidos e líderes europeus por produzirem fake news com o propósito de criminalizar a Rússia.
Corpos violentados – inclusive de crianças – espalhados por ruas e lançados em valas comuns, famílias destruídas e, ao mesmo tempo, líderes políticos acusando-se mutuamente de uso desses corpos ou de suas imagens para produção de propaganda enganosa, tática útil no jogo político da guerra, revelam que a escalada da guerra de propaganda, além da própria guerra bélica, escalou para um patamar em que a vilania segue rota de normalização e o que deveria ser essencial perde espaço para o que é superficial.
Arnaldo Cardoso, sociólogo e cientista político formado pela PUC-SP, escritor e professor universitário.
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].
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