
A ameaça do ressurgimento do autoritarismo, por Fernando Castilho
A história da humanidade é repleta de levantes populares contra a tirania de governantes, muitas vezes surpreendem o mundo. Quando se esperava que o povo estivesse adormecido e conformado com as injustiças, de repente, bum! A história muda seu curso.
A Revolução Francesa de 1789 é um exemplo clássico. A insatisfação com o absolutismo do reinado de Luís XVI era crescente, agravada pela situação econômica. A Bastilha, usada como prisão para presos políticos e opositores do governo, simbolizava a arbitrariedade e o poder absoluto do rei. Muitos intelectuais, nobres e outros que discordavam do regime eram aprisionados lá. Quando parecia que o povo estava adaptado à tirania, ele se rebelou e derrubou o regime.
Respeitadas as diferenças devido aos contextos históricos distintos, o mesmo ocorreu durante a Revolução Russa em 1917 e a Revolução dos Cravos em Portugal, em 1974, só para citar dois exemplos.
Hoje, especula-se sobre os desdobramentos da ofensiva autoritária que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, impõe à democracia de seu país e ao restante do mundo. Conseguirá ele anexar sem resistência o Canadá, a Groenlândia e o Canal do Panamá? Parará por aí ou invadirá outros países? Tomará a Faixa de Gaza para os EUA, como está prometendo, com o aval de Benjamin Netanyahu? Chegará à Europa? O céu pode ser o limite. O inferno também.
O momento é de perplexidade, assim como ocorreu na Europa após Hitler invadir a Polônia. Mas, aos poucos, o susto dará lugar à reflexão e, quem sabe, as reações se organizarão.
O slogan de Trump, “Make America Great Again”, ainda engana parte do povo estadunidense, que hoje convive com várias mazelas, como o crescente aumento da população de rua (estima-se que seja o triplo do Brasil) e a falta de um sistema gratuito de saúde, que faz com que as pessoas rezem para não ficarem doentes e, quando ficam, evitem procurar hospitais. Além disso, desde o governo de Ronald Reagan, na década de 1980, os salários reais (ajustados pela inflação) nos Estados Unidos têm praticamente se estagnado, apesar do crescimento econômico e do aumento da produtividade. Isso reflete uma crescente desigualdade na distribuição de renda. Ou seja, Trump foi eleito por uma população desesperada que queria que seus problemas fossem resolvidos rapidamente.
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A deportação de milhões de trabalhadores estrangeiros sem documentação, prometida por Trump e já em andamento, deverá afetar significativamente a economia. Pequenas e médias empresas que empregam essa mão de obra barata e sem qualificação acabarão por fechar suas portas, gerando queda de arrecadação. Ou terão que contratar nativos com salários mais altos, o que aumentará a inflação, que já é crescente no país.
Portanto, se a “MAGA” não der respostas a curto prazo, não se descarta a possibilidade de ocorrerem protestos que, no início, serão reprimidos, mas poderão evoluir para conflitos internos e até guerra civil, algo não inédito nos EUA.
O aumento das taxas de importação, já em curso, afetará inúmeros países, inclusive o Brasil, que já vê com muita preocupação a escalada da taxação do aço e do alumínio em 25%. Medidas como essa fazem com que cresça cada vez mais o sentimento mundial anti-Trump. Contudo, isso não será um motivo para guerras, já que não há como confrontar o poderio militar dos EUA.
Onde a situação pode se complicar é na soberania. Embora Canadá e Dinamarca (que tem a Groenlândia como território) não tenham condições de resistir a uma invasão das forças armadas dos EUA, de acordo com os discursos de seus governantes, isso não se dará sem resistência. Lembremos que a Dinamarca faz parte da OTAN. Conforme diz o Artigo 5 do Tratado do Atlântico Norte, “se um membro da OTAN for atacado, é considerado um ataque contra todos os membros”. Isso significa que todos os outros membros devem ajudar o país atacado, inclusive com forças armadas, se necessário. Não podemos esquecer que em 1975 os Estados Unidos, mesmo com seu poder militar incomparável, perderam a guerra para um país pequeno chamado Vietnã, pobre e agrário.
Infelizmente, o Panamá já capitulou e deixou a Rota da Seda implementada pela China.
E Gaza? Ah, Gaza. O primeiro-ministro de Israel achou a ideia de Trump muito boa. Os palestinos deixariam de existir e sua terra passaria a pertencer aos EUA para fazerem o que quiserem. Quando se implementa medidas para fazer um povo desaparecer, que nome se dá a isso?
Fazer a América grande novamente é aumentar seu território. Essa é a mensagem escondida no boné fabricado na China. Mas se esse enorme transatlântico chamado Europa, por enquanto, pode enfiar a cabeça num buraco e fazer de conta que isso não é com ela, quando obrigado a desviar do iceberg, terá que vencer sua enorme inércia para evitar a tragédia. Seria aconselhável que a União Europeia já começasse a colocar as barbas de molho. Alguma reação já houve. O bloco repudiou a taxação do aço e do alumínio.
Trump se esqueceu de combinar com os russos. E também com os chineses. Por enquanto, Putin está quieto, ocupado com a guerra com a Ucrânia e assistindo tudo de soslaio. Já Xi Jinping está respondendo à altura, taxando produtos dos Estados Unidos.
Ninguém tem bola de cristal e o futuro não é determinado pelo destino, podendo mudar a qualquer momento pelos mais variados motivos. Porém, é correto afirmar que se o mundo assistir ao avanço de Trump como aquele sapo na panela que vai se adaptando a cada grau que a temperatura da água aumenta, quando perceber, já estará fervido.
Fernando Castilho é arquiteto, professor e escritor. Autor de Depois que Descemos das Árvores, Um Humano Num Pálido Ponto Azul e Dilma, a Sangria Estancada.
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