O Real e a Percepção: Um Paradoxo, por Eduardo Appio e Salvio Kotter

A disparidade entre a realidade objetiva aferida pelos indicadores e a realidade percebida impulsionada por várias narrativas pede reflexões

Ricardo Stuckert

O Real e a Percepção: Um Paradoxo

por Eduardo Appio e Salvio Kotter

Eles não são loucos. Eles são treinados para acreditar, não para saber. A crença pode ser manipulada. Só o conhecimento é perigoso. [Frank Herbert] 

O terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, iniciado em 2023, exibe indicadores objetivos marcadamente positivos. Dados econômicos e sociais recentes evidenciam uma melhora substancial em múltiplas frentes: o crescimento econômico se consolida, o Brasil obtém superávit comercial recorde, a inflação regressa ao patamar da meta, o desemprego atinge o menor nível em quase uma década e as políticas sociais reduzem de modo notável a fome no país. Em termos empíricos, tais resultados configuram um governo exitoso ao retomar o crescimento com inclusão social. Todavia, a percepção pública desses êxitos, expressa tanto em pesquisas de opinião quanto no ambiente midiático e político, revela um descompasso frequente: parcela relevante da população não reconhece – ou até contesta – essa narrativa de progresso. A disparidade entre a realidade objetiva aferida pelos indicadores e a realidade percebida impulsionada por determinadas narrativas suscita reflexões sobre os fatores que modulam a opinião pública. 

Em montagens e boatos caluniosos – de associações de Lula ao satanismo até falsas promessas de fechar igrejas – espalhados em milhões de grupos, há uma enxurrada de conteúdos falsos e emocionais que ajudou a cristalizar ressentimentos e preconceitos ideológicos em parcela significativa do eleitorado, fenômeno que persistiu mesmo após a vitória de Lula. Perfis bolsonaristas nas redes continuaram bombardeando diariamente seus seguidores com narrativas alarmistas (como supostas ameaças comunistas ou exageros sobre crises), o que mantém alta a temperatura do antipetismo. A penetração dessas mensagens é ainda mais profunda em nichos como os evangélicos – não por acaso, 72% dos evangélicos avaliavam negativamente Lula no fim de 2024, influenciados por líderes religiosos alinhados à direita e por conteúdos viralizados na internet. Essa “guerra cultural e informacional” travada nas redes sociais conseguiu anular ou até inverter, para parte da opinião pública, o efeito positivo dos resultados concretos alvissareiros obtidos pelo governo. 

Buscamos, em tal contexto, explorar essa discrepância entre o desempenho mensurável do governo Lula em seu retorno ao Planalto e o modo como tal êxito tem sido assimilado (ou desvirtuado) por diferentes estratos sociais. A análise se organiza em quatro eixos interdependentes. No primeiro, apresentam-se os indicadores econômicos e sociais que demonstram o desempenho auspicioso do governo no biênio 2023-2024, subsidiados por fontes oficiais (IBGE, Ipea, Banco Central, FMI). Em seguida, investiga-se o conjunto de limitações estruturais herdadas do período anterior, em especial o desmonte de instituições e empresas nacionais promovido pelo golpe jurídico-midiático e pela Operação Lava Jato – incluindo o papel de agentes externos, sobretudo dos Estados Unidos, na desestruturação de setores estratégicos do país. Na terceira parte, reflete-se sobre como a formação da percepção pública pode descolar-se dos fatos, à luz do efeito das mídias tradicionais, do lawfare, da manipulação simbólica e das redes sociais, bem como a utilização de propaganda e retórica para fins políticos – ilustrada por exemplos históricos de manipulação bem-sucedida da opinião pública. Por fim, o artigo ancora-se em aportes teóricos de Jessé Souza, Noam Chomsky, Pierre Bourdieu, Hannah Arendt e Perry Anderson para defender que o poder do discurso e dos símbolos pode eclipsar conquistas materiais de governos progressistas, invertendo a compreensão popular sobre a realidade. 

Ao adotar um viés crítico e ensaístico, o texto visa rejeitar simplificações ou moralismos. Pretende, em vez disso, expor as dinâmicas sociopolíticas e econômicas que sustentam as contradições entre o Brasil real – acessível por meio de indicadores e evidências empíricas – e o Brasil construído por narrativas. Ao final, serão indicadas as principais fontes e referências que respaldaram este estudo. 

Indicadores do Bom Desempenho (2023-2024) 

Mesmo assumindo um país profundamente polarizado e acometido por sucessivas crises, o governo Lula alcançou, em curto prazo, resultados expressivos nas dimensões econômicas e sociais. Diversos indicadores corroboram a tese de um Brasil em plena recuperação: 

  • Superávit na balança comercial: O ano de 2023 encerrou-se com o maior superávit comercial já registrado, em torno de US$ 100 bilhões. Esse montante, nunca antes alcançado, decorreu da elevação das exportações (impulsionada por bons preços e volumes de commodities) e de uma relativa contenção das importações. A robustez do comércio exterior reforça as reservas internacionais, equilibra o câmbio e mitiga vulnerabilidades externas, consolidando um cenário macroeconômico mais estável. Em 2024 o superávit foi um pouco menor que o de 2023, ainda assim absolutamente acima da média histórica. 

