Os militares brasileiros não são democratas, por Maurício Vasconcelos

Uma coisa é fato. Em nenhuma revolta, golpe ou revolução as condições de vida do povo brasileiro eram consideradas.

Os militares brasileiros não são democratas

por Maurício Vasconcelos

Dois fatores concorrem para escrever algumas linhas sobre a história contemporânea brasileira, cujas conclusões precipitadas ou antecipadas já estão anunciadas no título conferido a esse texto. O primeiro é o lançamento recente da biografia do Marechal de Exército HENRIQUE LOTT,  denominada “O Soldado Absoluto,  uma biografia do marechal Henrique Lott” escrita com esmero e profundidade pelo historiador Wagner William  e a relação servil e interessada dos militares das três Forças (Terrestre, Aérea e Naval) com o atual Presidente da República que sem nenhuma implicância pessoal, vem desde o primeiro dia do mandato presidencial tentando transformar as Forças Armadas em uma milícia particular a serviço dos seus nítidos propósitos golpistas. As resistências até agora são tênues e tímidas. Nenhuma voz autorizada da caserna veio a público defender o Estado de Direito e tranquilizar o Brasil e o mundo de que não teremos nesse 2022 uma nova aventura golpista.

Conclusões tão graníticas sobre as Forças Armadas, exigem uma volta ao passado. Para não nos perdemos em linhas tão apertadas no oceano de fatos e do tempo, fixaremos como marco inicial dessa breve nota histórica ao episódio que ficou conhecido como “Revolta dos 18 do Forte de Copacabana” até os dias atuais, deixando, propositadamente de lado, sem maiores atenções, as denominadas Revoltas de Aragarças e Jacareacanga, embora ambas tenham tisnado a imagem do que chamaremos genericamente de Forças Armadas, cuja vocação democrática nunca convenceu a nenhum historiador.

Ali, naquele 5 de julho de 1922, na então capital do país, o Rio de Janeiro ocorreu o movimento que também passou a ser conhecido como a Revolta dos 18 do Forte. Era a primeira manifestação daquilo que depois passou para a história do “movimento tenentista” que se insurgia, em tese, contra a denominada República Velha. A rigor, com ou sem razão, havia um sentimento de repulsa ao candidato eleito, o mineiro Arthur Bernardes. A espoleta para a revolta de um modo bastante largo teria sido publicações do então Jornal Correio da Manhã, cuja autoria era atribuída a Bernardes e dirigidas ao Marechal Hermes da Fonseca. Embora a autoria fosse veementemente negada por Arthur Bernardes, o Clube Militar, sempre ele, presidido pelo próprio Hermes da Fonseca indignou-se, mesmo assim, a Revolta dos 18 do Forte não se irradiou para outras unidades militares.

Fato que dos 301 miliares presentes no Forte de Copacabana, 272 renderam-se, outros fugiram ou foram mortos e os remanescentes não bombardearam a cidade do Rio de Janeiro, contudo, saíram em marcha pela Avenida Atlântica sob o comando dos Tenentes Siqueira Campos e Eduardo Gomes (esse um personagem que vai atravessar todo o século XX, envolvido em conspiratas), ambos feridos, momento que o fotografo Zenobio Couto do Correio da Manhã produziu uma foto que passou para a eternidade como um resumo perfeito da tal revolta. Uma única e simples imagem deu vida eterna a um fato histórico, funcionando como um resumo perfeito do quanto ocorrido naquele início de século.

Como resultado da Revolta do Forte de Copacabana, outras rebeliões ocorreram com a mesma “ideologia”. Depois de todos os movimentos militares daquela quadra histórica que ficou conhecida, ganhando ares de um movimento conhecido até os dias atuais como o” tenentismo”. Mesmo em linhas curtas, é necessário emprestar-se importância ao movimento dos tenentes, ao “tenentismo” a nós parecendo uma denominação um tanto quanto vaga e desorganizada, mas, perfeitamente compreensível do ponto de vista histórico.

