O Teto de Gastos de Haddad e a Armadilha da Estagnação, por André M. Cunha e Alessandro D. Miebach

Fica implícita a ideia de que uma postura menos conflitiva pode gerar a trajetória virtuosa observada a partir de 2004.

O Teto de Gastos de Haddad e a Armadilha da Estagnação

por André Moreira Cunha e Alessandro Donadio Miebach

O insight de Robert Owen era verdadeiro: se a economia de mercado puder evoluir de acordo com suas próprias leis, criará grandes e permanentes males.” ― Karl Polanyi, 1944, “A Grande Transformação”

O Teto de Gastos de Haddad

O nome fantasia é “Novo Arcabouço Fiscal” (NAF). Na prática, trata-se de um teto de gastos suavizado. Conforme registrado no portal do Ministério da Fazenda seu objetivo é de “… equilibrar as contas públicas do país …”. Promete zerar o déficit primário em 2024 e produzir superávits a partir de 2025. Os resultados fiscais positivos teriam o condão de “… reduzir a inflação, estimular o investimento privado e atrair novos investimentos internacionais.”. Para tanto, o novo teto prevê limitar o crescimento das despesas a 70% da expansão das receitas nos doze meses anteriores, fixando, também, uma banda de flutuação para as variações no gasto: um piso de +0,6% e um teto de +2,5%.

Tais limites evitariam a queda significativa da relação gasto federal/PIB e, portanto, do peso efetivo do Estado na economia, nos marcos de períodos prolongados de recessão. Todavia, não impedem que uma eventual redução naquela relação aconteça durante as fases de maior crescimento econômico. Já os investimentos públicos receberiam uma parcela do “excesso de superávit” primário, o que contribuiria para a ampliação dos mesmos com respeito aos níveis recentes.  Novas travas e condicionantes vêm sendo publicizados antes do envio da proposta ao Congresso. Assim, por exemplo, o Ministério da Fazenda informou ter feito “ajustes no texto”, os quais visam garantir que recursos do “excesso de superávit” não sejam direcionados para gastos permanentes e fiquem alocados para o pagamento dos juros da dívida pública. 

As estimativas realizadas até aqui sugerem que o novo teto reduziria as despesas primárias ao longo do tempo em comparação com o que foi efetivamente observado na ausência deste tipo de mecanismo. O montante exato desta “poupança” adicional é condicionado pelos parâmetros utilizados em cada simulação, quais sejam: o seu período inicial; a calibragem das taxas esperadas de crescimento do PIB; a exclusão de gastos como o Fundeb e o piso da enfermagem; as estimativas quanto à evolução das receitas e se estas são brutas ou líquidas; a apropriação do excedente de superávit em novos investimentos; o período de apuração, considerando-se os valores acumulados em doze meses para julho; dentre outros. Cabe lembrar que ainda não foram disponibilizados os documentos oficiais com detalhamento do novo teto de gastos.

Assim, por exemplo, se tal regra estivesse presente durante os três mandatos presidenciais completos dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2014), haveria importante perda da capacidade de realizar políticas públicas[1]. Somente a limitação de expansão das despesas em 70% das receitas do ano anterior, geraria R$ 155 bilhões (em preços de 2023) de perdas em capacidade de gasto, em média, a cada ano. Este montante equivale ao orçamento do Ministério da Educação em 2023: R$ 159 bilhões. Ao se impor o segundo conjunto de restrições, um limite de 2,5% para o crescimento das receitas e um piso de +0,6%, o resultado seria ainda pior. A Warren Investimentos, que trabalhou com as receitas líquidas e o período 2011-2022, obteve uma “economia” média anual de despesas em R$ 65 bilhões.

A Nota de Política Econômica n. 36, do MADE-USP, partiu das séries históricas de receitas e despesas do governo central iniciadas em 2001, com a exclusão das despesas do Fundeb e uso de bandas alternativas (superiores, de +1% e +4,0%). Os contrafactuais gerados implicam em menor crescimento do gasto desde 2001, com queda do coeficiente despesas/PIB, mesmo ao se considerar o uso do “excesso” do resultado primário para ampliar investimentos. Em suas projeções para 2030, o estudo conclui que o teto de Haddad geraria: “… a queda das despesas como proporção do PIB em cenários otimista e pessimista de crescimento econômico, o que pode prejudicar a atuação do Estado em áreas como saúde, educação e proteção social.”. Tal efeito poderia ser amenizado com eventual aumento de arrecadação. Também se aponta a vantagem do modelo de Haddad frente ao atual teto em dois aspectos: a capacidade de atenuar efeitos recessivos dos ciclos e o direcionamento de parte do “excesso” de superávit primário para investimentos.

