Familiares de mortos e desaparecidos políticos manifestam repúdio às ações do governo Bolsonaro

'Exigimos mais do que respeito, mas sim a obediência à Constituição e Leis Nacionais além das Sentenças Judiciais Condenatórias, mediante o cumprimento de juramento solene prestado na posse do cargo'

Jornal GGN – Em carta aberta, familiares de mortos e desaparecidos políticos da ditadura militar (1964 – 1985) criticam as recentes ações do governo Bolsonaro de tratar o regime de exceção como revolução e, ainda, assinar o Decreto 9.759 que, além de extinguir os conselhos e comissões, enxuga gastos da administração pública podendo resultar em prejuízos da condução do Grupo de Trabalho Perus.

O GT é responsável por analisar as 1.047 ossadas retiradas de uma vala clandestina na Zona Norte da capital paulista, encontrada em 1990. Leia a seguir o manifesto na íntegra.

MANIFESTO DOS FAMILIARES DE MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS DO BRASIL

Nós, abaixo-assinados, familiares de presos políticos torturados, mortos e desaparecidos sob o regime de governo na forma de ditadura militar instalada no Brasil entre os anos de 1964 e 1985, vimos a público manifestar nosso total REPÚDIO e conclamar a Nação para se mobilizar contra as recentes ações do Governo que têm por objetivo o desmonte de toda uma estrutura pública organizacional fruto de conquistas sociais e amadurecimento democrático de nosso país e voltada ao atendimento de demandas históricas de mulheres, crianças, povos indígenas, socioambientais, de preservação de patrimônio cultural e de vítimas das mais diversas ações arbitrárias e criminosas levadas a cabo pelo ESTADO Brasileiro durante o período mencionado.

É FATO inconteste que, por 21 anos não havia no país liberdade de Imprensa ou de expressão, não tínhamos eleições livres e diretas para os Cargos Executivos nas 3 esferas (Municipal, Estadual e Federal), tampouco para todos os cargos legislativos, pois mesmo para o Senado, assim como para vários Governos de Estados, tínhamos vagas preenchidas “por indicação” (“biônicos”). Nossa sociedade não vivia uma situação de conflito armado interno aberto que justificasse todo um aparato repressivo mantido de forma CLANDESTINA, à margem das Leis e do conhecimento público pelo próprio ESTADO Brasil, uma estrutura “oficial atuando de forma oficiosa” que promovia prisões ilegais e arbitrárias, tortura, morte e desaparecimentos de pessoas praticados por Agentes do ESTADO Brasil, em instalações mantidas pelo ESTADO Brasil, e cuja ocorrência e documentação ainda hoje é ocultada pelo ESTADO Brasil. O nome disso é REGIME DE EXCEÇÃO, fora da normalidade democrática, e os atos praticados no período são RESPONSABILIDADE DO ESTADO BRASILEIRO, não importa quem o governe.

Em 2007 a Justiça Federal em sentença transitada em julgado determinou a apuração das mortes e desaparecimentos do conflito no Araguaia, e em 2010 a Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos- OEA (à cujas Decisões o Brasil, como membro integrante, deve se submeter) além de reiterar a condenação anterior ainda condenou o ESTADO Brasil a promover a investigação do destino de todos os presos mortos e desaparecidos e identificação das ossadas para sepultamento pelos familiares.

As submissões aos ditames da Constituição Federal, de Leis Nacionais e Tratados Internacionais, assim como o atendimento de condenações judiciais são devidas pelo ESTADO Brasil, e vêm sendo cumpridos no decorrer de diferentes governos, uma vez que seus dirigentes, ao serem eleitos, prestam juramento de dar cumprimento aos compromissos assumidos pelo Estado bem como às Decisões Judiciais impostas aquele. Exigimos mais do que respeito, mas sim a OBEDIÊNCIA à Constituição e Leis Nacionais além das Sentenças Judiciais Condenatórias, mediante o cumprimento de juramento solene prestado na posse do cargo.

Com o objetivo de dar cumprimento às previsões Constitucionais e Legais, além dos compromissos firmados pela assinatura de Tratados Internacionais e ainda às Sentenças Condenatórias transitadas em julgado emanadas da Justiça Federal Pátria e Internacional, foi criado em 2014 o Comitê Técnico formado por Antropólogos e Geneticistas Forenses que integra o Grupo de Trabalho Perus, responsável pela investigação e identificação das ossadas encontradas na Vala Clandestina do Cemitério de Perus, em São Paulo, numa tentativa de ocultar corpos de desaparecidos. Esse Comitê é uma iniciativa de atuação integrada do Governo Federal, a Prefeitura do Município de São Paulo e o Governo do Estado de São Paulo, e possui contratos em andamento firmados com profissionais no Brasil e também com o IMCP – Comitê Internacional de Pessoas Desaparecidas, laboratório sediado em Haia/Holanda que detém expertise reconhecida internacionalmente na identificação de restos mortais de pessoas desaparecidas pelos mais diversos motivos em vários países em todo o mundo. Registre-se que desse trabalho já resultou a identificação dos corpos de Aluísio Palhano, sindicalista e militante da Vanguarda Popular Revolucionária, e de Dimas Casemiro, operário gráfico militante do Movimento Revolucionário Tiradentes. E ainda, a qualificação obtida pelo desenvolvimento dessa equipe foi aplicada na identificação de mortos na recente tragédia do rompimento de barragem em Brumadinho/MG.

