Na disputa pelo dinheiro público, o mercado financeiro ganha sempre, por Lauro Veiga Filho

Analistas e consultores tratam de demonizar precisamente os recursos que poderiam ajudar a mitigar os efeitos da crise sobre pobres, vulneráveis e excluídos, amenizando a miséria e a fome crescentes.

Na disputa pelo dinheiro público, o mercado financeiro ganha sempre

por Lauro Veiga Filho

Diagnósticos e projeções sobre a “saúde fiscal” do setor público rotineiramente colocam as despesas primárias como a grande vilã da história. Claro, trata-se da fatia disponível para financiar os serviços prestados à população e principal alvo da grande disputa pelos recursos públicos nos corredores da República, já que a outra parte do gasto, apropriado como “despesa financeira”, não está disponível para o respeitável público, pois reservado exclusivamente para fazer rodar as roletas do grande cassino dos juros.

Analistas e consultores tratam de demonizar precisamente os recursos que poderiam ajudar a mitigar os efeitos da crise sobre pobres, vulneráveis e excluídos, amenizando a miséria e a fome crescentes. Mas mantêm silêncio cúmplice em relação à fatia restante do orçamento, que, muito evidentemente, não está sujeito a tetos nem freios. Deve-se observar que a disputa pelos recursos do orçamento, ainda que limitada àquela fatia dos gastos primários, já foi um tanto mais transparente e democrática, pois o tal “orçamento secreto” jamais atingiu as dimensões agora alcançadas, com alguns estimando a conta por volta dos R$ 30,0 bilhões.

De volta ao ponto, os gastos com juros jamais tomaram muito a atenção de consultores do mercado e analistas globais, embora sempre tenham sido – e voltaram a ser desde março, quando o Banco Central (BC) retomou a política de elevação dos juros básicos –, um fator de desequilíbrio e de endividamento para o conjunto do setor público, incluindo os governos federal, estaduais e municipais. No cenário base (quer dizer, nem muito pessimista, nem muito otimista) projetado pela Instituição Fiscal Independente (IFI), ligada ao Senado, as despesas do setor público consolidado com juros tendem a subir de 4,19% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2020 para 5,39% neste ano e daí até 6,33% em 2022. A contabilidade já embute as altas projetadas para os juros básicos.

O estrago maior

Considerando os valores nominais estimados pela IFI para o PIB (saindo de R$ 7,448 trilhões observados em 2020 para qualquer coisa acima de R$ 8,60 trilhões neste ano e para quase R$ 9,30 trilhões no ano que vem), a despesa com juros tenderia a saltar de R$ 312,43 bilhões no ano passado, quando havia representado 4,19% do PIB, para R$ 588,70 bilhões ao final de 2022, numa estimativa feita a partir das previsões da instituição. Quer dizer, haveria um acréscimo de R$ 276,25 bilhões, em valores aproximados, indicando uma alta de 88,4% em apenas dois anos.

O gasto primário dos governos, excluídas as despesas ordenadas para o enfrentamento da pandemia, tenderia a encolher como proporção do PIB, saindo de 19,1% para 17,7% entre 2020 e 2022. Espera-se, portanto, uma queda correspondente a 1,4 pontos de porcentagem sobre o PIB. No caso dos juros, a relação sairia de 4,19% para 6,33% do volume total de bens e serviços produzidos pela economia, num avanço de 2,14 pontos, quase 53,0% a mais do que a variação esperada para os recursos destinados ao funcionamento do setor público como um todo.

Em valores nominais, a despesa primária subiria nominalmente de R$ 1,423 trilhão para R$ 1,646 trilhão (em torno de R$ 223,6 bilhões a mais), o que significaria uma variação de 15,7%, sem descontar a inflação. O estrago dos juros sobre as contas do setor público seria, como se pode perceber, muito mais severo. No entanto, esse ponto continua menosprezado pela corrente mais “liberaloide” no debate econômico doméstico, amplamente dominado pelos interesses do mercado financeiro.