Argumentos semelhantes aparecem nos trabalhos de Maurício Weiss e Róber Iturriet Avila , André Roncaglia, Fligenspan, Carneiro, dentre outros. Manoel Pires, que coordena do Monitor Fiscal da FGV-IBRE, nos lembra que a regra é “estruturalmente contracionista” e “complexa”, tendo em vista a tentativa de, com um único instrumento, cobrir objetivos que podem ser contraditórios ao longo do tempo, quais sejam: “…aumentar o resultado primário, realizar a gestão de ciclos, preservar investimentos e gastos sociais”. A ausência de detalhes conceituais e operacionais aprofundam as incertezas quanto às possibilidades de o novo teto ser efetivo.

Pires alerta que o teto de Haddad não deixa espaço para a gestão fiscal discricionária. Diz ele: “O arcabouço fiscal é uma aposta em um conjunto de regras que torna o orçamento excessivamente automático, o que não parece ser compatível com a realidade da gestão da política fiscal. É importante haver algum espaço para julgamento e discricionariedade. Em função da desconfiança nas instituições políticas do país, historicamente se prefere pensar na política fiscal como algo que deve ser menos flexível.”. Sua perspectiva converge com os resultados do amplo estudo sobre as regras fiscais no contexto pós-pandemia – “The Return to Fiscal Rules”, realizado por especialistas do Fundo Monetário Internacional (FMI). Estes constataram que os inúmeros choques adversos dos últimos quinze anos produziram desvios significativos entre os parâmetros estabelecidos para limites de endividamento e de resultados correntes do setor público, tanto nas economias avançadas (EA), quanto nas emergentes e em desenvolvimento (EED).

Com a pandemia, 80% dos países que possuíam algum tipo de regra, foram forçados à ampla flexibilização. Esta produziu desvios médios na dívida pública na ordem de 50% PIB para as EA e de 25% do PIB para as EED. O Fundo aposta na importância de se aprender com a experiência passada. Assim, novas regras deveriam ser “flexíveis” e ágeis, incorporando os efeitos da política monetária sobre os resultados fiscais e enfatizando a solidez institucional[2]. Para os especialistas do FMI, o automatismo das regras não seria condição suficiente para produzir boas políticas nesta área.

A Armadilha da Estagnação

A opção do Ministério da Fazenda, agora sob o comando de Fernando Haddad, foi a de manter a lógica que estruturou a PEC 241/2016, apresentada no governo do presidente Michel Temer (2016-2018), posteriormente aprovada como Emenda Constitucional nº 95. O diagnóstico que fundamentou o assim-chamado “teto de gastos” era de que as finanças públicas federais viriam em uma trajetória “insustentável”, dado o ritmo de aumentos de despesas a partir da implementação das políticas sociais derivadas da Constituição Federal de 1988. O ensaio “O Ajuste Inevitável”, originalmente publicado na Folha de São Paulo, em 2015, e o documento do MDB “Uma Ponte para o Futuro”, do mesmo ano, são os marcos conceituais que delinearam a reversão nas políticas públicas inaugurada com o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff (2011-2016). Este, por sua vez, ampliou o quadro de estagnação econômica e cristalizou o retrocesso social pretendido.  Na ausência de esclarecimentos mais precisos, não se pode descartar a priori a hipótese de que, em larga medida, a proposta indica a aceitação do diagnóstico do establishment acerca dos resultados do primeiro governo Roussef e, por decorrência lógica, fica a percepção de que as estratégias de Haddad e sua equipe se orientam em bases semelhantes àquelas observadas quando Antonio Palocci Filho comandou a Fazenda entre 2003 e 2006.

Em artigo anterior evidenciamos a profunda deterioração da economia brasileira desde 2014, a qual piorou o já precário cenário de baixo dinamismo herdado dos anos 1980. Nem mesmo a aceleração do crescimento entre 2004 e 2011 rompeu tal ciclo vicioso. A expansão mais robusta na renda per capita naquele período sequer acompanhou o desempenho dos nossos vizinhos latino-americanos, do conjunto dos países em desenvolvimento e da média global. Por sua vez, a desaceleração pós-2014, incluindo os efeitos da pandemia, foi relativamente mais intensa no Brasil em comparação com aquelas economias.