No início do gráfico o governo neoliberal, no meio, o governo progressista sob ataque midiático. 

  • Inflação em queda: Após vivenciar taxas inflacionárias de dois dígitos no auge da crise pandêmica, o Brasil conduziu a inflação de volta ao centro da meta em 2023. O IPCA encerrou o período com alta de 4,62%, inferior ao teto estipulado pelo Banco Central. A escalada inflacionária, que ultrapassou 10% em 2021, recuou significativamente. Esse desempenho reflete uma combinação de política monetária conservadora em juros e a queda de choques conjunturais (notadamente no preço dos combustíveis e dos alimentos – que neste último trimestre enfrenta desafios), beneficiando sobretudo a população de baixa renda, tradicionalmente mais vulnerável à carestia. 
  • Retomada do crescimento econômico: Frente a previsões iniciais de estagnação, a economia brasileira voltou a crescer de forma vigorosa. Em 2023, o PIB teve expansão de aproximadamente 2,9%, superando as estimativas mais cautelosas. Em 2024 esse crescimento saltou para 3,4%, conforme divulgado pelo IBGE agora em março de 2025, superando até as estimativas mais otimistas. Esse ritmo coloca o Brasil acima da média mundial e em linha com outros emergentes relevantes. Setores como agropecuária, indústria e serviços cresceram de modo integrado, impulsionados por investimentos públicos (novo PAC), aumento do consumo das famílias e melhora no ambiente de negócios. Confirmando o segundo ano seguido de crescimento pós-recessão, o país consolida uma tendência de recuperação. 
  • Queda acentuada do desemprego: A taxa média de desocupação atingiu 7,8% em 2023, caindo para 6,2% em 2024 – o menor índice em quase dez anos. Em números absolutos, cerca de 1,8 milhão de pessoas ingressaram no mercado de trabalho em relação ao ano anterior, alcançando mais de 100 milhões de ocupados. Houve expansão tanto no emprego formal (que voltou a ser estimulado por políticas de geração de vagas e retomada de obras) quanto no emprego informal. Essa melhora corrobora a ascensão da renda média e sinaliza um ciclo virtuoso entre emprego, renda e consumo. 
  • Valorização salarial e aumento da renda: A conjunção de inflação mais baixa, mercado de trabalho aquecido e reajustes do salário-mínimo garantiu ganhos reais de renda acima de 7% para os trabalhadores. O salário-mínimo foi elevado para R$ 1.320 e adotou-se novamente a política de valorização anual. A massa de rendimentos agregada cresceu 12%, ampliando o poder de compra e dinamizando o setor de varejo e serviços. Em paralelo, o rendimento domiciliar per capita alcançou patamares recordes, sugerindo que grande parte da população pôde recuperar (ou mesmo superar) o poder aquisitivo perdido na última crise. 
  • Combate efetivo à fome: Uma das maiores conquistas deu-se na área de segurança alimentar. Depois de o país voltar ao Mapa da Fome em 2021, o governo Lula declarou prioridade absoluta ao enfrentamento do problema, reacendendo programas como o Bolsa Família e as cozinhas comunitárias. Como resultado, o número de brasileiros em insegurança alimentar grave (fome) caiu de 33 milhões para 8,7 milhões em apenas um ano, e caindo para 8,4% em 2024. A diferença de 24 milhões de pessoas que deixaram de passar fome em 2023 é marcante e assemelha-se ao êxito dos primeiros mandatos lulistas (2003-2010), quando o Brasil também reduziu substancialmente a pobreza extrema, sendo declarado fora do mapa da fome pelos organismos internacionais. 
  • Melhorias adicionais: Ainda que a desigualdade permaneça elevada, o índice de Gini (que varia entre 0 e 1, onde: 0 representa uma distribuição de renda perfeitamente igualitária, ou seja, todos têm a mesma renda, e 1 indica uma desigualdade total, onde uma pessoa detém toda a renda e as demais nada recebem) se manteve próximo do menor nível da série recente (0,518), interrompendo uma tendência de aumento até 2018. O orçamento da merenda escolar, a cobertura vacinal e programas de habitação social também receberam aportes adicionais. No âmbito ambiental, a redução de 40% no desmatamento amazônico ao longo de 2023 demonstrou eficiência na fiscalização e maior compromisso público com a sustentabilidade. 

Em síntese, os números de 2023 e 2024 indicam um cenário de reconstrução nacional, com inflação controlada, balança comercial superavitária e políticas sociais que mitigam a fome e a pobreza. Tudo isso foi alcançado a despeito de obstáculos estruturais ainda mais profundos que os enfrentados nos primeiros mandatos de Lula. A seguir, examinamos a herança institucional e produtiva fortemente impactada pela Lava Jato e pelas gestões anteriores, bem como a ingerência externa que minou a soberania brasileira em setores estratégicos. 

