Daniel Afonso da Silva
Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de "Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas". [email protected]
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Milan Kundera, o Papa Francisco e o “fanatismo da indiferença”, por Daniel Afonso da Silva

Quando tudo se pode e vale e nada se pode proibir, vive-se, em verdade, num império de pulsões, ilusões e desatinos. Namora-se 1984.

Milan Kundera, o Papa Francisco e o “fanatismo da indiferença”

por Daniel Afonso da Silva

O anúncio da morte de Milan Kundera, no último dia 11 de julho de 2023, causou estupefação em todos aqueles que, em algum momento da existência, ressentiram o êxtase, fugidio ou demorado, provocado pela sua A insustentável leveza do ser. Como Monalisa, Pietá, Ilíada, Fausto, Irmãos Karamazov, Dom Quixote ou Dom Casmurro, essa obra seminal parecia emergir de um ser ausente, transcendente, imortal. De um agente eterno, onisciente, onipresente. Feito um Funes, completamente memorioso, tipo dos tipos de Jorge Luis Borges.

A surpresa, portanto, da morte física de Milan Kundera, portador dessa alma inolvidável, provocou sentimentos contraditórios em todos aqueles que alargaram a sua impressão da vida através de suas miradas. Sendo que uma delas diz respeito ao maior debate de nossos dias que segue sendo o ocaso do Ocidente.

O ocaso do Ocidente teve os seus sintomas mais eloquentes diagnosticados pelo incontornável Sigmund Freud em sua alusão ao mal-estar da civilização e ao futuro dessa ilusão tem quase um século. Antes de Freud, Nietzsche, em Gaia, já dizia que Deus estava morto e Fiódor Dostoiévski, em todas as partes, já evocava que, “Se Deus está morto, tudo é permitido”. O custo dessa permissividade oriunda da ausência de Deus, todos sabem, ajudou a protagonizar a hecatombe de 1914-1918, quando a razão venceu o medo e os ocidentais simularam um Hades terreno. Feito um Apocalipse. Feito em miniatura. Feito sob medida pelo Ocidente.

Um pouco depois dessa tragédia total indescritível, Oswald Spengler popularizou o seu entendimento sobre o inevitável declínio desse Ocidente que produziu 1914-1918. Ao mesmo tempo, Erich Auerbach, autor de Mimésis, imortalizou a sua compreensão sobre um tipo de civilização, que se ajoelhou em trincheiras e que ia desaparecendo.

Os totalitarismos dos anos seguintes, a Segunda Guerra Mundial, a Shoah, o never more onusiano, o multiculturalismo e o identitarismo decorrentes do mal-estar das descolonizações tornaram esse debate imensamente sofisticado sobre o Ocidente num artefato quase leviano. Quase ninguém seguiu considerando o Ocidente um assunto digno de reflexão demorada.

Somado a isso, o fim das certezas marinado na bien-pensance do pós-modernismo dos anos de 1970 passou a alimentar o relativismo de full contact onde, literalmente, tudo começou a poder e valer. Consequentemente, subitamente, nos anos de 1980-1990 e no século XXI afora, como queriam os rapazes e as moças baby boomers soixante-huitard, virou, no Ocidente, “proibido proibir”.

Onde tudo se pode, tudo vale e nada se pode proibir, claramente, tudo deixa de ter sentido. Desaparece a leveza. Tudo vira sustentável. Mesmo que demasiado pesado. Muitos validam. Poucos reprovam. Mas, de fato, nenhum ser suporta.

Tudo isso tem feito o discurso da ausência de hierarquia retornar como perversidade autoritária tipo faroeste onde os fracos não têm vez. Nunca se denunciou nem se processou, arbitrariamente, tanto desde então. Nunca se vivenciou tantas evidentes injustiças. George Orwell já havia antecipado tudo isso. Quando tudo se pode e vale e nada se pode proibir, vive-se, em verdade, num império de pulsões, ilusões e desatinos. Namora-se 1984.

Pois em 1983, dois anos depois de receber a cidadania francesa para viver formalmente o Ocidente, Milan Kundera, originalmente checo, apresentou a sua impressão sobre essa situação periclitante do Ocidente em seu intrigante Un Occident Kidnappé ou la tragédia de l’Europe centrale, publicado no número 27, de Le Debat, de Pierre Nora. Esse texto formidável, somente agora, quarenta anos depois, traduzido para a língua portuguesa e em vias de publicação pela Companhia das Letras, merece a integral atenção de todas a gerações que seguem vivas e ativas nesta quadra da história que sobreviveu ao fim da história.

