O processo golpista não cessa.
por Francisco Celso Calmon
Não há harmonia e nem independência entre os poderes, o que há é troca de favores, de farpas e dependências.
A funcionalidade dos poderes constitucionais da República Federativa do Brasil, sob a égide e organização do Estado Democrático de Direito, enviesam pelo autocratismo.
Temos uma democracia que se afunila num centralismo de um ou de alguns mandatários que se transformam em déspotas.
Pressões e chantagens entres os poderes vem se tornando o modo de ser da República.
Através de elaboração de leis, o Congresso atinge os demais poderes. O Executivo, dono do cofre, faz o troca-troca com o Legislativo e a sua função de executar políticas públicas fica, em parte, condicionada às emendas parlamentares (antes era pior, era concentrado no relator).
O STF, quando acionado (e ocorre amiúde) e às vezes de ofício, decide o que é ou não constitucional e é recebido como atropelo a outro poder.
Recentemente o Parlamento golpeou o Executivo com a chancela do STF impichando a presidente Dilma, e ao fazer isso, desrespeitou a soberania popular e mudou o rumo da história.
Antes, porém, numa decisão monocrática, canhestra, açodada e pueril, o ministro Gilmar Mendes impediu o chefe do Executivo de nomear um ministro da Casa Civil, Lula, e mudou o destino do governo Dilma.
Uma nomeação interna corporis foi ceifada por um togado do STF, com base em notícia de jornal.
O Executivo, quando bolsonarista, corrompeu o Parlamento e através da emenda secreta do relator tornou, ilegitimamente, o presidencialismo numa caricatura, num Frankenstein, nem presidencialista e nem parlamentarista, e sim na autocracia de Lira e Pacheco, sob olhos plácidos do Judiciário.
Um judiciário que manteve preso um inocente por 580 dias, tem muito de autocrática a fazer antes de rejubilar-se como corajoso e altaneiro.
A luta de classes no Brasil não se dá no convívio e respeito à democracia, mas golpeando-a com frequência.
O histórico e insuperável antagonismo de interesses entre as classes no capitalismo se dá através da política.
Nessa arena as antinomias ocorrem dentro de cada um dos poderes, pois são, em última instância, sintomas e reflexos das ideologias em históricos e permanentes conflitos.
De forma que, não basta a racionalidade de um projeto, mas, outrossim, da oportunidade; é necessário que seja discutido no tempo certo e entendido por todos os poderes envolvidos, visto que a dialógica deve ser o modo de convívio entres os poderes, ditos harmônicos e independentes pela Carta Magna, todavia, não pela história.
O presidente do Senado não levou em conta essas regrinhas, por isso mesmo, é encarada a PEC do Senado, que reorganiza a funcionalidade do STF, como inoportuna politicamente e de retaliação bolsonarista.
Afinal, o STF teve papel fundamental no desmonte à intentona bolsonarista e continua a ter no processo de criminalização dos envolvidos, cujo exemplo e resultados podem ser inibidores a novas aventuras extremistas.
Foi também nesse sentido a derrapada do Senador Jacques Wagner, pois um líder não pode vestir e desvestir a casaca da função ao seu bel prazer e conveniência pessoal. Não existe o ora sou líder e ora somente senador. Pior: abstraiu da contradição principal que o país vive desde o advento do lavajatismo, do golpe de 2016 e do bolsonarismo.
Não obstantes as derrapadas e da importunidade, a PEC colocou na ordem do dia o debate: a idade mínima para ingresso na Suprema Corte e as decisões monocráticas, as quais merecem séria e apropriada análise, sem reações intempestivas.
No artigo “Episódios marcantes da semana”, de 10 de outubro, neste blog, interroguei: Vitaliciedade ou mandato temporário dos ministros do STF?
A vitaliciedade serve para garantir ao STF ser contramajoritário e não estar sujeito a maiorias politicas sazonais. Ocorre que a permanência, dependendo da idade do ingressante, pode durar algumas décadas.
A humanidade está vivendo mais, a idade média de vida do brasileiro aumentou para 77 anos. Em 1940 a expectativa de vida era de apenas 45,5 anos. Vivemos hoje, em média, 31,5 anos a mais do que em meados do século passado.
Por outro lado, o processo de amadurecimento do jovem também está mais demorado. Jovens de 35 anos hoje não têm a mesma maturidade dos jovens das gerações passadas, como a nossa que enfrentou à ditadura militar e nem a da geração getulista.
A permanência dos ministros do judiciário foi de 70 anos para 75 (PEC da bengala, 2015), quando ocorre a aposentadoria compulsória, entretanto, a idade mínima permaneceu a mesma, 35!
Diante disso, considero que a solução imediata, que reduziria a permanência dos ministros no STF e aumentaria o tempo de formação, experiência e consequente maturidade dos futuros ingressantes, seria elevar a idade mínima de 35 para 50 anos.
O requisito de aferição da reputação ilibada não seria de um tempo de vida curto, sujeito a modificações de caráter. O tempo maior, probabilisticamente, mostraria a pessoa em sede de mando de alguma função de chefia, de poder, e a famosa frase: se quer conhecer o caráter de uma pessoa dê-lhe poder, estaria testado na vida pregressa.
Evitaria também projetos juvenis de pessoais arrivistas para galgar a Suprema Corte.
Ingressar aos 50 e ficar até os 75 anos, manteria a vitaliciedade, condição para sustentar a posição contramajoritário, sempre que mister.
Por outros lados, a delação do tenente-coronel Mauro Cid continua revelando muitas verdades que só comprovam que o governo anterior afrontava a Constituição amiúde e perseguia a realização de um golpe de estado, se mister, violento, para a implantação da autocracia nazifascista, com consequências inimagináveis.
Contudo, vem sendo noticiado e recebido politicamente com normalidade, sem espanto e indignação crescente, o que teria sido a mais recente e funesta tragédia para a democracia brasileira.
Os mentores e autores militares do 8 de janeiro continuam livres a articular novos atentados à democracia, espraiando seus tentáculos criminosos a outros países do cone sul. A famiglia bolsonarista age à luz do dia para novas investidas extremistas.
Cercar o Executivo e limitar o Judiciário é a continuidade da implementação do projeto do semiparlamentarismo do Pacheco e Lira, consoante à ideação de parte da direita e do bolsonarismo.
Entretanto, é preciso separar o joio do trigo, evitar os antolhos de uma visão binária, e as circunstâncias nublarem o mérito.
Não é jogo de dama e nem Fla x Flu, é xadrez. É estratégia. Não dá para esquecer o reloginho, o timing.
O lamentável e perigoso é que o povo está alheio. Os partidos democráticos não informam e nem fomentam o debate sobre questões conjunturais e estratégicas como essas. E a militância, infelizmente, sem formação, embarca no binário, contra ou a favor, sem acuidade para enxergar mais profundamente.
O podcast do Lula não atinge o povo e comícios estão no regra três.
A comunicação virtual tem importância, mas não empolga, não atinge os corações.
Está na hora de voltar as caravanas da cidadania.
O 8 de janeiro não está superado e nem o Estado de direito recomposto.
Francisco Celso Calmon, analista de TI, administrador, advogado, autor dos livros Sequestro Moral – E o PT com isso?, Combates Pela Democracia; coautor em Resistência ao Golpe de 2016 e em Uma Sentença Anunciada – o Processo Lula. Coordenador do canal Pororoca e um dos organizadores da RBMVJ.
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