Uma modesta proposta anti-inflacionária, por Ivan Colangelo Salomão

O arcabouço anti-inflacionário brasileiro vem sendo paulatinamente dilapidado há anos.

Arte USP

Uma modesta proposta anti-inflacionária

por Ivan Colangelo Salomão

Se houve um elemento perene na história econômica brasileira contemporânea foi o aumento constante e generalizado de preços, vulgo inflação. Conquanto não configure um impeditivo per se para uma economia crescer, não se pode minimizar as distorções micro e macroeconômicas causadas pela carestia, especialmente no que diz respeito aos efeitos sobre a concentração de renda real. Proxy quase perfeita do bom funcionamento de uma economia de mercado, inflação sob controle, como se sabe, não é condição suficiente, mas tem se mostrado necessária para o desenvolvimento sustentado e equilibrado das economias capitalistas.

Nesse sentido, a contenção da corrosão do poder de compra dos salários da classe trabalhadora brasileira justificaria, por si só, a reverência que a sociedade deve prestar ao Plano Real. Se se pudesse dividir a história do país em datas, os anos pós-1994 certamente responderiam por uma de suas mais relevantes efemérides. Em que pesem as inúmeras críticas legitimamente tecidas à condução do plano – sobretudo no início de sua terceira fase, após 1995 –, a decorrente institucionalização da política econômica fez-se viável apenas quando do êxito da estabilização monetária. Como sabem poucos (e virtuosos) países, moeda sã é um patrimônio arduamente conquistado, mas constantemente ameaçado.

Essa breve digressão emoldura apenas um dos vários aspectos do apodrecimento institucional por que passa o manejo da política econômica no Brasil hodierno. E não é de hoje, há de se reconhecer. Se do ponto de vista fiscal a situação se deteriora desde pelo menos o advento da contabilidade criativa inaugurada por Arno Augustin, o orçamento secreto do Arthur Little fez das chamadas pedaladas fiscais rousseffianas uma brincadeira pueril. É para a higidez da moeda, porém, que gostaria de chamar atenção.

O arcabouço anti-inflacionário brasileiro vem sendo paulatinamente dilapidado há anos. A política monetária adotada a partir de 2011 provou-se demasiadamente ousada. A estratégia de represamento dos preços de energia (elétrica e fóssil) levada a cabo no governo Rousseff também se mostrou inadequada e contraproducente. Ainda assim, é possível afirmar que nunca antes na história do Brasil pós-Real os mecanismos de combate à inflação provaram-se tão impertinentes como na década de 2020. Não exatamente pelo patamar atingido nos últimos anos – superior a dois dígitos em 2015 e 2021, aliás –, mas pela oportunidade perdida pelo governo de estancar a perda do poder de compra da moeda e, consequentemente, debelar eventuais surtos inerciais de remarcação de preços. Isso porque, como na já popularizada analogia, pode-se entender a inflação como a pasta de dente: uma vez expulsa da bisnaga, o trabalho para colocá-la de volta no lugar certo é hercúleo e sofrido.

É verdade que a inflação atual é um fenômeno global e multicausal, mas nem por isso governos locais devem eximir-se da tarefa de atenuar seus efeitos deletérios. Por leniência ou incompetência, o governo brasileiro tem perdido uma chance de ouro de conter a escalada de preços, sobretudo o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), um dos índices oficiais do IBGE.

Tal qual a carestia observada no pós-choques do petróleo, a inflação brasileira atual tem no custo o seu principal componente. E assim como nos anos 1970, suas principais causas são externas, exceto a última: (1) revezes climáticos, que afetam a agricultura e a geração de energia; (2) escassez de insumos industriais, que tem estressado as cadeias globais de suprimentos; (3) pandemia de covid-19, uma vez que a substituição de bens e serviços consumidos na rua por similares domésticos, o que demanda muito da logística e de setores industriais; (4) desvalorização cambial, resultante da genialidade da equipe econômica atual e do presidente a que está subordinada, além da evolução desfavorável dos termos de troca; (5) choques de oferta de insumos intermediários – mormente fertilizantes e trigo – decorrentes da guerra na Ucrânia; e (6) política de preço dos combustíveis, produto que, por motivos óbvios, se espraia por todo o restante do tecido econômico como nenhum outro insumo, à exceção da energia elétrica, talvez.

Assim, uma medida adequada para atenuar a pressão inflacionária sobre as camadas desfavorecidas poderia vir da política fiscal. A desoneração temporária dos produtos de consumo não-duráveis – foco, sobretudo, do INPC, que mede as variações no poder de compra da população assalariada e com rendimentos na faixa de 1 a 5 salários mínimos – poderia mitigar a corrosão dos salários reais da classe trabalhadora. Como se sabe, o preço do tomate impacta muito mais a “inflação dos pobres” do que o aumento do Romanée-Conti.

Adotada com cautela e apenas enquanto houver clara pressão de custo, a medida não gerará efeito rebote via superaquecimento da demanda. Isso porque: (1) não há descasamento entre oferta e procura, pois as famílias estão simplesmente substituindo alimentos tradicionalmente consumidos por itens de menor valor monetário e alimentício; (2) a esperada elevação da demanda simplesmente compensaria a contração do consumo que vem sendo observada nos últimos meses.

Dada a maior elasticidade da oferta de bens primários se comparada à dos produtos industrializados, não faz muito sentido utilizar a folga ocasional da arrecadação tributária dos últimos meses para reduzir em 35% o IPI de determinados bens duráveis – tais como aparelhos de televisão e de som, armas, artigos de metalurgia, brinquedos, calçados, carros, máquinas, móveis e tecidos. Não que a indústria não precise de apoio, mas alimentar a massa faminta me parece mais prioritário do que oferecer algum conforto material à classe média.

Por fim, se os governos pós-2016 não tivessem arruinado a capacidade de regulação de estoques da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), tais problemas, o social e o econômico, seriam, hoje, menos dramáticos. De acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), foram fechados pelo menos 27 armazéns da Conab desde 2019, instituição responsável não apenas pelos estoques de alimentos básicos, mas também por adquirir produtos da agricultura familiar, notadamente, alimentos.

De toda forma, qualquer aluno segundoanista de Economia sabe que política monetária contracionista não é o instrumento mais adequado para se conter inflação de oferta. Funciona? Muitas vezes sim, mas além do bebê, desfaz-se da água, da bacia, do sabão, da bucha e da toalha. Excesso de demanda efetiva não me parece ser, nem de longe, o principal problema da economia brasileira em 2022. Mais uma vez, o Brasil ocupa, após o novo aperto monetário do início de maio, o pouco lisonjeiro posto de maior pagador de juros reais do planeta.

Todo problema complexo enseja uma solução simples e errada. Há de se ter cautela, naturalmente; o quadro inflacionário é delicado e não parece passageiro. Mas como se vê, meios de mitigar o sofrimento do imenso contingente do lumpemproletariado, há. E o mercado não precisaria perder um segundo de sono, pois se trata de medida tão excêntrica quanto essa maldita necessidade biológica de se alimentar. Mais natural e ortodoxa, impossível. Requer apenas doses homeopáticas de conhecimento técnico, vontade política e habilidade comunicacional. Tudo o que o atual governo não tem.

Ivan Colangelo Salomão, professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná (UFPR)

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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