
O Rodízio Golpista das Elites Nacionais
por Jorge Alexandre Neves
As tensões entre democracia e capitalismo formam um tema clássico de análise nas Ciências Sociais. Como tenho ressaltado em textos publicados aqui no GGN, no Brasil o tema ganha uma enorme complexidade, pois aqui ao conflito de classes, típico do capitalismo, soma-se um conflito de status – que também é algo presente em sociedades capitalistas de renda alta, como vem mostrando a teoria e a pesquisa sociológicas há muitas décadas – muito mais forte do que se costuma observar nos países capitalistas ocidentais (e do que em vários países latinoamericanos). Então, no Brasil, os estamentos do Estado costumam ter um peso político e social fora do comum.
Eu tenho defendido que, desde 2013, temos vivido um forte processo de conflito de status. Todavia, agora, a coisa parece ter mudado um pouco. Por que? Acho que a resposta é bastante simples. Tenho um grande amigo que é engenheiro e economista, professor aposentado de duas universidades federais, Luiz Rodrigues Kehrle, que, na segunda no final da década de 2000, ao analisar o processo de redução das desigualdades socioeconômicas do Brasil após a posse de Lula, me falou o seguinte: “Lula e o PT estão tentando fazer a omelete sem quebrar os ovos”. Ao que ele estava se referindo? Ao fato de que, naquele momento, se estava promovendo o combate a diferentes desigualdades socioeconômicas, mesmo sem se ter conseguido reduzir a terrível regressividade de nosso sistema tributário! Naquela época a conjuntura era muito favorável e foi, assim, possível fazer este, digamos, “milagre”. Hoje, contudo, o cenário é muito diferente. Chegou a hora da onça beber água!
Fiquei surpreso de ver um colunista econômico da mídia hegemônica ter tido a coragem de botar o guizo no gato, dando o nome aos bois e explicitado que estamos vivendo um forte conflito distributivo que tem como base a luta de classes (https://economia.uol.com.br/colunas/jose-paulo-kupfer/2024/12/19/crise-que-nao-se-sustenta-em-numeros-reflete-feroz-conflito-distributivo.htm). O conflito distributivo com base em classes, neste momento, alcançou um patamar que não vivíamos há algum tempo (provavelmente maior do que aquele enfrentado por Dilma e próximo do que se viveu entre 1961 e 1964).
O futebol costuma nos ofertar metáforas interessantes para fazer análises políticas. Irei fazer uso de uma. Em um jogo de futebol é comum o chamado “rodízio de faltas”. Diferentes jogadores de um time se revezam em fazer faltas no craque do time adversário. No Brasil, parece que as elites (vistas aqui como a soma dos estamentos com os diferentes segmentos da plutocracia) parecem fazer o mesmo quando se trata de tomar a iniciativa de tentar iniciar um golpe contra um governo progressista. Farei apenas três referências. Começando pelo golpe de 1964 contra Jango, vimos que teve como um evento crítico, que o iniciou, a marcha das tropas do Gal. Olímpio Mourão Filho, o que terminou por dar ao estamento militar um claro protagonismo naquele golpe. Considero que, por sua vez, o golpe contra Dilma teve como elemento ativador a gravação ilegal e a divulgação criminosa do áudio do diálogo entre a presidenta e o então ex-predidente Lula ordenada pelo então juiz Sérgio Moro, dando ao estamento jurídico, assim, certo protagonismo naquele golpe. Neste momento, considero que o claro ataque especulativo ao Real – que se iniciou por causa da proposta de criar progressividade tributária, com a isenção de IRPF para pessoas com renda até R$ 5.000,00 e elevação da tributação para quem ganha acima de R$ 50.000,00 – passou a assumir um claro caráter golpista a partir do dia 13 último, que sucedeu a divulgação da pesquisa Genial-Quaest, e que mostrou que tanto Lula, com mais folga, quanto Haddad venceriam quaisquer adversários em um eventual segundo turno de disputa presidencial. Os membros da Faria Lima foram tomados por incontrolável ira ao perceberem que, mais uma vez, seus candidatos prediletos têm elevada probabilidade de derrota nas urnas para um candidato progressista. O gráfico abaixo mostra o comportamento do câmbio Real/Dólar no mês de dezembro (de 02 a 19). Como há muita volatilidade, não sei se a leitora ou leitor vai conseguir perceber tão claramente, mas havia uma tendência de queda da apreciação do dólar até o dia 12, quando foi divulgada a referida pesquisa da Quaest. A partir do dia 13, contudo, a tendência se inverte de forma aguda, passando a ser de elevação da apreciação cambial do dólar, de maneira muito mais pronunciada e com menos volatilidade.

