As Fake News têm projeto, por Luis Felipe Miguel

O objetivo mais óbvio da proliferação de mentiras é prejudicar o trabalho de socorro às vítimas das enchentes e, assim, desgastar o governo.

Gustavo Mansur – Palácio Piratini

As Fake News têm projeto

por Luis Felipe Miguel

O perfil da Bia Kicis – deputada bolsonarista de extensa ficha corrida – divulgou o vídeo que mostra a vigilância sanitária interrompendo o trabalho de pessoas que preparavam comida nas ruas em Porto Alegre. O recado, explicitado na legenda, é óbvio: “O Estado ajudaria muito se não atrapalhasse”.

O vídeo é do ano passado, sem relação com a tragédia de agora. A deputada sabe disso; caso não soubesse, muitos internautas, inclusive admiradores dela, foram lá avisar. Não importa, ela quer passar a mensagem.

Assim como ela sabe que ações do Estado são fundamentais para o socorro às pessoas atingidas pelas inundações – isto é, que aquilo que ela quer transparecer com o vídeo é objetivamente uma inverdade. Mas, uma vez mais, não importa.

Kicis não liga explicitamente as cenas ao desastre no Rio Grande do Sul. Deixa a conexão, óbvia, ser feita pelo público. E, como disse uma seguidora particularmente imbuída do código ético bolsonarista, se aconteceu não é fake news…

Essa tem sido uma das denúncias falsas mais comuns: contra a vigilância sanitária. A outra é sobre caminhões com ajuda sendo parados na fiscalização das estradas, por falta de nota fiscal,

O objetivo mais óbvio da proliferação de mentiras é prejudicar o trabalho de socorro às vítimas das enchentes e, assim, desgastar o governo. O bolsonarismo revela, uma vez mais, seu absoluto desprezo pelo valor da vida humana.

Mas há um segundo objetivo, mais de longo prazo, por assim dizer, que é demonizar a ação do Estado. Ele só atrapalha – seria melhor se nem existisse.

A vigilância sanitária, vejam só, existe apenas para atrapalhar a vida das pessoas comuns. Num mundo ideal, sem Estado, todos seriam livres para intoxicar uns aos outros,

Da mesma maneira, não deveria haver controle fiscal, a fim de que os empresários pudessem sonegar impostos à vontade.

Estamos falando do Rio Grande do Sul, onde, semanas antes das enchentes, o incêndio em um abrigo matou 10 pessoas. Os políticos que foram lamentar a tragédia eram, em muitos casos, os mesmos que tinham aprovado a regra que dispensou o alvará do corpo de bombeiros para diversos tipos de empreendimentos – incluindo aquele que pegou fogo.

O mesmo estado em que os órgãos da proteção ao meio ambiente tiveram reduzidas suas atribuições, já que agora as empresas podem fazer um “autolicenciamento” ambiental.

São todas iniciativas de destruição da capacidade fiscalizadora e regulatória do Estado.

Mas não é que esse pessoal realmente deseje o “Estado mínimo” de que tanto fala. O estado deve ser mínimo, se possível inexistente, quando se trata de combater o trabalho escravo, garantir a arrecadação de impostos das grandes corporações, colocar em prática regras de defesa do consumidor ou de proteção ambiental, prover educação e saúde de qualidade.

Mas na hora de socorrer empresar falidas ou oferecer subsídios a preços camarada, na hora de manter uma força policial especializada em matar pobres, na hora de reprimir movimentos sociais, aí eles querem um Estado bem forte.

Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular).

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