O mal-estar geral do Ocidente, na impressão de Milan Kundera, decorria e decorre ainda hoje, do mal-estar dos ocidentais com a sua fé em Cristo. Cristo e a cristandade sempre foram e serão a unidade universal dessa civilização.

Desde a decapitação do monarca francês, continua o literato, que o fetiche da razão virou uma tremenda ilusão. Le Dieu chaché [o Deus escondido] como cimento da civilização ocidental migrou para a cultura – daí a profusão da produção artística europeia extraordinariamente expressivamente rica do Iluminismo às guerras totais de 1914 a 1945 –, mas depois 1945 esse Deus, unidade universal, foi transferido da cultura para a democracia. Uma democracia de auspícios liberais norte-americanos, protagonizada pelo american way of life e imposta ao Ocidente e ao mundo inteiro como valor universal.

Dito de outra maneira, a europeização do mundo iniciada 1492 foi se transformando em americanização do Ocidente depois de 1776 e ocidentalização americanizada do planeta depois de 1945. A dita interdependência complexa entendida como globalização após 1970 e intensificada após 1990 nada mais tem sido que o prolongamento dessa ocidentalização americanizada.

Ainda em 1983, Milan Kundera já antevia que o fim da história e a irresistibilidade da democracia liberal não passariam de quimera. O mundo, mesmo o ocidental, depois de 1989-1991, seguia amplo e vasto. Amplo e vasto mundo que não tardaria a vivenciar eventos imponderáveis. Sendo o principal, a revanche dos povos retirados da história.

A revanche desses povos começou sorrateira. Quem sabe já anunciada pelo Haiti dos tempos de Toussaint Louverture no início do século XIX.  Quem sabe massificada pela aceleração da descolonização da África nos anos de 1960-1970. Mas o fato foi que essa revanche chegou ao seu zênite e se instalou no tempo após o 11 de setembro de 2001.

O simbolismo do 9/11 reabilitou, no Ocidente, o sentimento de necessidade de união absoluta envolta em alguma transcendência. Uma transcendência sem Deus nem cultura geral e somente com lampejos de democracia. Vale lembrar que o presidente George W. Bush chegou a afirmar que a sua guerra contra o terror era uma guerra “santa” e “justa” para a manutenção da sobrevivência da democracia e do Ocidente.

Em nome desse “Deus escondido” transfigurado em democracia como valor universal, não só os Estados Unidos, mas parte relevante dos países europeus ressignificou a sua batalha eterna e sem perdão no Oriente Médio e na África. Conseguintemente, a integralidade do Oriente Médio e da África ingressou numa redefinição, sem volta, de suas bases de referências ocidentais.

Nunca, desde o século XV, os valores fundamentais do Ocidente passaram a ser tão contestados nessas regiões assim como nunca, desde tempos imemoriais, esses povos não-ocidentais desejaram tanto um lugar ao sol diferente dos prometidos por agentes de Paris, Londres, Berlim, Bruxelas ou Washington.

De tanto se contestar a universalidade desses valores ocidentais pretendidos como universais, até os mais convencidos ocidentais, europeus e norte-americanos, começaram duvidar da superioridade de seus valores. Deus já vinha morto havia muito e a cultura no século XX nem a democracia no século XXI foram capazes de suplantar a sua completude. O mantra do “consumo, logo existo” das sociedades globalizadas encontrou um ponto de não retorno na crise financeira mundial de 2008. A eleição ou a presença marcante de senhores e senhoras abertamente estranhos quando não contrários ao cotidiano de realidades democráticas nos Estados Unidos e na Europa evidenciou que a democracia amarga o seu momento de post-truth. A horizontalidade animada pelo identitarismo de mistura com o wokismo apenas alimenta, hoje em dia, essa inquestionável anomia societal onde ninguém se respeita nem se compreende.

Tudo isso no Ocidente. Tudo isso de um século, o XX, a outro, o XXI.

A nova fase da tensão russo-ucraniana tem reanimado o debate sobre tudo isso. A Ucrânia foi impelida a desejar sonhar ilusões francesas, inglesas e norte-americanas em lugar de seguir se iludindo com as suas próprias ilusões eslavas. A reação da Rússia do presidente Putin vem produzindo essa tragédia planetária que inclusive os mais indiferentes já parecem notar e anotar.

Não vale mais a pena se rememorar a inacreditável humilhação que os ocidentais cometeram ante os russos depois da implosão do bloco soviético em 1989-1991. Ninguém no Ocidente parece disposto a reconhecer a sua parte de responsabilidade nesse conflito mais que odioso que irradia externalidades negativas para o mundo inteiro e já arruinou, fisicamente, a vida de mais de duzentos mil ucranianos e, indiretamente, outras centenas de milhares de europeus, africanos e médio-orientais.