Limitações Estruturais Herdadas: Lava Jato, Desmonte e Interferência Externa 

Ainda que a administração Lula apresente indicadores positivos, o atual presidente governa sobre ruínas deixadas por uma série de ataques ao Estado brasileiro e ao aparato produtivo na última década. Para compreender os limites da ação governamental e a escala do desafio, é essencial discernir o legado da Operação Lava Jato e das políticas neoliberais instauradas desde o golpe parlamentar de 2016. Se, em 2003-2010, Lula pôde amparar-se em instrumentos e empresas estatais robustas, agora ele herda uma infraestrutura fragilizada: 

  1. Esvaziamento do poder presidencial e lawfare 
    A Operação Lava Jato (2014-2018) excedeu o espectro de apurar e punir a corrupção, constituindo uma forma de “golpe judicial” que alterou o equilíbrio entre os Poderes da República. Desenhou-se o chamado lawfare, no qual instrumentos jurídicos foram instrumentalizados para fins político-partidários. Lula, principal alvo, sofreu condenações posteriormente anuladas por flagrante parcialidade do juiz Moro, mas que lhe interditaram a disputa eleitoral de 2018. Essa perseguição minou não apenas o ex-presidente, mas também a autoridade do voto popular, pois Dilma Rousseff fora removida do cargo em 2016 em circunstâncias legalmente questionáveis. 
    Em consequência, a figura presidencial emergiu enfraquecida, submetida a restrições orçamentárias e institucionais – notavelmente pela PEC do Teto de Gastos (2016) e pela ampliação do poder do Congresso em manipular verbas (como as emendas de relator). Ademais, a confiança de segmentos da sociedade no PT e em lideranças de esquerda foi amplamente corroída, o que intensificou as dificuldades ante um terreno polarizado quando Lula reassumiu a Presidência em 2023. 
  1. Deterioração e privatização de ativos estratégicos 
  • Setor de petróleo e gás (Petrobras e refinarias): A Petrobras, antes símbolo de autossuficiência, enfrentou vultosas perdas financeiras e de credibilidade na esteira da Lava Jato, culminando na venda de refinarias – como a RLAM (BA) – e na paralisação de grandes empreendimentos (p. ex. Comperj). A companhia passou a priorizar a exploração de petróleo cru e a distribuição de dividendos, tornando-se menos capaz de regular preços internos e implementar políticas industriais. 
  • Engenharia pesada e construção civil: Algumas das maiores empreiteiras brasileiras (Odebrecht, OAS, Camargo Corrêa, etc.) foram praticamente desarticuladas. Se, por um lado, era imprescindível responsabilizá-las por corrupção, o resultado concreto (e a verdadeira intenção original) foi a destruição do setor de engenharia nacional, com milhares de postos de trabalho qualificados perdidos e know-how tecnológico comprometido. Esses reveses se agravaram pela crise do setor naval (estaleiros abandonados), deixando o país dependente de empresas estrangeiras para tocar grandes obras, dispendendo capital e desempregando mão de obra nacional. 
  • Projetos de defesa e alta tecnologia: Programas estratégicos, como o PROSUB (submarino nuclear) e o programa espacial (base de Alcântara), sofreram cortes orçamentários e atrasos, perdendo competitividade tecnológica. Já a Embraer quase foi adquirida pela Boeing, iniciativa revertida apenas quando a gigante norte-americana, devido à crise que enfrentava, desistiu do negócio. No quadro geral, o desmonte institucional envolveu bancos públicos (BNDES) e agências reguladoras, condicionando a capacidade de o governo induzir desenvolvimento. 
  1. Influência internacional no processo de enfraquecimento 
    A eclosão e a condução da Lava Jato foram preparadas e geridas por agentes externos, em particular órgãos do governo norte-americano. Relatos jornalísticos e documentos vazados indicam que juízes e procuradores brasileiros receberam treinamento e apoio do FBI e do Departamento de Justiça (DOJ) dos EUA, muitas vezes à margem de procedimentos oficiais, visando interesses geopolíticos e econômicos dos Estados Unidos. 
    Esse intercâmbio clandestino teve impactos práticos: empresas brasileiras de engenharia, que competiam internacionalmente, praticamente ruíram em acordos bilionários de leniência. A Petrobras pagou multas elevadas nos EUA, e partes substanciais do setor energético tornaram-se alvo de aquisição por capital estrangeiro. Em termos geopolíticos, o “combate à corrupção” foi manipulado para desarticular agentes econômicos nacionais que disputavam mercados globais, consolidando a dependência brasileira de fornecedores e investimentos externos. Nesse contexto, a soberania brasileira foi duramente afetada, e os governos posteriores herdaram menor margem de manobra para articular projetos de desenvolvimento autônomo. 

Esse panorama indica que Lula reassumiu a Presidência encontrando um Estado mais frágil, empresas estratégicas debilitadas e confiança popular maculada pelo discurso anticorrupção que criminalizou a política em geral e, em particular, a de viés progressista. Esse quadro institucional adverso tem implicações diretas na legitimação das conquistas atuais: mesmo obtendo resultados objetivos sólidos, o governo carece de narrativas proeminentes que o defendam, mesmo ante uma infraestrutura estatal capaz de prontamente colocar em prática projetos de grande vulto.  