Começa-se, antes mesmo de se buscar uma conceituação para o movimento tenentista, pelo destino dos dois sobreviventes que encarnam, até pela notável fotografia do Correio da Manhã, de Eduardo Gomes e Siqueira Campos. Começando pelo último: o tenente Siqueira Campos aderiu a posteriori a Coluna Prestes, um movimento político e militar liderado pelos Oficiais da então Força Pública do Estado de São Paulo Miguel Costa, João Cabanas e Isidoro Dias Lopes, tendo como principal aliado ao sul, o Capitão do Exército Luiz Carlos Prestes dando origem a lendária coluna, sendo que Siqueira Campos era tido como o único oficial que possuía alguma influência sobre o futuro líder comunista. Esse dado difícil de ser aferido terá relevâncias trágicas adiante.

Com ou sem quebra de hierarquia, todos os movimentos militares anteriores a chamada Revolução de 1930, tinham como pano de fundo o combate ao anacronismo político da República Velha, a política do “café com leite”, a conhecida alternância de poder entre as oligarquias mineiras e paulistas, cuja quebra pelos últimos viabilizaram o mais importante movimento militar dos primórdios do século a já mencionada Revolução de 1930.

Em se tratando da quebra de hierarquia militar e do envolvimento das Forças Armadas na política inexistem rupturas boas, todos são ruins em uma República que desde o ancien regímen, o Império, estava acostumada a revoltas das mais diversificadas matizes e regiões. Por isso, é preciso compreender as aspirações dos “tenentes”, aqui ainda não valoradas, como algo positivo: a modernização da política, do próprio ensino militar que chegam depois com as Missões Alemãs, Francesas e, no pós-guerra pelas Americanas.

Uma coisa é fato. Em nenhuma revolta, golpe ou revolução as condições de vida do povo brasileiro eram consideradas. Nenhuma ação programática sobre o combate à fome, o êxodo rural, índices inaceitáveis de analfabetismo. A propósito: Luiz Carlos Prestes testemunhou em regiões rurais do Brasil a faca ser utilizada pelo caboclo segurando-a pela lâmina e usando o cabo como martelo por absoluta ignorância.

É óbvio que outras rebeliões ocorreram em maior ou menor grau, a exemplo de São Paulo em 1924, considerada pelos historiadores como a segunda recolta tenentista, até atingir o seu ápice em 1930. É impossível ser exato na busca das origens do tenentismo, podendo ter se positivado na própria movimentação que culminou com a Proclamação da República, admitir que ele atravessou todo o século XX, tendo um fim melancólico quando os já agora generais, coronéis e majores e seus áulicos mergulharam o Brasil em uma noite de treva e obscurantismo que perdurou por 21 anos, contando inclusive, e dele não esqueceremos, com o apoio decisivo do já Brigadeiro Eduardo Gomes.

Passando a utilizar a expressão movimento tenentista em um sentido bem largo, sem as precisões exigidas pelos historiadores, fato é que os tenentes apoiaram a Revolução de 1930 que conduziram ao poder Getúlio Dorneles Vargas. A mais engenhosa aliança civil e militar já construída na história brasileira, não sem sobressaltos como a Revolução Constitucionalista de 1932, o apoio ao golpe urdido pelo próprio Getúlio Vargas em 1937 e a edição da “polaca”.

É inegável que Getúlio Vargas tinha uma pauta social, então conhecida como o trabalhismo, e uma inesgotável sede de poder que sabia exercer com gingados e maestria. Fato é que a legislação social brasileira, a PETROBRAS, o BNDES e a indústria siderúrgica surgem no seu Governo. Antes de se levantar contra Washington Luís, de quem foi Ministro da Fazenda, e a ordem então estabelecida, já estava no Rio Grande do Sul fazendo e bem a tecitura com os tenentes sobreviventes a Coluna Prestes, dentre muitos, João Alberto Lins de Barros, Oswaldo Cordeiro de Farias, Djalma Dutra, Siqueira Campos, Newton Estilac Leal, Herculino Cascardo, Juarez Távora e Juracy Montenegro Magalhães.

