
A reinvenção ou o ocaso: a encruzilhada do PT
por José Machado
“O partido foi contaminado por uma estrutura partidária que se aplica a todos os partidos, é que no Brasil são os parlamentares que têm peso no partido (…). Eles são aqueles que adquirem poder real. O partido passa a ser um partido de parlamentares. Não, não é que o parlamentar pertence ao partido. É o partido que pertence aos parlamentares. Isso gera uma distorção muito forte. Porque o parlamentar é como um animal selvagem. Ele acorda pensando na reeleição. Quando vivemos em função dessa reeleição, perdemos a identidade do projeto”. Gilmar Carneiro, entrevistado em São Paulo em 18 de agosto de 2014 pelo professor francês Philippe Degrave, autor de “Le parti de travailleurs brésilien: de son émergence à la conquête du Planalto, 1979-2002” (Postagem de Paulo de Mattos Skromov em 23/11/2024 no Facebook)
A má performance do PT nas eleições municipais deste ano segue produzindo avaliações as mais diversas sobre suas causas e os seus efeitos. O debate é necessário e quanto mais amplo melhor, pois será péssimo se ficar confinado a círculos restritos.
A intenção aqui é trazer à baila alguns aspectos de um tema que tem sido evitado, talvez convenientemente, e que se refere à crise da estrutura partidária. Não basta afirmar que o PT abdicou do trabalho de base, mas é preciso entender o porquê. É preciso entender por que as instâncias partidárias, desde o topo, se fragilizaram e afetaram a dinâmica orgânica, tornando-a extremamente verticalizada, descontínua, errática e fragmentada. É irrenunciável avaliar se a ação partidária não está excessivamente subordinada à lógica dos interesses eleitorais (melhor dizer, eleitoreiros), gerando uma ambiguidade indesejável, sobretudo quando esses interesses estão incrustrados nas instâncias de direção.
É fato que o trabalho de base, que tinha os núcleos de base como instrumento organizativo, perdeu força e praticamente desapareceu em consequência da amputação e/ou perda de força de braços fundamentais que davam motivação e suporte à militância, como o movimento sindical e as comunidades eclesiais de base. O partido assistiu perplexo o preenchimento desse vácuo pela emergência da força devastadora, que não tinha como deter, da teologia do domínio, presente na maioria das igrejas neopentecostais, espalhadas, sobretudo, nas periferias das cidades. Acolhedora e impregnada de ideias e conceitos, como o negacionismo ou como o que recomenda e estimula o empreendedorismo individualista, essa vertente teológica contribui dramaticamente para a alienação ideológica da classe trabalhadora, sobretudo a juventude. Essa circunstância é sobremaneira agravada pela ação ameaçadora do crime organizado nas comunidades.
O partido não foi capaz também de resistir e se adaptar à avassaladora transformação da tecnologia digital, que impôs, através das redes sociais, um novo padrão à dinâmica de aproximação e relacionamento com as classes populares, muito bem aproveitado pelas forças de direita.
Por outro lado, a crescente institucionalização do partido, conquistando mandatos no poder executivo e no poder legislativo, drenou muitos militantes e lideranças intermediárias para cargos comissionados e assessorias, agravando a disponibilidade militante para o trabalho de base. Isso sem contar o envelhecimento de amplas camadas da militância.
Nesse contexto todo, a ausência de uma consistente e sistemática política de formação de quadros, aliada ao abandono dos núcleos de base, revela-se um rotundo fracasso partidário.
Não bastasse o exposto, e para agravá-lo, tem-se observado, pelo menos no cenário paulista, e sem a pretensão de generalizar, a prática de parlamentares petistas, à revelia da direção local nas cidades, construirem estratégias para sua reeleição futura alicerçadas na cooptação, mediante remuneração, de militantes como seus cabos eleitorais. Apoiam candidatos a vereador (a), inclusive financeiramente, sob o compromisso de reciprocidade. Essa prática, de cunho clientelista, constrange e desestrutura a organização partidária nas localidades, sobretudo as de pequeno e médio portes, colocando em segundo plano e subalternizando as instâncias de direção, pois a linha política é totalmente capturada para enaltecer o parlamentar e não o projeto partidário. Nos últimos tempos, as emendas parlamentares turbinam esses propósitos.
Tem-se testemunhado o fato de que tais emendas parlamentares, destinadas a entidades ou projetos públicos de uma determinada cidade, são definidas sem a consulta preliminar à direção local, a qual toma conhecimento dessa iniciativa quando a vê estampada pelas mídias, a posteriori. Mais grave ainda, nesse cenário, é quando o parlamentar acumula a função de dirigente de alguma instância superior da hierarquia partidária: ele pisa no território como parlamentar, mas ignora ou menospreza sua condição de dirigente, pois sua presença fugaz não gera nenhuma simbiose com a direção local e com a militância.
Ainda no cenário paulista, o que se constata é que a direção partidária estadual não existe como tal: os dirigentes são invisíveis para as instâncias municipais e a militância em geral, não pisam no território, não orientam, não auscultam, não planejam, não propõem diretrizes de ação. Os antigos encontros partidários deliberativos, prenhes de energia militante, não se realizam mais. O tal PED, exaltado como exemplo de democracia partidária, é um simulacro. O PT no estado de São Paulo não tem projeto.