Narrativas, Mídia e Percepção Pública: Quando o Discurso Se Sobrepõe à Realidade 

Apesar dos resultados concretos nos primeiros dois anos do terceiro mandato, o reconhecimento público permanece muito aquém (e vem piorando) do que tais indicadores sugeririam. Pesquisas de opinião apontam que a avaliação popular dos feitos de Lula, em áreas como inflação e emprego, é menos entusiástica do que se esperaria a partir dos dados. Essa divergência ilustra a força das narrativas políticas e midiáticas na formação do senso comum: 

  1. Mídia tradicional e enquadramentos negativos 
    Os principais veículos de comunicação no Brasil, historicamente controlados por poucas famílias, exibem uma predisposição editorial contrária aos governos petistas desde os primeiros mandatos de Lula. Escândalos, denúncias e delações têm ampla cobertura, ao passo que conquistas econômicas e sociais recebem destaque reduzido ou são omitidas. Pesquisas acadêmicas já demonstraram o desequilíbrio da cobertura, que, em larga medida, associou a imagem do PT à corrupção. Esse viés persistente, intensificado após 2013, contribuiu para enraizar uma imagem negativa dos governos progressistas, obscurecendo até mesmo momentos de “pleno emprego” (como em 2014) e melhorias econômicas evidentes. 
  1. Redes sociais e desinformação em massa 
    Se a mídia tradicional molda a opinião pública de maneira concentrada, as redes sociais (Facebook, WhatsApp, YouTube, Twitter) operam um efeito amplificador do que publica a mídia tradicional, gerando um elemento radicalizador. Durante a campanha de 2018 e a gestão Bolsonaro (2019-2022), houve disseminação desenfreada de fake news, atribuindo a Lula e à esquerda pautas inexistentes (p. ex. “kit gay”, “mamadeira erótica”). Tal manipulação emocional gera uma falsa consciência que negligencia indicadores objetivos. Mesmo diante da queda da inflação e do desemprego, grupos oposicionistas mantêm versões paralelas, sempre prontas a requalificar qualquer fato em favor de uma narrativa antigovernista. 
  1. Criminalização simbólica da política (lawfare
    A Lava Jato extrapolou o ambiente forense para se converter em fenômeno midiático, difundindo a ideia de que a política seria intrinsecamente corrompida – com ênfase nos nomes vinculados ao PT. A opinião pública, saturada de manchetes sobre desvios e delações, cristalizou a culpa antes de qualquer sentença definitiva. Embora Lula tenha sido reabilitado judicialmente, e o juiz que o condenou tenha sido considerado parcial pelo STF, a imagem pública desgastada persiste, dificultando a adesão popular às políticas que ele agora implementa. Esse “juízo de culpabilidade social” anterior ao julgamento formal coaduna-se com o conceito de lawfare: ações legais e midiáticas que eliminam a presunção de inocência e deslegitimam e até eliminam, simbolicamente ou não, adversários políticos. 
  1. Exemplos históricos de percepção dissociada da realidade 
    A ascensão do totalitarismo na primeira metade do século XX demonstra como a propaganda sistemática pode mobilizar a sociedade contra fatos comprovados, tema analisado por Hannah Arendt. Da mesma maneira, em diversos episódios contemporâneos (Chile de 1973, Brexit no Reino Unido), a opinião coletiva apoiou decisões contrárias a análises racionais, movida pela retórica do medo ou da traição nacional. No Brasil, não apenas grupos de elite, mas também setores populares aderiram a discursos fortemente antipetistas, mesmo quando tais discursos confrontam seus próprios interesses materiais. Esse comportamento reforça o poder de narrativas emocionalmente carregadas, capazes de suplantar resultados econômicos positivos. 
  1. Discurso como território de disputa 
    A discrepância entre números favoráveis (queda do desemprego, inflação sob controle, recordes de exportação) e a permanência de uma visão de caos reflete uma “guerra simbólica” permanente. Muitas das vozes com maior alcance midiático mantêm enquadramentos críticos, qualificando avanços como “populistas” ou “fruto de conjuntura”. Já eventuais dificuldades momentâneas são imediatamente ampliadas. Tal seletividade cumpre a função de minar a credibilidade do governo, nutrindo um ambiente de ceticismo e polarização. Nesse contexto, torna-se extremamente difícil construir um consenso ou, ao menos, uma percepção pública equânime sobre os feitos governamentais. 

Desse modo, o conflito entre a realidade factual e a percepção pública não se mostra contingencial, mas sintoma de processos políticos complexos em que o domínio do discurso se revela determinante. Para fundamentar melhor esse aspecto, este artigo recorre, a seguir, a teorias sociopolíticas que elucidam como a desconexão entre fatos e narrativas tende a ser instrumentalizada por grupos de poder. 

Discurso vs. Realidade: Fundamentos Teóricos 

Diferentes pensadores analisaram os mecanismos sociais e comunicacionais que tornam possível a manipulação da percepção coletiva, mesmo diante de fatos objetivos que a contradizem. A conjuntura brasileira recente fornece um caso exemplar para ilustrar a tese de que o poder simbólico pode sobrepujar conquistas materiais. 

