
A ESTUPIDEZ COLETIVA – Bolsonarismo e Trumpismo têm Lastro
por José Manoel Ferreira Gonçalves
Refazendo a conhecida História de Bonhoeffer e da Estupidez Coletiva
Dietrich Bonhoeffer, era um proeminente intelectual alemão e teólogo, que ergueu-se como uma voz dissonante contra a ascensão do nazismo. Sua firme oposição ao regime totalitário de Hitler culminou em sua prisão, um período que se revelaria fecundo em reflexões profundas sobre a condição humana e os paradoxos da sociedade.
Confinado em sua cela, Bonhoeffer confrontou uma questão lancinante: como era possível que a Alemanha, nação de vanguarda no cenário científico, tecnológico e cultural europeu e mundial, se entregasse com tamanha veemência ao delírio nazista e suas políticas abertamente irracionais e criminosas? A perplexidade diante da adesão fervorosa de seus compatriotas a Hitler, um líder e ideologia que pareciam afrontar a lógica e a moralidade, impulsionou-o a uma busca incansável por respostas.
Dessa introspecção angustiada, germinou uma perturbadora conclusão: o povo alemão, outrora admirado por sua erudição e sofisticação, havia sucumbido à estupidez coletiva. Esta constatação o levou a elaborar um ensaio incisivo sobre a natureza da estupidez, um texto de notável atualidade e relevância para compreendermos os desafios contemporâneos.
Bonhoeffer, em sua análise perspicaz, desmistificou a estupidez como um mero déficit cognitivo individual. Ele a concebeu como um fenômeno primordialmente sociológico e contagioso, florescendo no terreno fértil da interação social. Para o teólogo, a estupidez se propaga como um vírus ideológico, necessitando da adesão de múltiplos indivíduos para se consolidar. Ela se manifesta como um encantamento coletivo, tecido por slogans e narrativas simplistas que sequestram o pensamento crítico e a razão. Assim, mesmo mentes brilhantes e cultivadas podem, em determinados contextos, exibir comportamentos flagrantemente estúpidos, não como uma falha inerente à sua capacidade intelectual, mas como uma manifestação episódica, induzida pelo contágio social.
Indivíduos imersos nesse estado de estupidez coletiva tornam-se impermeáveis à argumentação racional. Alertas sobre as consequências nefastas de suas ações, tanto para si quanto para o coletivo, são sumariamente descartados, ignorados com obstinação. Paradoxalmente, eles se aferram à sua insensatez com um orgulho inabalável, considerando-a, porventura, um sinal de virtude ou discernimento superior.
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Mais alarmante ainda, a tentativa de confrontar a estupidez com a razão pode ser contraproducente e até perigosa. O indivíduo tomado pela estupidez coletiva frequentemente interpreta a argumentação lógica como uma agressão pessoal, reagindo com irritabilidade e, em casos extremos, com hostilidade.
Bonhoeffer adverte que existem momentos críticos na trajetória das sociedades em que a estupidez coletiva se torna uma força avassaladora, aparentemente invencível. É nesse caldo cultural turvo que germinam as ditaduras e se prenuncia o declínio das nações, quando a irracionalidade coletiva mina os alicerces da civilidade e do progresso.
Posteriormente, o historiador e economista italiano Carlo Cipolla, inspirado na linha de raciocínio de Bonhoeffer, refinou a teoria da estupidez coletiva em um conjunto conciso de cinco leis fundamentais:
- Lei da Subestimação: Invariavelmente, subestimamos a prevalência da estupidez na sociedade. Ela é mais onipresente do que imaginamos.
- Lei da Distribuição Universal: A probabilidade de um indivíduo ser estúpido transcende barreiras de educação, status social, riqueza ou inteligência. A estupidez se distribui equitativamente por todos os estratos da população.
- Lei do Dano Gratuito: O indivíduo estúpido causa prejuízo a outrem e a si próprio, sem auferir qualquer benefício tangível dessa ação danosa. Sua ação é intrinsecamente destrutiva e desprovida de lógica utilitária.
- Lei da Imprevisibilidade: Pessoas não estúpidas tendem a subestimar o potencial lesivo dos estúpidos. A irracionalidade e a imprevisibilidade da ação estúpida tornam difícil antecipar e mitigar seus efeitos perniciosos.
- Lei da Periculosidade: Os estúpidos representam uma ameaça maior do que bandidos ou indivíduos mal-intencionados. Um estúpido investido de poder se torna um agente de destruição em larga escala, potencialmente catastrófico para a sociedade.
Em consonância com a visão de Bonhoeffer, a libertação da estupidez coletiva não emerge de um despertar individual isolado, mas sim da desintegração ou crise do sistema social ou regime político que a fomenta e perpetua. Somente quando as estruturas que sustentam a irracionalidade coletiva vacilam, e a dolorosa dissonância entre a realidade e a narrativa imposta se torna insuportável, é que os indivíduos podem se desvencilhar do jugo da estupidez e trilhar o caminho da lucidez e da responsabilidade.

José Manoel Ferreira Gonçalves é jornalista, cientista político, advogado e doutor em engenharia. Dedica-se ao estudo da ecologia e meio ambiente, bem como aos modais de transporte, notadamente o ferroviário, para cuja bandeira milita.
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A estupidez sempre esteve presente. Mas contida pelo bom senso. Ocorre que num mundo fluído, o estúpido, ao se nivelar ao sensato, pela óbvia perda da sensatez, arroga-se em sabedoria, que inexiste.
