Ciência jurídica, multiplicidade da vida e interrogação, por Eliseu Venturi

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Odilon Redon. Orpheus. [s.d.]

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Ciência jurídica, multiplicidade da vida e interrogação

por Eliseu Raphael Venturi

“Mas estar em meio a essa ‘rerum concordia discors’ [discordante concerto das coisas] e toda a maravilhosa incerteza e ambiguidade da existência e ‘não interrogar’, não tremer de ânsia e gosto de interrogação, nem sequer odiar quem interroga, talvez até se divertindo levemente com este – isto é o que percebo como ‘desprezível’, e tal percepção é o que busco primeiramente em cada indivíduo: – algum desatino está sempre a me convencer de que todo ser humano tem esta percepção, como ser humano. É minha espécie de injustiça”. (NIETZSCHE)².

De que adiantará todo o elogio da metodologia, todo tema escolhido, toda delimitação do tema afunilada, todo problema e hipóteses, toda justificativa, objetivos, metodologia e resultados, todo gênero textual e toda acumulação de referências bibliográficas, documentais, legislativas, jurisprudenciais, nacionais e internacionais, se uma pesquisa simplesmente não tiver um coração? Um rosto? Um ânimo? Um pulso e um impulso? Uma ânsia e um gosto de interrogar, buscar, descobrir, criar?

De que adiantarão todos os esforços se os textos não forem lidos, indagados, perquiridos e realmente discutidos? E se as vozes não forem levadas a sério ou sequer ouvidas? Se o império da mesmidade vencer a variação das outridades? Quais os efeitos da derrota das leituras cerradas? Quais os efeitos dos monismos, dos dogmatismos, das univocidades?

Qual será a responsabilidade ética em se usar expedientes metodológicos para assassinar o espírito investigativo de jovens e não jovens, para suprimir o potencial da investigação, engavetar bons projetos, aniquilar boas dissertações, condenar boas teses e depois recobrir tudo com o pastoso verniz opaco de elogios fáceis, dos amigos fáceis, das alianças espúrias, da exaltação de egos frágeis e inseguros?

Do que adiantarão bancas e mais bancas em mesas de madeira antiga, com avaliadores sem humildade, sem localização no tempo e espaço, sem quadros teóricos, impondo suas leituras de outrora sem chegar aos textos que lhes são dados, apenas reclamando falta de clareza que apenas explicita sua inassumida incapacitação da leitura e da compreensão?

O que será do Direito enquanto continuar a ser reduzido a apenas Resoluções infelizes, regras equivocadas, micronormatividades não genuínas, em instrumentos de adulterações ilegítimas sujeitas à crítica fácil?

Que mundo profissional, prático, pragmático será forjado com tanta falsificação epistêmica e tanta alteração conjuntural? Que sociedade de espetáculos de celebridades da discrição se alimenta em torno ao culto dos mesmos e velhos de sempre?

Para que conceitos e pureza de conceitos, fetiches de filósofos e teóricos franceses, alemães, italianos ou norte-americanos, mas os latino-americanos também, se todos os caminhos só levarem à obtusidade mental colonizada, reducionista da riqueza da miséria da realidade, da sagacidade e do assalto da vida, do caráter sempre novo e surpreendente dos desafios das relações sempre instáveis?

Do que adianta esquivar e salvar o Direito da fogueira da crítica, e mesmo assim aniquilar os seus potenciais interpretativos e argumentativos, extinguir sua sempre presente dimensão filosófica, afirmar o seu reducionismo técnico categorial, seu pluralismo metodológico e suas dimensões técnicas e estéticas?

Do que adianta tanta especialização cercada de muros de comunicação, em que não se pode pensar em questões, em correlacionar aportes diferentes, em aceitar a fragmentação pós-moderna de todo conhecimento e nele encontrar as linhagens do novo, sem ressentimentos?

Para que tantos jogos de palavras de má-fé, violações da ética da comunicação, malabarismos intercalando literaturas e liturgias? Por que esta religião em torno da ciência, esta confusão em torno ao senso comum, essa repulsa em torno ao questionamento legítimo, essa indisposição para perguntar mais e mais e além? Por que o pudor em investigar?

De que adiantam acumulações de toneladas de títulos e vaidades, elogios de brilhantismo e genialidade, toneladas de publicações em co-autorias questionáveis e cultivo de alunos e orientandos, se não há a subjetividade, a autoria, a técnica e a arte de fazer ciência em meio a um mundo que se desfia? De que adiantam tantas metas não contestadas, tanta produtividade não resistida, tanta normatividade naturalizada, automatizada e apreendida por racionalidades não científicas?

Para que servirá todo esquadramento técnico se ele sufocar a humanidade, a criatividade, a ousadia, o desejo do saber, a capacidade de articular fontes, de buscar soluções, de revelar fraturas, de denunciar problemas ainda maiores, de abrir campos de batalha e de riscos?