  1. Jessé Souza e o “pacto das elites” 
    Em A Elite do Atraso: da escravidão à Lava Jato, Jessé Souza argumenta que existe um acordo tácito entre as elites econômicas e as classes médias detentoras de capital cultural, orientado para perpetuar estruturas de privilégio. A Lava Jato e o impeachment de 2016 seriam manifestações contemporâneas desse pacto, no qual o discurso de moralidade anticorrupção serviu como subterfúgio para afastar governos populares e conter políticas redistributivas. Assim, ainda que camadas intermediárias tenham se beneficiado dos mandatos petistas, elas foram induzidas pela grande mídia e pelo Judiciário a posicionar-se contra esse mesmo projeto, internalizando valores elitistas e narrativas de corrupção sistêmica. 
  1. Noam Chomsky e a “fabricação do consentimento” 
    No clássico Manufacturing Consent, Chomsky e Edward Herman demonstram como a mídia corporativa, regida por interesses econômicos e políticos, atua por meio de filtros que alinham a cobertura jornalística aos desígnios do establishment. Em essência, a mídia “fabrica consenso” em prol da manutenção de estruturas de poder. A parcialidade da imprensa brasileira contra Lula e o PT adequa-se a esse modelo de propaganda: privilégios de classe orientam a demonização de políticas distributivas, enquanto se constrói uma atmosfera de escândalo permanente. 
  1. Pierre Bourdieu e o poder simbólico 
    O conceito de violência simbólica, de Bourdieu, ilumina os processos pelos quais grupos dominantes impõem sua visão de mundo, fazendo com que os subordinados a aceitem como legítima. A grande mídia – detentora de amplo capital simbólico – desempenha papel central nessa imposição, enquadrando o debate e definindo o que é notícia. No caso brasileiro, a insistência em pautar a corrupção como sinônimo de Lula e PT reflete essa capacidade de formatar a realidade social. Mesmo melhorias objetivas podem ser ignoradas ou desqualificadas se a narrativa hegemônica assim determinar. 
  1. Hannah Arendt e a precariedade da verdade factual 
    Em Verdade e Política, Arendt aponta a fragilidade da verdade no âmbito público, pois a manipulação sistemática e a propaganda podem produzir realidades paralelas. Quando a distinção entre fato e ficção se esvai, a democracia se vê ameaçada. Na conjuntura nacional, fake news e discursos oficiais contrários à ciência e aos dados estatísticos (como a recusa de indicadores do IBGE) demonstram a intensidade do fenômeno da pós-verdade
  1. Perry Anderson e o “golpe brando” 
    Em Brazil Apart: 1964-2019, o historiador Perry Anderson descreve o processo de queda de Dilma Rousseff e a prisão de Lula como um longo golpe, articulado por forças parlamentares, judiciais e midiáticas. Anderson salienta que o lulismo, embora vitorioso eleitoralmente e bem-sucedido em resultados sociais, foi combatido por uma coalizão de interesses que via suas posições ameaçadas. O esforço em desqualificar o legado lulista teve apoio internacional e orquestração nacional, moldando uma narrativa de caos e corrupção que se sobrepôs aos dados empíricos. 

Sob esse prisma, a disparidade entre o sucesso concreto do terceiro mandato de Lula e a percepção de fracasso manifesta na opinião popular evidencia o que esses autores chamam de “poder simbólico” ou “engenharia do consentimento”. De modo análogo, esse poder se retroalimenta de um ambiente de polarização, onde admitir méritos do oponente torna-se, para certos grupos, uma espécie de tabu identitário. 

Reflexão 

A presente análise pretende ter demonstrado a existência de dois Brasis: o Brasil concreto, mensurado pelas estatísticas oficiais, que aponta retomada socioeconômica consistente; e o Brasil imaginado, construído por narrativas midiáticas e virtuais que mantém elevada desconfiança sobre Lula e sua capacidade de governar. Enquanto os indicadores mostram queda na fome, inflação dentro da meta, superávit comercial recorde e redução substancial do desemprego, boa parte da percepção popular permanece refém de discursos hostis, reforçados pela mídia hegemônica e por redes de desinformação, vivendo das pequenas crises, como a recente crise no câmbio e a atual crise no preço de alguns alimentos. 

A explicação para tal descompasso remete ao contexto herdado do golpe jurídico-midiático, que ampliou o poder de setores judiciais e políticos para minar o Executivo, desfigurando empresas nacionais estratégicas e difundindo a ideia de que o PT seria a raiz de toda corrupção. Essa dinâmica foi aprofundada pela cooperação informal entre autoridades brasileiras e agências norte-americanas, visando retirar do páreo as grandes construtoras nacionais e a própria Petrobras. Combinada à ação intensa de meios de comunicação tradicionais e digitais (sempre prontos a depreciar os governos progressistas), a forma como a população interpreta os feitos do atual governo resta profundamente polarizada. 

Em termos teóricos, autores como Jessé Souza, Noam Chomsky, Pierre Bourdieu, Hannah Arendt e Perry Anderson confluem para a tese de que a realidade factual, por si só, não é suficiente para moldar a percepção coletiva. É preciso concorrer no “campo simbólico” e disputar a capacidade de definir e disseminar narrativas de modo persuasivo e duradouro. Nesse sentido, o sucesso objetivo do governo Lula somente será reconhecido por uma parcela maior da sociedade se houver concomitantemente uma estratégia de comunicação efetiva, que recupere a credibilidade da política e estimule o debate público ancorado em fatos. 

