A luta em defesa da política das águas no Brasil, por José Machado

As mudanças climáticas exacerbaram os riscos de desastres de natureza hídrica, sobretudo quando associados à má gestão dos recursos

Pedro França – Agência Brasil

A luta em defesa da política das águas no Brasil

por José Machado

A aprovação da Lei 9433/1997, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos – PNRH, representou um marco fundamental para implantar no Brasil uma adequada gestão das águas doces brasileiras.

A PNRH introduziu virtuosa e sustentável visão de que Governo e sociedade devem ser parceiros constantes e imprescindíveis no cuidado com as águas. A partir dela, tornaram-se possíveis a construção do Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos – SINGREH, incluindo o Conselho Nacional de Recursos Hídricos – CNRH, o fortalecimento dos órgãos gestores estaduais e a criação de comitês de bacia, configurando um sistema democrático, descentralizado e participativo, sempre apoiados por uma Secretaria Nacional de Recursos Hídricos instalada no âmbito do Ministério do Meio Ambiente – MMA e com visão multi-setorial. A partir de 2000, por força da Lei nº 9984, incorpora-se a esse Sistema, como órgão regulador e implementador da PNRH, a Agência Nacional de Águas – ANA, também vinculada ao MMA, propiciando um grande salto qualitativo ao processo.

A crise política nacional desencadeada a partir de 2016 abateu-se de forma destrutiva sobre políticas públicas em geral e desse desiderato devastador não escapou a PNRH e, de lá até o presente momento, é notável a regressão institucional da política das águas.

Determinado a esvaziar e enfraquecer o Ministério do Meio Ambiente, para “passar a boiada”, o governo Bolsonaro transferiu para o Ministério do Desenvolvimento Regional – MDR a responsabilidade federal pela elaboração, deliberação e implementação da PNRH, aí incluídos o CNRH e a ANA. O resultado disso, dentre outros retrocessos, é que o CNRH deixou de funcionar e a atuação da ANA, progressivamente integrada por pessoas com visão divergente da proposta pela PNRH, passou a ser orientada por propósitos corporativos e privatistas no uso da água.

Reforçando essa orientação, evidentemente contrária à universalização do acesso a esse bem por todos os brasileiros e brasileiras, essa Agência recebeu em 2020 nova atribuição legal – editar normas de referência para a regulação do setor de saneamento básico. De fato, ela tornou-se agente promotor da implementação da Lei nº 14026, participando ativamente nas privatizações de empresas de saneamento básico. Tal desvio de conduta de uma reguladora, inédito na história da Agência, contribuiu para a perda de dinamismo da ANA perante sua missão originária.

O CNRH, os conselhos estaduais e os comitês de bacia, antes tão alvissareiros e decisivos para a gestão das águas, sobretudo nas bacias hidrográficas com situações hídricas críticas, perderam força e visibilidade, comprometendo a construção compartilhada de soluções sustentáveis para a boa distribuição da água, que permitam garantir aos múltiplos usos o suprimento de águas para o desenvolvimento social e econômico do Brasil.

O Governo Lula demonstrou, no início da gestão, a vontade expressa de resgatar o arcabouço institucional originário da PNRH ao tentar devolver ao atual Ministério do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas – MMA a responsabilidade central pela elaboração e implementação da PNRH, corretamente revinculando a ANA e o CNRH a esse Ministério. Contudo, como vimos, o Congresso Nacional não permitiu tais mudanças, mantendo a tutela setorial sobre a PNRH no agora intitulado Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional – MIDR.

Restou ao MMA uma responsabilidade residual no tocante à formulação da PNRH, a ser coordenada por instância no nível de um mero departamento – Departamento de Revitalização de Bacias Hidrográficas, Acesso à Água e Uso Múltiplo dos Recursos Hídricos, improvisado na Secretaria Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais e Desenvolvimento Rural Sustentável. Ou seja, uma estrutura carente de adequação, visibilidade e empoderamento político.

Já as responsabilidades do MIDR, virtualmente maiores, carecem, igualmente, de uma estrutura de governança compatível, pois lá também cabe a um departamento – Departamento de Recursos Hídricos e Revitalização de Bacias Hidrográficas, igualmente improvisado em uma Secretaria Nacional de Segurança Hídrica, a responsabilidade pela formulação da PNRH. Não é à toa que, nesse contexto, o CNRH e a própria ANA perdem força e, consequentemente, capacidade para impulsionar a PNRH.

As mudanças climáticas exacerbaram os riscos de desastres de natureza hídrica, sobretudo quando associados à ausência ou má gestão dos recursos hídricos, haja vista o ocorrido agora no no Estado do Rio Grande do Sul, para ficarmos no caso mais recente. Nele, talvez mais do que qualquer outro de natureza hídrica já registrado em nosso pais, o que se constatou foi o abandono a que foi relegado naquele estado o sistema de gerenciamento de recursos hídricos, evidenciado pela precariedade dos órgãos gestores e, consequentemente, pela incapacidade de implementação dos instrumentos de gestão, tal como preconizam a lei federal e também, no caso, a lei estadual.

O Rio Grande do Sul que foi pioneiro ao criar e implantar o primeiro comitê de bacia no Brasil – o Comitê do Rio dos Sinos – não logrou edificar um sistema estadual de gerenciamento de recursos hídricos à altura do seu pioneirismo e nem das necessidades prementes que se afiguravam problemáticas perante o futuro. Esse futuro chegou e pegou o RS de calças curtas. Houvesse alcançado um nível de excelência em gestão hídrica minimamente razoável, com uma rede hidrometeorológica e um sistema de alerta adequados e integrados,  e teria sido possível mitigar conjunturalmente, pelo menos, os efeitos devastadores, inclusive com a perda de vidas, provocados pelas enchentes. Por outro lado, numa perspectiva estrutural, a excelência em gestão hídrica, com o empoderamento dos comitês de bacia e a implementação dos instrumentos de gestão, notadamente a cobrança pelo uso da água e os planos de bacia, caso tivessem amadurecido e sido implementados, já teriam produzido soluções capazes de reduzir as dimensões e os riscos de enchentes nas bacias afluentes, mesmo perante precipitações atípicas.