Para reforçar tal perspectiva, e com base nas contas nacionais trimestrais, observa-se que, no final de 2022, a renda real do país era equivalente à de 2014. Isso implicou em queda na renda per capita de aproximadamente 10%. Ainda no final do ano passado, a indústria de transformação e a construção civil produziam 14 p.p. e 20 p.p. do PIB a menos. O consumo das famílias e os gastos públicos eram basicamente os mesmos de 2014, com contração acumulada 4% e 7% em termos per capita. Já os investimentos produtivos ainda eram menores em 10 p.p. do PIB. A flexibilização das relações de trabalho e o desmonte das capacidades estatais foram comemoradas pelo presidente Temer, em 2017, quando afirmava ter vencido a recessão. Para o ex-presidente “Nem os mais otimistas acreditavam que fosse possível recuperar o tempo perdido tão rapidamente”. A “contração fiscal expansionista” pretendida pela elite que apoiou o impeachment de Dilma Rousseff revelou-se uma ilusão perigosa. Imaginar ser possível reproduzir tal estratégia, mesmo que atenuada, é a vitória da esperança sobre a experiência. 

Se a Constituição de 1988 criou as condições formais para colocar os pobres no orçamento, as elites conservadoras trataram de reformar a CF para eliminar tais efeitos, cuja materialidade se expressou na elevação dos gastos primários, particularmente durante os anos 2000. Tal processo se deu em detrimento dos investimentos do governo central, que se tornaram uma importante variável de ajuste. Abrir espaço para a retomada de níveis mais elevados de inversões públicas é um caminho importante para que o conjunto da economia brasileira possa melhorar sua capacidade de crescer. Da mesma forma, há importantes lacunas nos processos de expansão no acesso a serviços públicos gratuitos e de qualidade, especialmente em educação, saúde e seguridade social.

Ricardo Carneiro, em sua apreciação inicial sobre o novo teto, sugere que a política fiscal esboçada pelo novo governo é uma âncora que manterá o país em seu quadro de estagnação. In verbis: “Ao fim e ao cabo, o novo arcabouço fiscal poderá contribuir para a volta de um regime de baixo crescimento sem equacionar as questões principais às quais se destina.”. David Deccache, economista que assessora a bancada do PSOL na Câmara dos Deputados, afirma que o NAF geraria efeitos negativos sobre as políticas públicas: “Todas as simulações sobre o novo arcabouço fiscal confirmam que se trata de uma regra de redução relativa do tamanho do Estado. Se estivesse valendo nos governos anteriores do PT, hoje teríamos muito menos serviços públicos – e com menor qualidade. Precisamos de mais gastos sociais, não de menos. A crise é social, não fiscal.”

A regra proposta lança questões mais profundas sobre as concepções do novo governo acerca suas condições políticas e econômicas. O orçamento público é um espaço de disputa política e social por excelência ao gerar ganhadores e perdedores. O teto de Haddad indica a inexistência de capacidade ou de interesse em enfrentar a oligarquia financeira brasileira (genericamente designados na mídia como “o mercado”). Em uma situação peculiar, o governo capitula antes de disputar e oferece um regramento fiscal que é suposto como capaz de gerar boa vontade por parte “do mercado”, o que sabidamente não irá ocorrer. Há que se reconhecer que a base social para um enfrentamento acirrado da “elite do atraso” é frágil, dadas as condições dos conflitos políticos recentes, o que pode ajudar a entender o afã em atender as demandas de rigor fiscal.

O teto de Haddad é uma aposta ousada para o novo governo. Fica implícita a ideia de que uma postura menos conflitiva pode gerar a trajetória virtuosa observada a partir de 2004.  As regras propostas sinalizam a abdicação de estratégias endógenas de crescimento, especialmente aquelas guiadas pela dinamização do investimento público. Ou seja, o crescimento, se vier, dependerá por um lado dos efeitos de uma eventual reforma tributária sobre os “Animal Spirits” do empresariado local, e de alguma forma de estímulo no setor externo, notadamente via exportação de commodities. Maior crescimento com essa configuração é possível, mas não irá implicar em mudanças na tendência da economia brasileira à estagnação.