Entretanto, converter bons indicadores em aprovação popular demanda tempo, estratégia e empenho, sobretudo em um ambiente de polarização extrema e pós-verdade. A persistência de segmentos que defendem fervorosamente a tese do “desastre petista” indica que, mais que governar bem, é imprescindível reconquistar corações e mentes, restituindo a primazia da verdade factual e a confiança na democracia. Se o governo lograr aprofundar as conquistas socioeconômicas ao ponto de torná-las inegáveis na experiência cotidiana de mais brasileiros, a narrativa negativa tenderá a enfraquecer, permitindo que o êxito efetivo se converta em percepção difundida. 

Referências 

  1. Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) – “Comércio exterior brasileiro bate recordes e fecha 2023 com saldo de US$ 98,8 bi”. Notícia de 05/01/2024. [Dados oficiais da balança comercial] 
  1. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) / Agência Brasil – “IPCA encerra 2023 com alta de 4,62%, abaixo do teto da meta”. Publicado em 11/01/2024. 
  1. IBGE – “PIB cresce 2,9% em 2023 e fecha o ano em R$ 10,9 trilhões”. Release de Contas Nacionais, 01/03/2024. 
  1. IBGE – “Taxa de desocupação cai a 7,8% em 2023, menor patamar desde 2014”. PNAD Contínua, notícia de 31/01/2024. 
  1. IBGE – “Em 2023, massa de rendimentos e rendimento domiciliar per capita atingem recorde”. PNAD Contínua – Rendimento de todas as fontes, divulgada em 06/03/2024. 
  1. Ministério do Desenvolvimento Social / IBGE – “Mais de 24,4 milhões de pessoas saem da situação de fome no Brasil em 2023”. Agência Gov, 25/04/2024. 
  1. Valor Econômico – “Rui Costa fala em ‘desmonte’ de empreiteiras e pede rapidez para licenças ambientais”. 18/09/2023. 
  1. ConJur (Consultor Jurídico) – “Jornal francês mostra como os EUA usaram Moro e a ‘lava jato’”. 10/04/2021. 
  1. Agência Pública – “Como a Lava Jato escondeu do governo federal visita do FBI e procuradores americanos”. 09/03/2020. 
  1. Souza, Jessé. A Elite do Atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: LeYa, 2017. 
  1. Herman, Edward & Chomsky, Noam. Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media. New York: Pantheon Books, 1988. 
  1. Bourdieu, Pierre. Sobre a Televisão (Sur la télévision). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. 
  1. Arendt, Hannah. “Verdade e Política”. In: Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972. 
  1. Anderson, Perry. Brazil Apart: 1964-2019. London/New York: Verso Books, 2019. 

Eduardo Fernando Appio é um escritor e juiz federal brasileiro, ex-titular da 13.ª Vara Federal de Curitiba, havia sido designado para atuar nos processos da Operação Lava Jato. Atualmente, Appio está como Juiz da 18ª Vara Previdenciária da Justiça Federal do Paraná

Salvio Kotter passou formações bem variadas, como Administração de Empresas, Música Erudita, Grego Antigo e Latim. Publicou vários livros, de ficção e não-ficção e é editor da Kotter Editorial, especializada em literatura, filosofia e política.

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16 Comentários

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  1. O texto reivindica a tarefa, nada fácil, de estabelecer o que é o Brasil real, e o Brasil interpretado, que seria uma versão corrosiva do “auspicioso” momento de “reconstrução”, proporcionado por Lula III.

    Resvala em gente boa, como Bourdieu, Chomsky e Harendt, e escorrega para outras coisas descartáveis, como o Leandro Karnal da sociologia, Jessé Souza, nosso “colono alemão” mais famoso.

    Bem, vamos lá.

    O nível de ocupação é alto, deixando entre 6 e 7% de desocupados.

    Porém, como o termo mesmo diz, a partir de uma definição que é do IBGE, desocupação é diferente de emprego.

    Ocupado é o motorista de aplicativo, a diarista, enfim, todo e qualquer trabalhador, que receba alguma renda do seu trabalho, mas o vínculo é precário ou inexiste, e não raro essa circunstância submete esses trabalhadores (as) a várias jornadas exaustivas.

    Dentre esses ocupados há, ainda de acordo com o IBGE, 15 por cento de trabalhadores sub utilizados , são aqueles com formação acima das exigidas pela ocupação que exercem, engenheiros vendendo muffins e brownies, ou professores complementando renda atrás dos volantes ou em aplicativos de entregas.

    Bem, esse quadro reflete uma economia baseada em um tripé:

    Serviços, exportação de mercadorias de baixo valor agregado e tecnologia (“pau-brasil”) e juros, muitos juros.

    Assim, vamos ao segundo ponto “auspicioso” desse Brasil real.

    A balança comercial.

    Ora, exportar sem tributação dos exportadores, e pior, reduzindo a pauta a commodities, aniquila o país de todos os lados, e agora, os efeitos chegam a mesa do mais pobre.

