Brasil, século XXI: uma comédia teatral francesa do século XIX, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Em casa aproveito parte do tempo para ler. Tenho apreciado muito a leitura do livro A Gênese da Sociedade do Espetáculo, de Christophe Charle, Companhia das Letras, São Paulo.

Brasil, século XXI: uma comédia teatral francesa do século XIX

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Desde que a pandemia começou minha rotina tem sido a mesma. Trabalho em casa, vou ao escritório uma vez por semana. Só saiu de casa duas outras vezes por semana: uma para fazer a feita, outra para comprar alimentos no mercadinho próximo de casa. Nessas oportunidades levo o lixo à lixeira do condomínio. Evito aglomerações, quando vou ao escritório não uso transporte público em horário de pico. Uso máscara e sempre tenho comigo uma bisnaga pequena de álcool para higienizar as nãos. Tomei duas doses de vacina, mesmo assim preferi manter a rotina não por medo e sim porque não há nada melhor que eu possa fazer para evitar contrair e transmitir uma doença potencialmente letal.

Em casa aproveito parte do tempo para ler. Tenho apreciado muito a leitura do livro A Gênese da Sociedade do Espetáculo, de Christophe Charle, Companhia das Letras, São Paulo. Comprei o livro em 2012, mas só agora resolvi mergulhar nele. Aqui não vou resenhar o livro, apenas fazer algumas considerações sobre uma peça que o autor menciona de maneira muito sucinta: L’Epidémie, de Octave Mirbeau (1898)

Abaixo um fragmento da peça disponível na internet.

“O prefeito.

Sem dúvida! você tem razão… Em princípio tem razão… Mas você conhece o caráter autoritário, violento, todo inteiro, do nosso prefeito marítimo… Ele me fez entender que iria mover os regimentos… que os enviaria para outra cidade… Chega de comércio, senhores… chega de música, aos domingos!… Seria um verdadeiro desastre para nossa querida população… “Não posso deixar meus soldados morrerem como moscas”, disse-me. …

O deputado da oposição.

Vamos! Ele quer nos assustar… Movimentamos um arsenal francês como um circo americano?… Transportamos um porto de guerra como cavalos de madeira?…

O Membro da maioria.

E depois, é lamentável, sim!… Tenha pena deles, não me importo… mas os soldados são feitos para morrer!…

O deputado da oposição.

É o trabalho deles morrer! …

O Membro da maioria.

Seu dever de morrer! …

O muito velho Conselheiro.

Sua honra de morrer!

O deputado da oposição.

Hoje que não há mais guerras, epidemias são escolas, necessárias e admiráveis ​​escolas de heroísmo!… pátria? …

O prefeito.

Se não houver mais guerras, ainda haverá conselhos de guerra! …

O membro da oposição, encolhendo os ombros e continuando.

Onde então cultivariam essa virtude tão francesa: coragem?… O que nos pedem é consagrar a covardia!

O Membro da maioria.

Para desacreditar o exército!

O deputado da oposição.

Para diminuir a honra nacional… para matar o patriotismo!… Bem, não! (Acordo Geral.)

Doutor Tríceps. (Ele se levanta… Movimento de atenção.)

Associo-me às ideias tão generosamente expressas pelos meus ilustres colegas… Vou mais longe… Hoje, a ciência está nos micróbios, na água de nascente, na habitação saudável… antigamente!… (Com desprezo.)… À higiene!… (Dá de ombros.) Esta é uma hipótese simples, senhores… uma hipótese… de um homem de letras, de um intelectual, que nenhuma experiência decisiva e leal não existe. veio confirmar… Amanhã outras teorias, o contrário desta um, seguir-se-ão, tão pouco convincentes… tão pouco demonstrados pelos factos… Ora, deveriam os municípios subordinar a sua atividade progressista e os seus recursos orçamentais a fantasias inconsistentes e ruinosas para os cientistas?… Devem curvar-se perante os caprichos de uma ciência que não sabe o que quer e que se nega, todas as semanas?… Acho que não! (Aplausos.) E, no entanto, eu também sou um erudito! (Aplausos.)

Segundo Conselheiro.

Muito bem, muito bem!…

Doutor Tríceps.

Nossos pais, senhores, não sabiam dessas coisas… Não conheciam os bacilos, os caldos de cultura, os soros, as inoculações, as vacinas, as microbiografias e as comissões de higiene!… Não sabiam o que eram congressos, médicos, o que O Sr. Brouardel é!… Contentavam-se com as casas e com a água que tinham!… Nem sequer tomavam banho!… nem banho!… compreende?… Ora, a história não nos diz que estavam em pior situação isso!… Ao contrário!”