Não é preciso inteligência pra ganhar dinheiro; qualquer ladrãozinho o faz. Mas o sensato se encolhe diante do sucesso do estúpido endinheirado, e, de encolhimento em encolhimento, chegamos ao cenário atual.
E o retorno à normalidade é dificílimo, porque o sensato é naturalmente cheio de dúvidas, sobre o que é certo ou errado; o estúpido, idiota, só tem certezas. Quanto mais perigoso, mais certeza tem.
Excelente!
As redes sociais ajudaram a propagar o vírus numa escala e velocidade avassaladoras
Excelente e esclarecedor artigo.
“Os idiotas vão tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos”. – Nelson Rodrigues
A esse respeito, o Einstein escreveu no artigo intitulado “O Perigo Fascista e o Desemprego”:
“O New York Times convidou-me a exprimir-me brevemente sobre o perigo fascista. Em resposta a esse convite envio as linhas que se seguem. Pretendendo ser breve, exprimir-me-ia de um modo categórico e dogmático que poderia dar uma impressão de imodéstia. Pedirei, portanto, aos leitores o favor de serem indulgentes para com a forma das minhas considerações e de não se interessarem senão pelo seu conteúdo.
Quase toda a gente neste país considera o regime e o modo de vida fascistas um mal contra o qual nos devemos defender por todos os meios disponíveis. É reconfortante ver os espíritos concordarem nesse ponto. Mas uma tal unanimidade não existe nem acerca da natureza desse perigo nem sobre os meios a mobilizar para o afastar. Exprimirei o meu ponto de vista sobre este.
Eu tive oportunidade de observar a propagação da epidemia na Alemanha. Não é sem dificuldades nem reticências que o homem renuncia às suas liberdades e aos seus direitos. Mas basta que um povo se veja, em grande parte, confrontado com uma situação insuportável para que se torne incapaz de um julgamento são e se deixe abusar voluntariamente por falsos profetas. “Desemprego” é a palavra terrível que designa essa situação. Também o recear do desemprego é igualmente lancinante.
A ausência constante de segurança económica engendra uma tensão que as pessoas são incapazes de suportar a longo termo. Essa situação será ali pior do que aqui porque, num país fortemente povoado e dispondo de recursos naturais extremamente limitados, as flutuações económicas fazem-se sentir com ainda maior dureza.
Existe também aqui uma situação semelhante; o progresso tecnológico e a centralização da produção provocaram um desemprego crónico e uma parte muito considerável da população em idade de trabalhar luta em vão para se integrar no processo económico. Sobreveio desde então que tanto aqui como lá os demagogos encontraram algum sucesso provisório mas, graças à existência neste país de uma mais forte e mais avançada tradição política, eles não duraram muito tempo.
Estou convencido de que só medidas eficazes contra o desemprego e a insegurança económica do indivíduo poderão realmente afastar o perigo fascista. Por certo é necessário contrariar a propaganda fascista levada a cabo do exterior. Mas é preciso abandonar a ideia errónea e perigosa de que alcançaremos o fim do perigo fascista através de medidas puramente políticas. Tudo se passa, pelo contrário, como quando existe uma ameaça de contágio pela tuberculose. É certamente bom que existam medidas de higiene impeditivas logo que entremos em contacto com os germes da doença, mas uma boa alimentação é ainda mais importante, dado que ela reforça as defesas naturais do indivíduo contra a infecção.
Todos os que se interessam pela salvaguarda dos direitos cívicos neste pais devem, por conseguinte, estar disponíveis também a procurar de forma sincera uma solução para o problema do desemprego, tal como devem prestar-se aos sacrifícios necessários para a alcançar. É preciso então perguntar se não é justificado sacrificar uma parte da liberdade económica se isso permitir em contrapartida garantir a segurança do indivíduo e da comunidade política. Não é preciso considerar estas questões de um ponto de vista sectário, pois trata-se de nos defendermos contra um perigo que a todos diz respeito(1).
O desempregado não sofre somente por estar privado de bens de primeira necessidade. Ele sente-se ainda excluído da comunidade humana. Ele vê recusada a possibilidade de colaborar no bem-estar geral; não goza de nenhuma consideração, sendo mesmo percebido como um fardo. É absolutamente natural que ele tenha o sentimento de que nós procedemos incorrectamente perante ele e que, procurando desembaraçar-se por si mesmo, tenha pouco a pouco recorrido a meios ilegais, a actos criminosos…”
“…Mas, se um dentre eles consegue mesmo assim encontrar um emprego, após um período mais ou menos longo de desemprego, ele não é mesmo assim um homem livre, porque é inevitável que receie encontrar-se, em breve, de novo no desemprego. Esse estado de tensão bem real dos que têm um emprego, junto ao desemprego bem real daqueles que perderam o seu, torna as pessoas amargas. Na busca de uma saída, eles concedem sem discernimento a sua confiança ao primeiro que chegue a prometer-lhes uma melhoria da sua situação. É aí que reside o perigo político do desemprego. O perigo de ver o desemprego ameaçar a democracia é particularmente elevado quando são jovens aqueles que devem suportar essas amargas decepções; eles preferem não importa que combate à resignação e a sua falta de experiência torna-os cegos aos perigos e aos riscos que comporta uma acção irreflectida…” – Einstein, O Perigo Fascista
https://www.marxists.org/portugues/einstein/1939/04/30.htm