    Esse problema acaba por diluir o chamado ganho médio de renda, que ficou em torno de 7 por cento.

    Aí outro problema, a “renda” comemorada não ultrapassa 3.500 reais.

    Nosso brasileiro médio não ganha 700 dólares por mês.

    Ou 8.400 dólares ano.

    Continuamos a nação mais desigual do planeta.

    As oscilações recentes do índice Gini nem cócegas fizeram nessa triste posição.

    Os autores clamam que tudo isso é obra do odioso sistema de mídia digital, que soterra “pobres e evangélicos” com informações falsas, que os faz enxergar errado.

    Aqui salta o viés Jessé Souza, que imagina que, ou o pobre de direita é burro, porque ingrato, ou está enganado, ou as duas coisas.

    Mas para Jessé, e parece, para os autores, as ruas deveriam estar cheias de pobres agradecidos e prontos a entregarem outro mandato a Lula, em 2026.

    A esquerda é uma vítima desse esquema, pois bem.

    A manipulação ideológica da mídia é tão antiga quanto o nascimento dos jornais e empresas de mídia, nos estertores da revolução francesa e industrial.

    O uso da igreja idem.

    Em 64, foram os católicos, agora, os evangélicos.

    Dar um aspecto “novo” a esse fenômeno não é só burrice, em alguns casos é má fé acadêmica mesmo, para delimitar novos campos de domínio intelectual e, claro, político.

    A mentira, a falsificação, o ódio não proliferam onde há um senso político amadurecido.

    Como alguns especialistas dizem, o ódio às teses progressistas ou ao PT sempre estiveram aí, e só os tolos imaginam que ganhar 1 ou 3 eleições presidenciais desse conta de reverter esse processo.

    Malafaia perto de Carlos Lacerda parece até um moderado, bem mais burro do que o ex-governador, mas ainda assim, um primor de comedimento frente a fúria verbal do Corvo.

    Não basta ou bastava ao PT, e a Lula ganharem, era preciso muito mais.

    Pior ainda foi ganhar se submetendo a parecer com a direita para ganhar.

    Em 2003, com a Carta aos Brasileiros foi assim, capitulação.

    Em 2006, com todo o poder de Lula, não se reelegeu no primeiro turno.

    Em 2010 e 2914, Dilma passou sufoco também.

    Agora em 2022, a mesma coisa.

    E segue a repetição de erros.

    Queremos convencer que somos a mudança nos parecendo com aquilo que desejamos, ou fizemos desejar mudar.

    Esse texto é isso, uma declaração de que há uma esperança conceitual de que o domínio de indicadores macroeconômicos, quase todos valorados pelas bancas financeiras, é o que deveria bastar ao povo.

    De novo cito e parafraseio Tavares, o povo não come PIB, balança comercial ou macroeconomia.

    Voltando ao tema político, e de como a base de rejeição ao PT e Lula sempre foi majoritária é só olhar para o passado recente:

    A base do PT no Congresso encolheu, mas nunca foi hegemônica, nem perto disso.

    Nenhum, eu repito, nenhum tema mais a esquerda foi proposto ou encaminhado em 16 anos de governo Lula Dilma.

    Nada.

    Na tributação, na política econômica (juros e moeda), nos costumes (aborto, drogas), na questão fundiária (sem terra e povos originários), segurança, nada, nenhum avanço significativo e digno desse nome.

    O pobre brasileiro continua sem transporte público, sem esgoto e água, sem moradia digna, com uma educação sofrível, e um SUS que resiste graças ao heroísmo de seus profissionais.

    Os “calabouços fiscais” e ajustes atacam sempre os mesmos locais, sejam eles propostos por Guedes ou Haddad.

    4 milhões não têm privada, isso mesmo, um lugar para cagar.

    São 30 mil mortos por ano por armas de fogo.

    Outras tantas mortes no trânsito.

    Brasil Real?

    Qual?

    1. Texto excelente. Abre caminho para muitas reflexões sobre a complexidade que vivemos hoje no país , de maneira a pensarmos nos últimos anos e só de chegamos.

    2. Concordo com praticamente tudo, o que você diz é tão verdadeiro quanto assombroso. Acontece que para reverter esta situação a democracia burguesa não faz nem cócegas, e não temos uma revolução em vista. O artigo aponta que os vetores são de melhora, não que sejam alvissareiros ou redentores. Tratamos do espanto de ver tudo melhorando e o povo, em pesquisa recente que simulou segundo turno entre Lula e Bolsonaro, dar preferência para Bolsonaro. Dito de outra maneira, estamos tratando o tema de maneira relativa e não absoluta. Mas, mesmo assim, entendo que estamos juntos.

      1. Sim, estamos.

        Mas isso diz pouco ou de nada adianta.

        Você fica em um aspecto que é efeito, f não causa.

        Não se comunica o que não se tem para comunicar.

        A mera gestão da macroeconomia, com aspectos sociais liberais não resolve o problema da política e suas representações.

        Esse enclave, esse abismo civilizatório não tem volta, e Lula não é, junto com o PT, o veículo para mudanças.

        Aliás, justiça seja feita, ele nunca disse que seria.