Quando se olha a instância nacional o quadro não é melhor. Ela não se articula com as instâncias subnacionais e, salvo um ou outro dirigente, os demais são desconhecidos e não se sabe o que fazem. As resoluções daí emanadas, face à conjuntura, são esporádicas, não trazem diretrizes estratégicas de ação, não são lidas e apropriadas pelas instâncias inferiores e muito menos pela militância em geral, portanto, não geram efeito orgânico nenhum. A distribuição do fundo eleitoral é, no mínimo, duvidosa, privilegiando quem já tem privilégios. O PT Nacional igualmente não tem projeto.
Esse conjunto de lacunas e deformações gerou um amplo descrédito na militância e muitos se afastaram dela, fator que contribui para compreender porque o trabalho de base feneceu e porque, combinadamente com ele, as parcas atividades de agitação e propaganda somente se sustentam hoje, em larga medida, na remuneração de pessoas, legitimamente preocupadas com sua sobrevivência, porém alheias ao projeto partidário.
Discute-se hoje se o PT deve dar uma guinada ao centro ou à esquerda. Nem uma coisa nem outra: o PT deve se manter fiel ao seu projeto histórico! Partido de massas, socialista, democrático. Quando necessário faz alianças para disputar eleições e governar, mas comparece à mesa de negociações com o seu portfólio.
A reflexão aqui trazida não abstrai o fato crucial de o PT governar hoje o país. O governo Lula vem fazendo das tripas coração para garantir a governabilidade, tendo o tempo todo que ceder os anéis para não ceder os dedos. Não há mobilização popular para mitigar essa circunstância e favorecer avanços importantes, face a desafios como a permanência das abissais disparidades sociais, a fome e a miséria, o avanço do crime organizado, a pressão desmesurada do mercado financeiro para impor seus interesses, o enfrentamento das mudanças climáticas, a defesa do Estado Democrático de Direito, entre outros.
As investigações da PF, que desvendou a intentona golpista, projeta um cenário de disputa renhida. Acuada, mas não inerte, a ultra-direita tentará de todas as formas impedir a penalização legal dos envolvidos e insistirá no seu projeto de anistia. O desfecho dessa disputa é fundamental, pois trata-se de uma oportunidade inédita na história republicana brasileira de nos livrarmos, em definitivo, do golpismo e da tutela militar.
O que se procurou apontar aqui é que o PT, tomado por deformações e lacunas, descaracterizou-se e fragilizou-se organicamente, tornando-se impotente para definir e colocar em prática uma linha de ação política que resgate os brios da militância, mobilize a sociedade e dê suporte ao governo Lula.
Sem saudosismo, o PT precisa resgatar sua cultura de construção de baixo para cima, com a máxima horizontalidade e proativismo possíveis. A trincheira parlamentar é fundamental para os propósitos partidários, portanto, isso não está em discussão. O que se questiona é a submissão da dinâmica partidária à lógica dos interesses eleitorais dos parlamentares.
Ou se reinventa, numa verdadeira revolução interna, sob a égide de lideranças inspiradoras em simbiose com a rebeldia da militância, ou o PT caminha para o ocaso.
José Machado – Foi Prefeito de Piracicaba/SP e Deputado Federal/PT-SP
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Do justo arrazoado não entendi a opção do PT: centro ou esquerda. Para mim já está no centro faz tempo e opção única é à esquerda. O identitarismo sonegou a pauta da esquerda.
Desde 1987, quando entrei para o PT pela Juventude Petista havia esse debate:
Partido de quadros ou de massas.
Sim, o PT não soube afastar a hierarquização interna estabelecida não só por quem detinha mandatos, mas houve também a verticalização das tendências, na figura dos “capas pretas”, onde o resto era chamado de “garrafinhas”.
Vejam bem, não se trata de desconhecer a hierarquia organizacional necessária a qualquer ajuntamento social ou organização coletiva.
No entanto, essa hierarquia não pode ser política, como determinante de quem será o “dono” da narrativa.
Assim, o PT no Brasil virou um puxadinho de SP, e de Lula.
O resultado está aí.
Alguns bons quadros saíram outros foram expulsos, em nome de uma “disciplina” que nada mais significava que: eleger Lula e outros mandatários, pois cometiam a heresia de falar em socialismo ou enfrentamentos.
Talvez por isso a adaptação aos “novos tempos” de teo-tecnologia tenha sido um desastre.
Temos um presidente zumbi e anacrônico, sem forças para dar ordens a um bando de bebedores de leite condensado e pintores de meio fio.
Nossos prefeitos e governadores não se distinguem, raro honrosas exceções, daqueles do PSD, PP, etc.
PT é morto, como dizem os italianos.
Certamente é o ocaso. O PT não tem mais idealistas. O idealismo do PT há muito tempo é gerir as crises do capitalismo e distribuir para os de baixo as migalhas do banquete dos poderosos. Eles estão todos ocupados, gerindo os negócios da burguesia.
Texto escrito com um bisturi preciso, manejado com a mão de um mestre. Excelente, Machado. Parabéns.
O artigo é honesto e corajoso, representa o sentir de uma grande parcela da,ainda resistente, militância, só agregaría à incompetente presença das “correntes” internas do PT, quando surgiram, se valoraba o caráter democrático do partido, que permitía o debate de idéias ao seu interior, possibilitando assim o crescimento ideológico concreto da militância. E o que vemos hoje? A luta por espaços de poder burocrático. É isso que resta das correntes.Há muitos exemplos sobre isto.
Estou dentro desses velhos militantes, que sentimos profunda dor, ao vermos nosso ideal se esfumando, pela preguiça intelectual, de essa classe de dirigentes incapaces de interpretar às lições quê à história nós dá como exemplos na nossa América Latina.
Muito bom artigo do José Machado.
Gostaria de revê-lo.
Se alguém puder passar meu endereço a ele agradeço.