As duas facetas da religião: alienação e força transformadora
por Delana Corazza
Desde 2018, o tema do voto evangélico entrou com força no debate da política nacional brasileira, dado o rápido e vertiginoso crescimento do setor nas últimas três décadas junto a uma visão mais conservadora deste segmento da população. Só para nos situarmos no espaço/tempo, de acordo com o IBGE, nos anos 2000 cerca de 15% da população brasileira se declarava evangélica; em 2019, esse número saltou para 31%, segundo pesquisa do Datafolha.
Nestas eleições presidenciais, esta questão ganhou ainda mais relevância, já que de um lado temos o candidato Jair Bolsonaro, que habilmente percebeu a importância dessa parte da população e construiu sua imagem nos últimos anos de modo que pudesse dialogar com a formação sociopolítica dessa parcela da população, e do outro o ex-presidente Lula, que tem o desafio de ajustar seu discurso para tentar dialogar com o povo crente.
No primeiro turno, houve uma diferença de cerca de 20 pontos percentuais entre os dois principais candidatos (60% para Bolsonaro e 40% para Lula). O voto evangélico poderia decidir as eleições no primeiro turno, mas não se pode cair no erro de culpabilizar a população crente. O desafio colocado aqui para as forças progressistas no Brasil é entender qual linguagem, no diálogo direto com o povo, tem escapado para uma aproximação de parte significativa da classe trabalhadora para um projeto antagônico ao fundamentalismo.
O primeiro passo é entender que as pequenas igrejas evangélicas que se multiplicaram nas periferias das cidades cumprem, atualmente, um papel fundamental na vida cotidiana da classe trabalhadora mais empobrecida. Em uma sociedade marcada pela desigualdade e pela violência, em que os trabalhadores são abandonados à própria sorte, culpabilizados e responsabilizados pelas mazelas sofridas há gerações, encontrar um lugar de acolhimento e esperança em seus cotidianos não é pouco. No entanto, o pouco que se sabe é que esses trabalhadores são capazes de realizar negociações internas entre a fé e suas tantas outras identidades. Olhar os evangélicos enquanto uma massa amorfa, moldada segundo seu pastor, é uma inverdade e não ajuda em nada a avançar na construção de uma contra-hegemonia no campo religioso. A religião traz em si duas facetas em disputa: é tanto alienação como força transformadora.
Nesse sentido, mais do que ganhar votos, este período eleitoral pode ser uma oportunidade para o campo progressista construir um projeto que avance na batalha de ideias junto ao povo crente, parte significativa da classe trabalhadora e que atualmente se organiza dentro das igrejas evangélicas. O imediatismo das eleições não combina com um trabalho popular de base, mas é a possibilidade de um diálogo direto e de adentrar nos territórios, reconhecer novas linguagens e disputar visões de mundo. Vale dizer que realizar trabalho de base com o povo crente diz respeito também a olhar os evangélicos enquanto classe trabalhadora, que busca na sobrevivência cotidiana pequenas alegrias em um futuro não tão distante quanto uma revolução.
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A direita fundamentalista cristã tem manejado afetos a partir do pânico moral com ameaças constantes, principalmente às mulheres, aos seus filhos, à sua família. O discurso da ex-ministra e recém eleita senadora pelo Distrito Federal, Damares Alves, por exemplo, em um culto descrevendo atrocidades contra crianças, é, para além de perverso, uma estratégia para vincular parte da classe trabalhadora a um projeto que tem o medo como principal narrativa. Esses discursos fundamentalistas chegam no cotidiano dos trabalhadores e trabalhadoras, e tem como alicerce inúmeros pastores que estão em plena campanha eleitoral com uma linguagem audível para a maioria da população.
Porém, vale lembrar que nas eleições de 2018, Bolsonaro teve cerca de 70% do voto evangélico. Ou seja, os “eleitores mais fiéis” do atual presidente não são tão fiéis assim; os evangélicos, em toda sua diversidade, são afetados pela mudança na vida material, na disputa dos afetos e pela tragédia vivida na pandemia, aprofundada pela gestão do candidato à reeleição.
O rosto evangélico no Brasil não é e nunca foi de homens brancos raivosos que anunciam nas telas de TV suas prosperidades financeiras, mas sim de uma mulher negra, empobrecida e periférica que, ao estar na base da pirâmide social, resiste e sobrevive, cuja fé é, muitas vezes, seu principal combustível. É tarefa urgente do campo popular e democrático reconstruir a esperança coletiva a partir das tantas identidades da classe trabalhadora: mulheres, negras, mães, trabalhadoras, militantes de movimentos sociais e também evangélicas em sua estética, códigos e emoções.
Para isso, é preciso adequar a linguagem progressista para esse diálogo, compreender e respeitar a fé como expressão legítima do povo. Neste momento eleitoral, vale apurar a escuta, compreender as entrelinhas e sutilezas dos discursos da população crente para poder adentrar, respeitosamente, na realidade mais ordinária do povo. As fissuras nos discursos fundamentalistas se evidenciam a partir da vida cotidiana da classe trabalhadora; é nesse chão que pode-se criar possibilidades para rupturas de uma espiritualidade conservadora e criar caminhos para avançar em propostas para um projeto de país onde todos se sintam, verdadeiramente, parte.
Delana Corazza é pesquisadora do Observatório sobre os Evangélicos e a Política do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Cientista Social (PUC-SP) e mestre em Arquitetura e Urbanismo (USP).
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Delana, sua proposta é muito interessante e importante, mas como vc mesma alerta, leva tempo para mudar esse cenário. Os fascistas dentro e fora das igrejas têm como sua matéria prima a mentira 24 horas por dia, e lidar com as mentiras, tendo que responder e explicar, é um trabalho insano. Mas vamos em frente, não podemos esmorecer. Domingo agora vamos eleger Lula, que é apenas o começo de uma mudança mais profunda e urgente.