Mas não é “só” o importante trabalho de identificação das ossadas da Vala Clandestina de Perus que nos preocupa neste momento. Outra ameaça que paira sobre o devido cumprimento das normas e sentenças mencionadas é a anunciada indicação do Sr. Procurador Federal Ailton Benedito para fazer parte da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, criada pela Lei 9.140/95, que expressou sua incapacidade de reconhecimento da autoridade e pertinência de atuação de organismos internacionais ao chamar de “imoral” a ONU – Organização das Nações Unidas, além de demonstrar total incompatibilidade e inadequação para assumir tal função ao declarar que “militantes de esquerda precisam de ração diária de cadáveres”. É inaceitável e uma afronta a nomeação de pessoa com tais atributos e postura para integrar Comissão que tem por tarefa exatamente investigar os crimes cometidos pela ditadura militar contra todos aqueles que foram classificados como opositores.

Após 21 anos de regime de exceção, alcançamos a estabilidade democrática legitimada por uma Assembleia Constituinte e sete Presidentes. Um governo federal, independente de qual tenha sido eleito, com pouco mais de 3 meses de exercício do mandato, não possui autoridade moral para desmontar todo um processo de evolução organizacional e estrutural do Estado, construído ao logo de quase 4 décadas.

Queremos que o ESTADO Brasil cumpra os compromissos assumidos e as decisões judiciais garantindo a manutenção da estrutura de apoio para atuação e continuidade das atividades dos Comitês responsáveis pelas investigações para localização e a identificação dos restos mortais de nossos familiares mortos e desaparecidos em decorrência de confrontos no Araguaia ou ainda nas operações realizadas nas Casas da Morte de Petrópolis/RJ e Itapevi/SP, da Operação RADAR e possivelmente sepultados clandestinamente nos Cemitérios Ricardo de Albuquerque e de Perus, ou quaisquer outros locais que ainda venham a ser apurados.

Não somos “cães” que se alimentam de “ração de cadáveres” ou procuram ossos. Os cães de verdade enterram, escondem ossos para que ninguém os encontre. Somos seres humanos, Núcleos Familiares desintegrados que buscam o resgate da história e dos fatos que levaram à morte seus entes queridos, para os quais reivindicamos a reparação pelo resgate de seus restos mortais para dar-lhes um sepultamento digno. O direito universal de enterrar nossos mortos, exercido pela filha de Aluísio Palhano, Márcia Ferreira, que ao receber os documentos de identificação de seu pai, somente agora aos 70 anos, poderá enfim realizar a cremação e espalhar suas cinzas nas ondas do mar. É por este direito que lutamos.

Somos Filhos e Netos em busca de pais, mães e avós; Irmãos em busca de Irmãos; Viúvas e Viúvos em busca de maridos e esposas; Pais e Mães em busca de filhos e filhas, que foram presos, torturados, mortos e que ainda se encontram desaparecidos há 44 anos.
Não há como perdoar. É impossível esquecer. Tortura e Ditadura, Nunca mais!

ASSINAM (em ordem alfabética por nome do familiar desaparecido):

Familiares de Andre Grabois desaparecido no Araguaia em 13 de outubro de 1973, Gilberto Olimpio Maria e Maurício Grabois, desaparecidos no Araguaia em 25 de dezembro de1973.

Familiares de David Capistrano, sequestrado, torturado e morto na Casa da Morte, Petrópolis, RJ sob o comando do Exército, em março de 1974.

Familiares de Edgar Aquino Duarte, desaparecido desde 1973, em São Paulo

Familiares de Elson Costa, sequestrado e desaparecido desde 15/01/1975, em São Paulo.

Familiares de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira (Fernando Santa Cruz) desaparecido político, assassinado sob torturas, sequestrado na cidade do Rio de Janeiro, em 23/04/1974.

Familiares de Hiram de Lima Pereira, sequestrado e desaparecido desde janeiro de 1975, em São Paulo.

Familiares de Hirohaki Torigoe, detido após ser baleado, torturado e morto no DOI/CODI em São Paulo/SP, em 05 de janeiro de 1972.

Familiares de Jayme Amorim de Miranda, sequestrado e desaparecido desde Fev/1975, no Rio de Janeiro.

Familiares dos irmãos Lúcio Petit da Silva, desaparecido desde abril/1974, Jaime Petit da Silva, desaparecido desde dezembro/1973 e Maria Lúcia Petit da Silva, executada em 16 de junho de 1972, todos no Araguaia.

Familiares de Luís Ignácio Maranhão Filho, sequestrado e desaparecido desde abril de 1974, em São Paulo.

Familiares de João Massena, sequestrado em 3 de abril de 1974, desaparecido após morte sob tortura.

Familiares de Joaquim Alencar de Seixas, morto sob tortura, e desde então desaparecido, em 17 de abril de 1971, em São Paulo.

Familiares de Joel Vasconcelos, sequestrado e desaparecido desde 19/março/1971.

Familiares de Orlando da Silva Rosa Bomfim Júnior, sequestrado em 8 de outubro de 1975 no Rio de Janeiro, desaparecido após morte sob tortura.

Redação

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