Para buscar deixar mais clara a tendência observada, decidi estimar um modelo estatístico bastante simples, regressando o valor de fechamento diário do câmbio sobre os dias do mês, ajustando equações segmentadas para os períodos antes e depois da divulgação da pesquisa. A melhor forma de exibir o resultado é através do gráfico abaixo. É importante ressaltar que o modelo estimado (MQO), embora com a precaução de controle da tendência temporal, não é o ideal para o tratamento de dados distribuídos no tempo. Os resultados, portanto, têm caráter apenas ilustrativo. Porém, eles mostram, de forma cristalina, que as curvas de regressão estimadas por MQO para os dois períodos de tempo são totalmente diferentes. Ao passo que a curva azul (estimada com dados do dia 02 ao dia 12) tem inclinação negativa, a curva verde (estimada com dados do dia 13 ao dia 19) tem inclinação positiva e bem mais pronunciada do que a azul (o que explica, junto com a diferença nas volatilidades, a enorme discrepância entre os coeficientes R2 das duas equações). Portanto, buscando esclarecer o que se está tentando mostrar, as evidências empíricas apresentadas dão suporte à conclusão de que a divulgação da pesquisa Genial-Quaest no dia 12 último foi um fator crítico que mudou a evolução do câmbio ao longo do mês de dezembro.

Quero concluir, pois, com a afirmação de que o comportamento absolutamente extravagante do mercado de câmbio brasileiro, sem qualquer paralelo em uma comparação internacional, tem um evidente caráter político e busca conseguir, através de operações do mercado financeiro, o mesmo que o estamento jurídico, através da fraudulenta operação lava jato, conseguiu realizar contra o governo Dilma, em 2016, ou seja, dar início a um novo golpe de Estado! Mais uma vez na nossa história, como as elites perceberam que não conseguirão vencer as forças progressistas em um processo eleitoral limpo (o que não ocorreu em 2018, com Lula em situação de preso político do estamento jurídico), partiram para a promoção de um novo golpe. É mais do mesmo, trata-se do que temos visto de forma recorrente na nossa história. A única coisa que tira um pouco a sensação de déjà-vu é o rodízio golpista.
Jorge Alexandre Barbosa Neves – Ph.D, University of Wisconsin – Madison, 1997. Pesquisador PQ do CNPq. Pesquisador Visitante University of Texas – Austin. Professor Titular do Departamento de Sociologia – UFMG – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
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Ellen Meskins Woods nos diz, em sua obra Capitalismo Contra Democracia, que esse escrutínio da ciência social sobre a tensão entre democracia e capitalismo não é só perda de tempo, e falso.
Talvez o autor se refira a um mercado representativo.
Essa conversa fiada de “direito individual” ou “liberdades civis”, que raramente podem ser visualizadas por completo, e quando são, nunca se exercem sem as clivagens e hierarquias de classe(pobre só tem liberdade de dizer sim, senhor), não podem ser referência para existência de democracia.
Democracia é alternância de poder, deslocamento de classes para tomada desse poder, e isso, nem aqui, nem na Noruega aconteceu.
Nunca.
Bem, voltemos ao assunto.
O fenômeno do “rodízio de faltas” não é exclusivo do Brasil.
América Latina passou pelos mesmos estágios.
Protagonismo militar anos 50, 60 e 70.
Para falar a verdade, desde o século XIX esse protagonismo nunca deixou de existir.
Jurídico, anos 2000, Honduras (Zelaya), Paraguai (Lugo), Bolívia (Evo), Equador(Correa), Brasil (Dilma/Lula).
Encurralaram o peronismo kirchnerista na Argentina, embora o clássico golpe não tenha evoluído.
No entanto, são os argentinos que experimentam protagonismo do financismo ultra radical com maior ênfase, talvez, seguidos ou ombreados por nós….
O vértice de tudo isso:
O secular projeto de submissão das elites nacionais da América Latina ao eixo EUA Europa.
A tecnologia de golpes muda a partir dos EUA, e há pouca margem para ajustes aqui.
8 de janeiro?
Não combinaram com os EUA.
1958, República do Galeão?
Não combinaram com os EUA.
2006, mensalão?
Não combinaram com os EUA.
Claro que há setores do poder estadunidense que agem para derreter as frágeis instituições locais, deixando tudo permanentemente pronto para qualquer decisão de Washington na direção de um novo golpe.
Enquanto nos sabotam, ganham uma grana, e mantém a divisão internacional do “trabalho”, por quê não?
Se a esquerda brasileira não começar a pensar como esquerda, e quem sabe um dia, agir como esquerda, ou seja, criando uma agenda anticapitalista, os EUA nem vão precisar de outro golpe.
Os anarcofeudos ultra financistas digitais vão fragmentar cada uma dessas nações.
Um monte de facções em um espetáculo de antropofagia econômica, social e política.
Pele Escobar já deu a deixa com o texto da ex Síria.
As supostas vantagens de Lula e Haddad não assustem a Faria Lima e seus patrões nos EUA.
O que realmente provocou a ira, e nesse ponto o autor está parcialmente certo, foi um leve e tímido aceno para tributar quem ganha mais de 50 mil.
É esse precedente que aterroriza.
A pálida tentativa de recomposição da soberania tributária estatal, que coloca em xeque a “soberania privada da tributação pelos juros”.
A saída para a “loucura”(que de loucura nada tem) do mercado cambial e etc é, dentre outras medidas, lascar tributos elevados nessas quadrilhas.
Aí sim, quando Lula fizer isso, a IV Frota aparece na entrada da Baía de Guanabara.
Mas fiquem tranquilos, Lula vai pegar sua popularidade resiliente e fazer mais do mesmo.
Adular o tigre com mais carne de pobre.
PS: o índice Gini nos governos do PT mostram pouquíssima redução de desigualdade.
Nem omelete, nem ovos.