A história colocou os tenentes em situação futuras despropositadas e traiçoeiras para biografias que surgiram na busca de renovação política e no combate as oligarquias, Nada como um dia após o outro. Mestre no cooptação, Getúlio Vargas, sem êxito, talvez o único, tentou atrair o Capitão Luiz Carlos Prestes para a sua Revolução. Exilado na Bolívia depois da maior e extenuante caminhada pelos rincões do Brasil, em seguida na Argentina. Foi para Buenos Aires que Vargas enviou como seu emissário o Tenente Siqueira Campos, antes um encontro secreto do lado de cá do Rio da Prata, as margens do Guaíba, já havia ocorrido entre as duas lideranças sem maiores repercussões.

Um acidente com a aeronave que conduzia o Tenente Siqueira Campos de Buenos Aires a Porto Alegre o matou nas águas do Rio da Prata.

A essa altura, o Capitão Luiz Carlos Prestes que desde a Bolívia já vinha sendo assediado pelo nascente Partido Comunista do Brasil, já tinha aderido ao marxismo-leninismo e nenhum conchavo com Vargas seria mais possível, ainda que no futuro este viesse nas eleições de 1954, receber o apoio de Luiz Carlos Prestes e dos comunistas.

É falso para esse aprendiz de historiador que a deposição de Vargas quando eleito tenha ocorrido em decorrência de um oficialato que tinha convivido com militares americanos que paravam o combate a fim de votarem e escolherem o seu presidente e, por isso mesmo com uma boa inveja dos americanos. Tão falso como a inexistência de oficiais das três forças adeptos de uma adesão pelo Brasil ao Eixo, alguns ainda influenciados pela missão alemã no Brasil para instrução e assessoramento nas escolas militares do país.

O episódio da Rua Toneleros precipitou o que já era certo e adiou o golpe militar por uma década exata: a deposição de Getúlio Vargas, os pretextos eram muitos, até a presença de João Goulart no Ministério do Trabalho. Na verdade, os militares de há muito já liam pela cartilha do Forte Knox e a política golpista acesa até o ano de 2022 jamais saiu. O Oficial de Ligação entre as Forças Armadas Americanas e brasileira era Vernon Walters, pequeno detalhe.

Por justo motivo, a célebre fotografia, as linhas iniciais diziam sobre os Tenentes Siqueira Campos e Eduardo Gomes. Esse rompeu com Getúlio Vargas em 1937 e candidatou-se a Presidente da República nas presidenciais realizadas em dezembro de 1945, tendo sido derrotado por outro militar, o General Eurico Gaspar Dutra. Em 1950, sempre na UDN, sofre outra derrota dessa vez para o próprio Getúlio Vargas. Muito mais por suas convicções a margem da legalidade e pelo caminho da força bruta que por frustrações eleitorais, juntamente com Carlos Lacerda e demais “vivandeiras de quartel”, articulou com Carlos Luz, Almirante Penna Botto e o General Aldyr Fiúza de Castro, o golpe para impedir a posse dos candidatos eleitos na eleição presidencial de 1955, Juscelino Kubistchek e João Melchior Marques Goulart com o pretexto fajuto de que ambos (as eleições do presidente e do vice eram separadas naquele tempo) não tinham obtido a maioria absoluta dos votos em relação ao tenente derrotado Juarez Távora. A própria Justiça Eleitoral de então lembrou que sob a égide da mesma Constituição de 1946, Getúlio Vargas não tinha alcançado tal percentual e empossado sem nenhum protesto da caserna.