Do que valerão centenas de páginas impressas, de palavras lançadas ao mundo, se não motivarem continuidades, fertilizarem ideias, abrirem progressões ou apontarem absurdos naturalizados? Sem direções, sem ampliações, sem buscar pelo maior e pelo mais sempre potencializados pelo pensamento e cimentados pela apropriação da desgraça como mero insumo dos discursos de conservação da morte, por quê?

Em que contribuirão referências bibliográficas oriundas de grupos internos de interesse, pesquisas restritas à afirmação política de grupos internos de interesse, seleção de professores segundo afirmações políticas de grupos de interesse interno? Em prol de quem retornarão os frutos dos grupos restritos e feudais de interesse? O que se fará dos corpos que ficarem pelo caminho?

Em que contribuirão os mesmos reducionismos metodológicos a estes mesmos grupos, a extinção de ideias e da pluralidade em nome destas mesmas seitas, o sacrifício epistemológico em nome destes mesmos ídolos auto-eleitos a partir de alpinistas sociais e acadêmicos?

Qual será o sentido social de uma ciência cativa e apartada de seu potencial de transformação, de seu potencial crítico, de seu potencial libertador, de seu potencial emancipador, de seu potencial anti-exclusão e inclusivo? De que valem os mesmos reducionismos de referências e da exclusão de vozes em seu cerne?

Para que servirão polêmicas inúteis entre autor-data ou rodapé, questiúnculas gramaticais, pontuações de vírgula depois de travessão, se, afinal, as letras forem mortas, retóricas, incrédulas, ignorantes, descontextualizadas, incoerentes, descompromissadas?

Se não houver uma maravilhosa incerteza por detrás de letras e papel, da qual emerja um trabalho de investigação, um posicionamento de leitura do mundo, uma proposta de enfrentamento?

De que valerá uma pesquisa que só expresse um ponto em um tabuleiro de batalha naval de posições políticas acadêmicas? Que seja um descendente cativo das obsessões de um orientador em ruínas, ou penas caídas de um pavão descolorido pelo esclerosamento das ideias repetidas?

Para que insistir em abrir textos fechados ou fechar textos abertos, pelo simples prazer sádico de impor autoridade? Ao que contribuirá uma formação científica tacanha, que promova profissionais com visão de mundo restrita, limitada, destinada a diminuir o mundo, a experiência, o potencial da vida?

Qual o sentido da negação da liberdade, de uma liberdade que sempre é para poucos, e da utilização da ciência para promover as desigualdades, os estigmas, os preconceitos, as discriminações? Qual o sentido de uma produção científica omissiva, que promove em seu silêncio a perpetuação das opressões mais silenciosas e mais gritantes e que julga por panfletários os referenciais mais caros da mudança?

Por que estes nobres senhores e senhoras estão no mundo, afinal?

Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Editor executivo da Revista da Faculdade de Direito UFPR e Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.

¹ Odilon Redon. Orpheus. Disponível em: <https://www.odilon-redon.org/Orpheus.html >. Acesso em: 23 ago. 2018
² NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 53-54.
 
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

1 Comentário

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  1. O Direito não é uma ciência.

    O Direito não é uma ciência. Nunca foi.

    Não por acaso, no início do século XVI, Erasmo de Roterdam disse:

    “Pretendem os advogados levar a palma sobre todos os eruditos e fazem um grande conceito da sua arte. Ora, para vos ser franco, a sua profissão é, em última análise, um trabalho de Sísifo. Com efeito, eles fazem uma porção de leis que não chegam a conclusão alguma. Que são o digesto, as pandectas, o código? Um amontoado de comentários, de glosas, de citações. Com toda essa mixórdia, fazem crer ao vulgo que, de todas as ciências, a sua é a que requer o mais sublime e laborioso engenho. E, como sempre se acha mais belo o que é difícil, resulta que os tolos têm em alto conceito essa ciência.” (Elogio a Loucura)

    Quando muito o Direito é um instrumento de administração dos conflitos e de pacificação da sociedade.

    A guerra é uma continuação da política por outros meios. (Carl Phillip Gottlieb von Clausewitz).

    Antes, durante e depois do golpe de 2016 o Direito foi reduzido à uma continuação da guerra política sem a necessidade de votos. 

    Karl Marx disse que o Direito era um instrumento que legitimava a exploração de uma classe por outra.

    Na fase atual o Direito se transformou numa arma de ataque usada pelos juízes contra aqueles que eles consideram inimigos dos privilégios senhoriais e feudais que eles desfrutam.

    Eles, os juízes, se colocaram acima de todas as classes econômicas. Por enquanto eles desfrutam um apoio esfuziante da imprensa e um apoio reservado e silencioso do Exército. 

    Todavia, eles não controlam os canhões. Quando foram despedaçados por eles nenhuma das classes econômicas prejudicadas pelo golpe de 2016 irá levantar uma palha para defendê-los. 

     

     

     

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