        Nós que estávamos carentes e pegamos ele para uma tarefa que lhe era impossível.

  2. Um raio-x da nossa conjuntura! O artigo expõe as engrenagens que distorcem a percepção da realidade, mostrando como o poder simbólico pode eclipsar conquistas concretas. Uma leitura essencial para quem busca compreender o Brasil em sua complexidade.

  3. Um raio-x da nossa conjuntura! O artigo expõe as engrenagens que distorcem a percepção da realidade, mostrando como o poder simbólico pode eclipsar conquistas concretas. Uma leitura essencial para quem busca compreender o Brasil em sua complexidade.

  4. Excelente análise. A questão é: como atuar no campo simbólico de forma a reverter o estrago promovido pela direita e extrema-direita, com suas narrativas fáceis, fictícias e perversas? Como construir narrativas capazes de competir, por exemplo, com a lavagem cerebral promovida por pastores evangélicos? De que recursos precisa agora a verdade para concorrer com a mentira?

      1. Sálvio, na sua réplica ao.meu comentário, você disse:

        “Não temos uma revolução a vista”.

        Sim, e desse jeito, considerando a ausência de uma narrativa de força, que se oponha a que é apresentada pela direita (e sua facção extrema, que é a mesma coisa), nós nunca teremos, e sempre será o fatalismo gradualista que nos imobilizará.

        Como agora.

        Vamos nos contentando com esse governo medíocre.

        É preciso, como a história ensina, provocar a tensão e o ódio de classes, com a direção política para conter o avanço da direita.

        Sem, isso, sinto muito, seja Lula ou Bolsonaro, exceto pelas pautas de costumes (inúteis para a luta de classes) e por aspectos pessoais, dá mesmo.

    1. Se levarmos em conta, para efeito de mensurar essa dificuldade que o amigo menciona, que o livro mais vendido da história, a Bíblia, é um compêndio interminável de mitos, mentiras, barbaridades, patacoadas e safadezas as mais diversas, e de toda sorte de desgraça e sofrimento que um ser humano é capaz de impingir aos outros, e que seu herói é um homem que não só aceita, como redime tudo isso; além disso, é o livro que boa parte da população desse país carrega debaixo do braço, e o utiliza para equacionar – seja qual for o resultado – tudo que lhes acontece no dia-a-dia, sob a austera supervisão dessa praga de pastores neopentecostais que nos assola…não há caminho algum para modificar essa situação, pisando nesse terreno minado da religiosidade popular. Ele está vedado à ciência e à verdade. Ela é resultado da grande obra das elites que se sucederam nesse país, dos tempos coloniais aos dias de hoje: a manutenção da grande massa da população na ignorância, na superstição, e no temor reverencial aos senhores, sejam os do céu, sejam os da terra.

  5. Sávio, seguindo o seu conceito, se melhora e não é percebido como tal, é porque, de fato, não melhorou.

    Não gosto muito de Weber, mas ele resolve esse paradoxo com essa proposição.

    Não basta. Verdade, ela tem que ser apreendida (legitimada) com tal.

    Ou em Bourdieu, “a palavra não é de quem fala, mas de quem ouve’.

    1. Se uma folha cai de uma árvore no meio da floresta e ninguém viu. Será que ela caiu mesmo? Me parece um paradoxo para tua primeira tese neste comentário. E o “Prefiro não” do Bartleby do Melville, ressoa o Não basta. São temas recorrentes. Quanto à palavra, os antigos (gregos e romanos) não as reconheciam, pelo menos na escrita, as frases eram escritas em bloco, algo bem interessante, uma frase significa, uma palavra na frase tem sempre sentido, ainda que em qualquer outra o sentido muda, pelo menos um pouco. Por mim eu dividia a frase em morfemas e não em palavras, mas isso já vai longe de nosso assunto. Bem, pelo seu nickname (é muito antigo falar assim) creio que estamos de acordo quanto à solução (intermediária) possível. Um Bacurau às avessas. Mas até o Marx recorreu ao materialismo histórico, há uma realidade que está posta e muito assentada, a força necessária para alterá-la no risoma é descomunal. É enquanto essa energia não dá sinais de estar acumulada, ao contrário, o tecnofeudalismo e seu escravismo na velocidade luz via fibra ótica nos roem pelos pés a tal ponto que, encurralados, nos vemos obrigados a defender o que…. o capitalismo. Enfim, é a dialética, quando não a própria contradição (como essa de defender o horror menor pra frear o maior), que nos empareda. Mas reforço o que disse, eu concordo até o osso com todos os teus comentários, não vejo divergência nos nossos pontos de vista, apenas em algo menor, a saber, o que devemos fazer neste momento considerado o atual estado de coisas. Pelo menos é como vejo. Ah, haverá um segundo artigo. Esse visou expor o problema, o próximo vai arriscar possíveis saídas desta caverna. Super abraço!

      1. Só uma divergência: não dá para defender o capitalismo, ele já era…e pelo que vem em seu lugar, eu acho que aí sim, teremos uma concordância: vamos sentir saudades dele e das suas sócio reproduções.

        E por fim, não, a contradição não nos empareda, senão, não é contradição…a contradição nos impulsiona.

        Fraternal abraço.

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