Em cem dias de governo, há poucas evidências de ruptura potencial com a versão brasileira da “trickle- down economics”[3] na qual a oligarquia, além de possuir privilégios tributários, absorve elevada parcela dos impostos pagos pelo conjunto da população via recebimentos de juros. Até aqui, inexiste sinalização de mudança na trajetória recente (e mesmo de longo prazo) da economia brasileira. O amplo arco de alianças que permitiu a vitória eleitoral de Lula implicou na cristalização dos interesses da oligarquia financeira e na baixa capacidade do governo limitar os impulsos destrutivos do rentismo. Se, por um lado, e como sugere André Singer, o governo precisa “mostrar resultados” em termos de melhorias no bem-estar econômico para afastar a hipótese de um retrocesso democrático no próximo ciclo eleitoral, por outro lado, o teto de Haddad, que agrada ao rentismo, não garante per se um processo de recuperação da atividade econômica e a implementação de ações de mitigação das iniquidades sociais que muito se acentuaram ao longo dos últimos anos.

Em uma primeira leitura, a equipe econômica de Haddad parece crer no fetiche de que regras “previsíveis e estáveis” produzirão um efeito positivo no estado de confiança dos detentores da riqueza e que, portanto, será capaz de estimular uma reversão do caráter rentista da elite local. Em um país onde até o passado é incerto e em um mundo onde o futuro tornou-se ainda mais complexo, imaginar que o novo teto de gastos será operacional e factível revela-se quase um ato de fé.       

A constatação de que manter um ritmo de crescimento real das despesas, incluindo os juros da dívida pública, acima das variações nas receitas gera problemas de sustentabilidade fiscal não parece ser uma divergência relevante entre os analistas. Isto é particularmente verdadeiro nos marcos de um país onde as taxas reais de juros são muito mais elevadas do que as taxas de variação do produto. Todavia, é passível de ampla discussão a estruturação das formas para se enfrentar tal problema, especialmente quando se incorpora na equação a manutenção da capacidade de o Estado atuar como indutor do desenvolvimento. O modelo do teto de gastos, com Temer ou Haddad, não é o único ou mesmo o melhor caminho para garantir que os pobres voltem ao orçamento de forma perene e, mais importante, que a pobreza e suas mazelas sejam estruturalmente eliminadas da nossa paisagem social.

André Moreira Cunha e Alessandro Donadio Miebach – Docentes do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS


[1] O material disponibilizado até o momento pelo Ministério da Fazenda não detalha critérios contábeis e técnicos que permitam simulações precisas. No exercício feito aqui, que é preliminar e simplificado, parte-se de duas séries disponibilizadas pelo Tesouro Transparente: 11.01.1 Receita Total; e 11.03.1 Despesa total; ambas em valores correntes e acumulados em doze meses. Não foram suprimidas as transferências constitucionais e fundos diversos nas despesas; bem como eventuais receitas extraordinárias do período. Na sequência os valores foram corrigidos a preços de fevereiro de 2023. Na primeira etapa, aplicou-se o limite de 70%. Na sequência, além de se trabalhar com o limite de 70%, inseriu-se a restrição das bandas: em anos onde a variação das receitas já limitadas a 70% do valor das receitas do ano anterior ultrapassasse 2,5%, manteve-se este patamar. No caso de queda nas receitas, manteve-se o piso de 0,6% na correção das despesas. Nos dois exercícios calculou-se a diferença entre as despesas efetivamente realizadas e aquelas que derivariam do Teto de Haddad.

[2] “Relying only on numerical rules to balance the policy trade-off will result in excessively complex and ineffective rules. Abandoning rules for broader standards may be too risky if investors and the public mistrust such an approach—especially when debt vulnerabilities are high. A medium-term fiscal framework that combines standards, rules, and strengthened institutions will strike a better balance between flexibility and credibility.” (p. 1)

[3] Tricle-Down Economics é como são genericamente descritas as políticas pró capital adotadas a partir do neoliberalismo na década de 1980 e que supostamente ao beneficiar os mais ricos iriam “gotejar” para os mais pobres via maior crescimento econômico. Tais políticas implicaram em baixo crescimento e aumento das desigualdades tanto em países avançados como em desenvolvimento.

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