Francisco Celso Calmon
Francisco Celso Calmon, analista de TI, administrador, advogado, autor dos livros Sequestro Moral - E o PT com isso?; Combates Pela Democracia; coautor em Resistência ao Golpe de 2016 e em Uma Sentença Anunciada – o Processo Lula.
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O que a Nara diria?, por Francisco Celso Calmon

É muito provável que as feministas que instaram Chico Buarque a não mais cantar a canção feita a pedido e para Nara, não saibam quem foi Nara Leão, a sua história.

Acervo Pessoal Nara Leão

O que a Nara diria?

por Francisco Celso Calmon

“Chico Buarque afirmou que não vai mais cantar Com açúcar, com afeto, composta por ele originalmente para a voz de Nara Leão. A decisão ocorreu após o cantor escutar críticas de feministas, que apontaram um teor machista na letra. A música fala sobre uma dona de casa que faz de tudo para agradar o marido.

O artista confirmou que não cantará mais a canção durante a série documental O Canto Livre de Nara Leão. Chico relata que a letra foi encomendada por Nara, que pediu a ele uma letra de mulher sofrida. Não era comum esse tipo de tema na época.” (DCM)

Já debati este assunto nas redes sociais e vou encerrar com este artigo um pouquinho maior do que disse nos debates.

Onde iremos parar?

Ninguém, nem o protagonista, tem o direito de negar a história. Censura e autocensura a fatos históricos, que retratam uma época, constituem uma atitude revisionista. Pode ser que não seja exatamente o caso, porém resvala, com certeza. 

A música é ótima e retrata uma situação real da nossa cultura, da época e ainda existente; não percebo machismo na letra e foi pedida pela Nara, exatamente não para enaltecer, mas, sim, para mostrar aquela realidade de desigualdade e submissão. 

Será que vão censurar e não ouvir mais na voz da Nara Leão cantando “Com açúcar, com afeto”? Ela que foi a voz musical do protesto à ditadura militar e revolucionária dos costumes e da música, que foi alavanca para tantos compositores?

Ameaçada de enquadramento na Lei de Segurança Nacional da ditadura, não se calou, generosa, corajosa, rebelde, deu voz aos compositores do morro; esta Nara guerreira, combatente do autoritarismo, não teria cantado uma música que reverenciasse o opressor.

É muito provável que as feministas que instaram Chico Buarque a não mais cantar a canção feita a pedido e para Nara, não saibam quem foi Nara Leão, a sua história.

É comum quem não tem nada, lutar para ter, mas, as que têm muito e lutam para os desprovidos terem, são pessoas especialmente generosas, Nara foi uma delas. Foi inspiradora e parte da nossa Geração68, que não aceitou as privações das liberdades democráticas.

A história contada na literatura e nas artes serve para conhecimento, crítica e formação da consciência de rejeição, jamais de negação, de silenciamento, venha de onde vier, porque não se apaga o que ocorreu.

 Examinar qualquer criação fora do contexto histórico é concebê-la sob o foco do moralismo cultural ou dos interesses conjunturais de uma estação, muitas vezes efêmera, sem ainda ser consagrada pela própria história como evolução.

As reações identitárias, por suas próprias naturezas, caem em panfletagens emocionais, pois, em última instância, não concebem a História de forma materialista e dialética, que tem como movedor as contradições entre as classes sociais, e, sim, no binário certo ou errado, bom ou mau, puro ou ímpio, pecador ou santo.   

Essas lutas identitárias, importantes sem dúvida, carecem de calibrar o alvo.

Na visão moralista da história é proibido reconhecer que a burguesia fora uma classe revolucionária, soa como heresia, por ignorarem que o capitalismo foi um avanço em relação ao feudalismo e deste em relação ao escravagismo. Assim como no futuro teremos um sistema que irá superar o capitalismo, apesar de suas sete vidas, metamorfoseando e camuflando-se de bem-estar.

Com a visão da moral (identitária) contemporânea não haveria nem canção e nem literatura que se salvasse, visto que todas em regra refletem uma época, com seus valores e contravalores, porque mesmo o olhar do oprimido, do rebelde e o do libertário, sofrem da influência da ideologia do sistema dominante na era.

Se viesse essa atitude de um candidato eleitoral ficaria claro a razão, mas da figura pública do genial e inigualável artista, meu honroso xará, a repercussão é ultramar; por isso, a decisão é dele e, portanto, respeitável, mas, segundo o noticiário, foi decorrente de reclamos de feministas, e, aí, é discutível, sim. 