O Brigadeiro Eduardo Gomes não foi um mero apoiador de um golpe contra a posse de JK. Homiziou-se em São Paulo, como Brigadeiro ordenou a transferência da Base Militar dos Afonsos no Rio de Janeiro mais de uma dezena de aeronaves equivalente aos caças supersônicos de hoje, até então inexistentes para a Base Aérea de Cumbica em |São Paulo. Somente com a reação do General Henrique Lott, ainda Ministro da Guerra, levando a efeito o contragolpe e a volta ao Rio de Janeiro do cruzador Tamandaré trazendo a bordo o indisciplinado General Jurandir Bizarria Mamede, Carlos Lacerda, Penna Boto e o próprio “presidente” Carlos Luz, a insurreição militar foi debelada sem poder esse texto anotar os seus pormenores.

Como se percebe, a maldita tutela militar sobre o poder civil parece estar no DNA da história do Brasil. O Brigadeiro Eduardo Gomes ainda vai viver para articular e apoiar o golpe de 1964 e se tornar o Ministro da Aeronáutica do Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco. Outros tenentes, embora tenham rompido com Vargas, tornaram-se figuras proeminentes da ditadura como foi o caso do cearense Juracy Montenegro Magalhães, Interventor na Bahia e depois governador, presidente da PETROBRAS. Felinto Muller, expulso da Coluna Prestes, tornou-se o verdugo de inúmeros presos políticos como Harry Berger, o mais chocante e Carlos Marighela para não ir à exaustão.

Iludem-se os que pensam que com a eleição de Tancredo Neves os militares voltaram por completo a caserna. Os desmemoriados precisam lembrar que no curso da Assembleia Nacional Constituinte quando se travou o debate sobre a duração do mandato do Presidente José Sarney, se de cinco ou quatro anos, o General Leônidas Pires Gonçalves de quando em vez aparecia na imprensa dando os seus recados favoráveis ao mandato mais extenso, Ele próprio estava no fatídico Hospital de Base quando o Presidente Tancredo Neves lá estava internado como a vigiar a solução que seria dada pelos legítimos líderes civis.

É crime confessado hoje com regozijo pelo autor, General de Exército Eduardo Villas-Boas, então Comandante da Força Terrestre no Governo do Presidente Temer, crime ainda não prescrito, ter ameaçado pelo Twiter o Supremo Tribunal Federal caso esse concedesse uma justa e merecida ordem de habeas corpus ao então candidato Luiz Ignácio Lula da Silva e torná-lo livre de uma condenação, hoje se sabe encomendada, para o efeito, dentre outros de reparar a sua honra e dar-lhe elegibilidade em uma eleição, não pelo sistema de coleta e apuração de votos, tornou-se fraudulenta como qualquer outra.

Hoje o Presidente da República atenta a todo instante e hora contra a democracia e o Estado de Direito. Agora quer transformar um Exército servil e com a cúpula da oficialidade cooptada por cargos e vantagens salariais como fiscal e instância revisora de um sistema eleitoral seguro, admirado em todo o mundo e que deve servir de júbilo aos verdadeiros patriotas.

Quer transformar as Forças Armadas, até agora em um silêncio tonitruante, em uma milícia particular. Como um Ministro de Estado permite um desfile de armas de combate em Brasília com caráter nitidamente intimidatório a outros poderes. Oficiais das três forças de alta patente, alguns comandantes de guarnições miliares poderosas, curtindo nas redes sociais as irresponsabilidades de um Chefe de Estado candidato confesso a tirano.

Um dia a história brasileira lembrará mais do ex-ministro da Defesa Fernando Azevedo Silva, do ex-comandante do General Edson Pujol, do ex-comandante da Marinha Almirante Ilques Barbosa e do ex-comandante da Aeronáutica Brigadeiro Moretti Bermúdez que de um Braga Neto qualquer.

A história sabe quem foi Ulisses Guimarães, mas poucos se lembram de João Figueiredo.

Maurício Vasconcelos é advogado criminalista.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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Redação

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