Milan Kundera morreu sem ver o fim dessa tragédia mundial de poucos paralelos cujas razões ele conhecia muito bem. Restou ao Papa Franciso, em sua passagem recente pela França, dizer o que diria Milan Kundera sobre motor deste momento de tormentas: “fanatismo da indiferença”.

Sim: o Ocidente, em longa fragmentação e franca decadência, pratica esse fanatismo. As milhares de almas africanas depositadas nas costas italianas nas primeiras semanas deste setembro de 2023 foram recebidas com indiferença integral dos ocidentais. O presidente francês chegou a afirmar que, europeus e norte-americanos, não podem “acolher toda a miséria do mundo”.

Mas, note-se, essa miséria toda foi fabricada longe da África e do Oriente Médio. Ela sengue sendo produto de holocaustos coloniais e pós-coloniais praticados por defensores de valores ocidentais.

As Primaveras Árabes nada mais foram que um autoengano animado nessas paixões. As mesmas paixões que promoveram o regime change na Líbia do coronel Gaddafi e, em decorrência, tornaram o Mediterrâneo o cemitério mais povoado do mundo. A tragédia e as escaramuças no Sahel – Mali, Burkina Faso, Nigéria e, mais recentemente, Gabão – apenas amplificam essa onda de escárnio.

Sim: o “fanatismo da indiferença” mata. Mata, especialmente, a leveza do ser, que deveria ser insustentável.

Bradar pela revitalização dos fundamentos do Ocidente não deveria virar monopólio de extremistas ultraconservadores norte-americanos ou europeus tampouco de seguidores apaixonados do falecido professor Olavo de Carvalho. O Ocidente, como vaticinava Milan Kundera, precisa ser um bem comum de todo mundo neste mundo. Ocidentais e não-ocidentais. Iguais e diferentes.

Um Ocidente sequestrado, esquartejado e enfraquecido só vai fomentar maiores declínios e desmesurados fanatismos de indiferença. Milan Kundera tem razão.

Adeus, Milan Kundera.

Vida longa à sua A insustentável leveza do ser.

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Daniel Afonso da Silva

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de "Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas". [email protected]

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  1. Milan Kundera representa, para mim, a epítome de um certo mal-estar na civilização europeia – cujo resultado só poderia ser, naturalmente, o futuro de uma ilusão europeia – que pouco ou nenhum efeito prático, ou ensinamento, pode trazer ou produzir para os outrora chamados terceiro-mundistas. Esses paradigmas, com seu quê de decadência e luxúria, para usar uma expressão de Saul Bellow, não nos servem. Seus fundamentos, os fundamentos de conquistadores e exploradores, não são os nossos; estávamos do lado dos conquistados e explorados. Não devemos ter qualquer espécie de nostalgia ou de emulação dessas raças. Queremos ser o contrários do que eles foram e são. Nossa identidade só se tornará possível assim – quando dermos aos nossos outrora algozes o tratamento que merecem: deixá-los para trás. O europeu kunderiano, oprimido pelo “totalitarismo” (expressão aliás consagrada e difundida por uma Milan Kundera de saias, a sra. Hannah Arendt) soviético e a barbárie comercial e insaciável, além de inculta, dos americanos, ficou lá, em meio a séculos de refinamento cultural e luxos palacianos, limitando-se a lamentar, a partir dessa realidade sofrível, o que poderia ter sido e não foi, o esplendor humanitário e iluminista da Civilização europeia, esquecendo-de de que essa mesma civilização é fruto da mais deslavada exploração das riquezas e recursos de outras terras, e de uma violência inimaginável. Supondo levar cultura e justiça – sobre os vistosos disfarces de Deus e Democracia – ao resto do mundo não branco e sem olhos azuis, para lá levaram a morte, o genocídio, a rapina, o massacre, etc., etc., etc. E disso esperavam extrair Paz e Justiça, e Igualdade, e convívio civilizado entre os povos. Daí a melancolia de Kundera. Daí a amargura dos demais intelectuais respeitabilíssimos mencionados no artigo. A Europa instalou esse estado de coisas no mundo, e agora não sabe o que fazer. Comportam-se como aquele pai severo que castiga, e depois recompensa o bom-comportamento assim incutido nos filhos. A realidade é um pouco mais complexa do que isso. Esqueçamos os europeus, desliguemo-nos dos americanos, e de todos aqueles que julgam serem esses povos modelos a seguir. Nosso caminho é comum aos oprimidos do mundo, africanos, asiáticos, além de nossos vizinhos latino-americanos. Não temos qualquer identificação com essa gente. Sartre escreveu isso em 1961: https://www.marxists.org/portugues/fanon/1961/condenados/prefacio.htm

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