Penso que cometeu um equívoco (ou o acerto de levantar a bola para o debate?), embora termos que acatar, sem, contudo, nos omitir, por se tratar de uma questão de fundo político, histórico e cultural, mesmo sendo menor diante da gravíssima conjuntura que vivemos.

Deveriam gastar energias críticas em muitas músicas da atualidade que merecem repúdio, entre elas a que faz apologia ao estupro, Baile de Favela, ou estamos interpretando errado?

Pode ser que enquanto ficar escuro ele não cante, o meu esperançar é que na claridão volte a cantar. 

Se houver seguidores à sua atitude, vamos acabar por revisionar a história, em vez de conhecer para indignar, revolucionar o presente e construir um futuro sem desigualdade, submissão, e com afeto entre todos.

Como a Nara, minha conterrânea de Vitória – ES, a solicitante e cantora original da múscia, feminista sem precisar de rótulo ou carteirinha, não está aqui para se pronunciar, imagino que ela diria:

“Podem me prender, podem me bater. Podem até deixar-me sem comer. Que eu não mudo de opinião. Daqui do morro eu não saio não, daqui do morro eu não saio não, podem me prender, mas eu não mudo de opinião.”

Ou será que falar do morro não era seu ‘lugar de fala’?

“Quando eu morrer, que é tão triste a gente ir, alguém escreva pra mim, numa primavera qualquer, a palavra liberdade junto ao meu desespero de acabar.”

Parafraseando-a: “Não plantem para dividir, acorrentados ninguém pode amar”.

Versos imortalizados pelo seu generoso e doce canto.

Francisco (Xico) Celso Calmon

Francisco Celso Calmon

Francisco Celso Calmon, analista de TI, administrador, advogado, autor dos livros Sequestro Moral - E o PT com isso?; Combates Pela Democracia; coautor em Resistência ao Golpe de 2016 e em Uma Sentença Anunciada – o Processo Lula.

5 Comentários

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  1. Gente Leiam o artigo da Lola, que leu a nota do Metrópolis sobre a declaração do Chico e faz referencia a esse tal grupo feminista, deixando o link que a Lola lincou e não achou nada de grupo feminista. Ela diz ainda que isso é muito comum entre os machos para instigar o ódio as feministas. Seria bom a redação entrar no blogue dela e trazer o a artigo dela, que adora Chico e vai continuar cantando a música feita para Nara.

  2. Assino embaixo. E acrescento: Chico evita – e não gosta quando lhe pedem – de canrar A Banda, Pedro Pedreiro, Tem Mais Samba, etc… Agora, a propósito de Com Açucar e com Afeto, quando “movimenteiras” se põem de crïticas literárias ou de comportamento, salta de banda e sai com essa desculpa wsfarrapada. Sei não, mas vejo como tiro no (nosso) pé.

    Suas músicas abordando o universo feminino, como Com açúcar…, Cotidiano, Teresinha, Mulheres de Atenas e todas as demais são EMINENTEMENTE CRÍTICAS do comportamento – seja o opressor, seja o submisso.

    O grande problema nessa (falsa) polêmica é a falta leitura e de conhecimento de boa parte das integrantes do Movimento, e o Chico, que já manifestou publicamente, POR DIVERSAS VEZES, seu total desinteresse em cantar as canções antigas, aproveitou-se da ignorância alheia como desculpa pra não cantar Com Açucar e com Afeto, bem como outras, similares. Deu uma desculpa política e polida, sem, no entanto, deixar de, nas entrelinhas, tecer crítica às feministas ortodoxas. Mas acenou ao retrocesso, na medida em que, ainda que para atender a seus objetivos pessoais, acaba por se submeter à censura.

    Precedente perigoso.

  3. O autor do artigo pode não escrever corretamente consoante a gramática e a ortografia mas escreve muito bem. Transmite o que pensa com didatica. Como neste artigo com indagações e afirmações provocantes de reflexões. O Lula. O maior comunicador político. Escorrega bastante nas concordância. Mas não na forma e conteúdo de suas mensagens.

  4. Não se desqualifica um texto por eventuais erros ortográficos, o mais importante é saber transmitir o que quer dizer, e o artigo é respeitoso e faz indagações dignas de reflexão.

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