Estamos enfatizando a tragédia gaúcha porque acabou de ocorrer, mas não podemos nos esquecer, numa situação oposta, do padecimento do semiárido nordestino com secas recorrentes e cada vez mais prolongadas, a exigir, mais do que nunca, mercê das mudanças climáticas e de uma gestão federal ainda desamparada, uma atenção igualmente especial.

As grandes concentrações urbanas brasileiras, por seu turno, estão sob risco permanente de colapso no abastecimento de água, haja vista a crise hídrica de 2014, que abalou a macrometrópole paulista, e a crise de 2016, que atingiu a capital federal. A dependência de nossa matriz elétrica na energia hidráulica, ainda predominante, torna o crescimento econômico do País extremamente vulnerável a fenômenos climáticos extremos, conforme recentemente observado na crise hidroenergética de 2021 na bacia do rio Paraná, agravada quando a gestão das águas encontra clara situação de desmantelamento.

A reestruturação e o fortalecimento da PNRH são estratégicos para o País e sua implementação, como nunca, precisa ser colocada no topo da agenda governamental. A situação relatada nos parágrafos anteriores é ilustrativa da governança diminuta, caótica, esgarçada e insustentável que hoje predomina no âmbito da PNRH. A regressão da política das águas está cobrando o seu preço e a tendência, caso não sejam corrigidas

com urgência as distorções apontadas, é a conflagração de cenário cada vez oneroso em termos econômicos, ambientais e de perda de vidas humanas.

O correto é que a centralidade na implementação da PNRH estivesse atribuída ao MMA, pois é ali, e não no MIDR, o lócus mais adequado à necessária visão sistêmica e multi-setorial da gestão das águas, mitigando conflitos e garantindo a sustentabilidade exigida mundialmente para lidar responsavelmente com os nossos recursos naturais. O MIDR está vocacionado para implantar e gerir infraestrutura hídrica em todo do País e, por essa razão, sua relevância é inquestionável, integrando-se ao processo de gestão das águas, mas não o centralizando, até porque não tem vocação e estrutura para tanto.  Contudo, o Congresso Nacional, dominado por interesses subalternos ao interesse nacional, assim não quis. Por outro lado, o governo federal, para muitos equivocadamente, optou por não confrontar essa questão, deixando-a no limbo em que se encontra.

Preocupado e atento a esse quadro desalentador que domina a gestão das aguas brasileiras na atualidade, um punhado de brasileiros e brasileiras de todos os rincões do pais, decidiu erigir uma Articulação Nacional em Defesa da PNRH e, com o respaldo de 700 assinaturas, enviou ao Presidente Lula, em meados do ano passado, uma Carta denunciando a situação e clamando pelo seu enfrentamento em busca de soluções.

Essas soluções obviamente  não cairão do céu e, ciente da dificuldade política, mas não acomodada a ela, a Articulação propôs nessa carta ao Presidente que, por decreto, instituísse, sob a coordenação da Casa Civil, uma força-tarefa no âmbito do Governo Federal com a incumbência de, em diálogo franco e aberto com as instâncias do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, num prazo determinado, debater e propor o resgate da política das águas, reforçando seu caráter democrático, descentralizado e participativo.

É necessário registrar que, desde o envio dessa Carta, a Articulação foi recebida pelo segundo escalão do MMA, ficando nítido que este Ministério, lamentavelmente, não está disposto a liderar qualquer diálogo para o resgate da PNRH; sua reação à Carta ao Presidente Lula foi fria e burocrática.

A Articulação se reuniu com o primeiro escalão do MIDR, que contou com a presença do Ministro Valdez, iguamente para debater os termos da Carta. Embora cordial e à primeira vista assertiva, as indicações sugeridas nessa reunião deliberadamente caíram no vazio.

Não obstante, o MIDR, pressionado, cuidou de tomar providências para resgatar o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, que, após quase dois anos de paralisia, deve se reunir em setembro do corrente ano. É duvidoso o êxito desse resgate, pois não há como fugir do fato de que esse colegiado seguirá tendo uma composição deformada, que lhe subtrai o caráter nacional: o governo federal equivocadamente insiste em ter maioria para controlá-lo, abrindo mão da representação plena dos 27 estados da federação e de uma representação mais robusta da sociedade civil. A Articulação se pronunciou a respeito dessa deformação por meio de mensagem formal ao MIDR e recebeu, como resposta, um comunicado burocrático e sem conteúdo da Ouvidoria.

Resumo da ópera: o Governo Federal, confrontado com uma governabilidade difícil, aparentemente não está predisposto a alterar o status quo da PNRH, justamente no momento em que, diante da catástrofe do RS, esse desiderato se revelou um imperativo dramático diante das mudanças climáticas. A mídia corporativa em geral, salvo o testemunho de poucos comentaristas, lamentavelmente se omite e não dá nenhum destaque a esse dilema.

A boa notícia é que se criou na Câmara dos Deputados no último dia 10 de julho a Frente Parlamentar em Defesa das Bacias Hidrográficas Brasileiras.

A luta é dura, mas não abdicaremos dela. 

José MachadoFoi Prefeito de Piracicaba/SP; Deputado Estadual e Federal; Diretor-Presidente da ANA e Secretário Executivo do MMA

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