Os dados trabalhados pela IFI permitem de alguma forma antecipar os efeitos da alta dos juros sobre a dívida bruta do governo geral, incluindo todas as esferas da federação. Por efeito da inflação mais alta do que o esperado e do avanço nominal previsto para o produto, a relação entre dívida e PIB tende a recuar de 88,83% para 83,26% de 2020 para 2021, elevando-se para 84,76% no ano que vem – basicamente por efeito dos juros mais altos. Abrindo parênteses, o comportamento nominal do PIB não vai se traduzir em um crescimento real da economia mais alentado. A IFI reduziu suas previsões para 2021, assim como para 2022, passando a esperar variação de 4,91% para o PIB deste ano e de apenas 1,72% em 2022 (com riscos de um crescimento ainda menor no caso de um racionamento de energia, ameaça ainda não retirada do horizonte).

A dívida, sempre considerando os dados trabalhados pela IFI, poderá avançar de R$ 6,616 trilhões em 2020 para R$ 7,160 trilhões ao fim de 2021, com elevação até R$ 7,883 trilhões em 2022. Entre 2020 e 2022, a dívida tende a experimentar crescimento de 19,1%, num acréscimo de R$ 1,267 trilhão. Numa hipótese, apenas para demonstrar o “efeito-juros” sobre o endividamento público, considere que os juros fossem mantidos nos níveis de 2020, em torno de 4,2% do PIB, até o final do próximo ano. Neste caso, a dívida teria registrado variação nominal inferior a 15,0%. Neste exercício, o endividamento bruto teria avançado até R$ 7,606 trilhões (em torno de 3,5% abaixo dos níveis projetados pela IFI em seu cenário base). Como proporção do PIB, a dívida teria recuado para 81,8%.

Juros e o rombo

A conta dos juros, ainda com base no relatório da IFI, respondeu por 30,7% do déficit nominal em 2020, numa conta que considera todas as despesas públicas, incluindo os juros, quando o rombo havia representado 13,63% do PIB. Neste ano, com o déficit nominal projetado em 6,27% do PIB, os juros (5,39% do produto) responderão por 86,0% do rombo e sua contribuição tenderá a atingir 94,0% em 2022 (déficit nominal de 6,73% para juros de 6,33%).

Mas o que diz a IFI? “A situação fiscal segue bastante intrincada e requer compromisso claro com a manutenção das regras fiscais, tendo em vista a necessidade de geração de superávits primários para ao menos garantir a estabilidade da dívida/PIB a médio prazo. As discussões a respeito da mudança do regramento dos precatórios e sentenças judiciais têm abalado as expectativas de mercado e elevado a percepção de risco. A abertura de espaço no teto de gastos em ano eleitoral parece-nos um vetor a delimitar, até o fim deste ano, se o cenário base terá probabilidade alta de ocorrer ou se migraremos para um quadro prospectivo mais próximo do pessimista”.

Os riscos fiscais estariam, nesta versão, delimitados apenas por precatórios, sentenças judiciais e brechas no tal “teto de gastos” abertas para acomodar despesas com socorro a famílias vulneráveis. Os problemas em torno do novo auxílio são de outra ordem e estão relacionados ao desmonte do Bolsa Família e a objetivos nitidamente eleitoreiros, já que o tal reforço, prometido, mas ainda não detalhado, expira em dezembro de 2022 e as correções antecipadas pelo Palácio do Planalto para os pagamentos devidos às famílias inscritas no programa estariam meramente repondo parte do que foi comido pela inflação desde 2016.

Lauro Veiga Filho – Jornalista, foi secretário de redação do Diário Comércio & Indústria, editor de economia da Visão, repórter da Folha de S.Paulo em Brasília, chefiou o escritório da Gazeta Mercantil em Goiânia e colabora com o jornal Valor Econômico.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

1 Comentário

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  1. Poisé, o sei Nassif já esqueceu daquele caso do cidadão que ganhou milhões na bolsa apostando no mercado futuro nos últimos cinco minutos do pregão????? Eu não…

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