Há dois anos o governo Bolsonaro sabota o combate à pandemia.

Primeiro, o presidente da república se recusou a comprar vacina e recomendou o uso de cloroquina (um medicamento extremamente tóxico ineficaz contra o coronavírus). Quando a pandemia começou a se alastrar e a matar milhares de pessoas por dia, Bolsonaro não decretou confinamento. Muito pelo contrário, ele lutou no STF para revogar decretos estaduais e municipais, pois queria manter as lojas e as igrejas abertas ao público.

Bolsonaro se recusou e se recusa a usar máscara. Quando a vacina foi adquirida e começou a ser produzida no Brasil ele se recusou a tomá-la e continuou receitando o uso de cloroquina. A catástrofe de Manaus ocorreu porque o governo não abasteceu a cidade com oxigênio. Agora ele luta para impedir a vacinação das crianças e incita seus milicianos a ameaçar os técnicos da Anvisa.

Há alguns dias o comandante do Exército disse que a vacinação da tropa seria obrigatória. Essa decisão foi imediatamente revogada. Para agradar Bolsonaro, o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira voltou atrás colocando em risco as vidas dos soldados e a defesa do nosso país.

O PGR se recusa a denunciar Bolsonaro com base no relatório da CPI da Covid. A diligente omissão de Augusto Aras ajudou a maximizar o número de mortes durante o genocídio pandêmico? Ele também será responsável pelo aumento da mortandade infantil? Essas duas perguntas são retóricas. Dificilmente alguém será responsabilizado pelo que está ocorrendo. Até a presente data, nenhum filho ou neto de Bolsonaro morreu em decorrência da pandemia. Quando isso ocorrer talvez ele finalmente se convença de que algo deve ser feito.

É aqui que a realidade encontra a ficção. Na peça L’Epidémie, de Octave Mirbeau (1898) o “…conselho da cidade está reunido porque uma epidemia de febre tifóide começa a atingir os quartéis e bairros pobres da cidade. Totalmente insensíveis à situação dos militares e dos pobres, os vereadores recusaram todos os fundos destinados ao saneamento da cidade, até saberem que um burguês acabara de morrer de febre. Os elogios grotescos a esse burguês anônimo se sucedem e os créditos são liberados.”

Os créditos liberados para o combate da pandemia no Brasil são insuficientes. A população não está sendo sistematicamente testada. Nesse momento, medidas de restrição deveriam ser adotadas, mas Bolsonaro prefere dizer que a nova variante do vírus é bem-vinda ao Brasil. Essa postura é cômica e trágica. Cômica, porque nenhum outro governante seria capaz de dizer isso. Trágica, porque a progressão geométrica do contágio rapidamente lotará os hospitais e causará milhares de mortes. Os filhos e netos de Bolsonaro também podem não ser poupados.

Há uma evidente simetria entre a realidade brasileira e a retratada na peça de Octave Mirbeau. Os políticos da situação apostam na catástrofe como se ela fosse necessária ou impossível. Eles se dizem patriotas e nacionalistas, mas estão colocando em risco as tropas brasileiras sem que isso possa resultar em qualquer vantagem militar ou política. Vários médicos, inclusive aqueles que comandam o CFM, reproduzem a irracionalidade retórica do Dr. Tríceps como se os cientistas estivessem errados. Verbas alocadas para o combate à pandemia não foram utilizadas, ou pior, acabaram sendo empregadas para a aquisição de coisas desnecessárias nesse momento (vide o escândalo que ocorreu no Exército). Ironicamente, apenas os políticos da oposição realmente se esforçam para salvar a população e garantir a capacidade operacional das Forças Armadas e muitos dele foram vítimas de perseguição durante a Ditadura Militar.

Algumas vezes, a ficção imita a realidade. Em outras, é a realidade que mimetiza a ficção. Sob o governo Bolsonaro a realidade brasileira se tornou tragicamente semelhante à ficção cômica de Octave Mirbeau. Ao sair do teatro em 1898, os expectadores franceses de L’Epidémie podiam rir e refletir sobre a comicidade da peça. Mergulhados na insanidade governamental, os brasileiros não tem como sair da tragédia pandêmica. Apoiem ou não o governo eles estão sendo obrigados a ser expectadores da própria desgraça e nem mesmo o Exército é capaz de se defender.

Repito: nesse momento nem mesmo o Exército é capaz de se defender da bestialidade do capitão formado em suas fileiras na década de 1970. Obviamente, isso poderia muito ser o tema para uma tragicomédia teatral em 3 atos, com diversos generais morrendo infectados ou de raiva antes do final.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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