Jorge Alexandre Neves
Jorge Alexandre Barbosa Neves professor Titular de Sociologia da UFMG, Ph.D. pela Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA. Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin, também nos EUA, e da Universidad del Norte, na Colômbia.
[email protected]

Lulismo ou barbárie, por Jorge Alexandre Neves e Luciano Mattar

O lulismo foi o remédio mais eficaz que a Nova República conseguiu produzir para pôr em prática os princípios humanísticos da CF-88

Lulismo ou barbárie

por Jorge Alexandre Neves e Luciano Mattar

Em 1973, o sociólogo neomarxista estadunidense, professor da Universidade da Califórnia-Irving, James O’Connor, publicou seu influente livro intitulado A Crise Fiscal do Estado (lançado no Brasil pela Paz e Terra, em 1977). O autor preconizava a crise que o Estado de Bem-Estar Social passaria a viver a partir dali. O conflito distributivo e fiscal das sociedades capitalistas avançadas que se agravou a partir da década de 1970 levou à chamada “revolução neoliberal” inaugurada por Margareth Thatcher no Reino Unido, acompanhada, logo depois, por Ronald Reagan nos EUA.

A “revolução neoliberal” empurrou as políticas econômicas dos países capitalistas centrais para a direita, com uma crescente influência de “forças de mercado” sobre a economia e a política, levando à desregulamentação e ao aumento das desigualdades. Em muitos casos, as forças progressistas capitularam diante dos novos desafios. No caso dos EUA, a capitulação do Partido Democrata ao neoliberalismo levou a uma brutal elevação da desigualdade (http://piketty.pse.ens.fr/files/PikettySaez2014Science.pdf), à total oligarquização do sistema político (https://www.proquest.com/docview/1562777155?sourcetype=Scholarly%20Journals) e até mesmo à elevação da mortalidade (https://www.jstor.org/stable/j.ctvpr7rb2). Logo após a primeira vitória de Trump, Nancy Fraser anunciou que o “neoliberalismo progressista” do Partido Democrata estava morto (https://www.dissentmagazine.org/online_articles/progressive-neoliberalism-reactionary-populism-nancy-fraser/). A vitória de Joe Biden em 2020 fez parecer que ela havia errado seu prognóstico. Todavia, a incapacidade de Biden de se afastar suficientemente da agenda neoliberal e de reaproximar o Partido Democrata do legado progressista “tradicional” do New Deal levou à volta de Trump e à lembrança do alerta de Nancy Fraser. O fracasso político do “neoliberalismo progressista” trouxe reemergência do Beemote fascista nos EUA, porém agora reinventado, pois ao contrário do que ocorreu com o fascismo histórico, o neofascismo trumpista conta com mais apoio entre os mais pobres do que em boa parte da elite (o que não é uma surpresa, visto que são os mais pobres que estão morrendo precocemente nos EUA, como bem demonstram Anne Case e Angus Deaton, no livro citado acima).

No Brasil, ainda vivemos uma situação política muito diferente da observada nos EUA. A tabela abaixo traz dados para embasar o que estamos buscando mostrar. Ao passo que nos EUA o neofascismo trumpista é amplamente apoiado pelos mais pobres, no Brasil o governo progressista de Lula ainda tem nos mais pobres sua base de apoio popular. Os dados da tabela são das duas últimas pesquisas da Quaest e do MDA, os dois institutos de pesquisa que tiveram os melhores resultados nas pesquisas eleitorais de segundo turno para presidente da República em 2022. As pesquisas usam critérios diferentes para avaliar o governo, mas ambos mostram resultados semelhantes, quais sejam: a) no Brasil, quanto mais pobre o indivíduo, mas ele apoia o governo progressista de Lula; b) hoje, apenas na faixa de renda mais baixa o governo progressista de Lula conta com apoio político realmente forte. Ou seja, o lulismo continua vivo, mas corre risco!

Avaliação do Governo Lula nas Últimas Pesquisas Quaest e MDA

Instituto/Faixa de RendaAprovaDesaprovaÓtimo+BomRuim+Péssimo
Quaest    
Até 2 SM62%32%  
+2 a 5 SM51%46%  
+5 SM40%57%  
MDA    
Até 2 SM  42%24%
+2 a 5 SM  31%33%
+5 SM  29%42%

Acreditamos que os dados da tabela mostram que para garantir uma reeleição em 2026, o lulismo precisa se fortalecer ainda mais entre os eleitores com renda de até dois salários mínimos e reconquistar um percentual significativo de apoio dos eleitores na faixa intermediária de renda. Melhorar as condições econômicas das famílias nessas duas faixas de renda é não apenas uma necessidade política e eleitoral, mas, acima de tudo, é algo extremamente justo!

O gráfico abaixo poderia ter como título “Brasil, um país campeão em injustiça social”. Ele mostra a conhecida relação inversa (negativa) entre carga tributária e desigualdade de renda (medida pelo Índice de Gini com escala de 0 a 1) e tem como fonte de dados a OCDE (dados sobre carga tributária) e o Banco Mundial (dados sobre desigualdade de renda). Observemos que o gráfico mostra apenas dois casos muito acima da curva: a Colômbia (com um Gini próximo a 0,6) e o Brasil (com um Gini de quase 0,55). Todavia, ao passo que a Colômbia tem uma carga tributária próxima de 20%, a brasileira é semelhante à média da OCDE, ou seja, próxima de 35%. Isso faz com que a distância entre o valor observado e o valor esperado do Gini na Colômbia (0,17) seja sensivelmente menor do que no Brasil (0,21). Em outras palavras, o Brasil, embora um pouco menos desigual, consegue ser um país ainda mais injusto do que a Colômbia, pois o Estado brasileiro arrecada uma proporção do PIB 75% maior do que ocorre na Colômbia, mas entrega um nível de desigualdade de renda que é menos de 10% menor.  O que faz o Brasil ser um país ainda mais injusto do que a Colômbia? Acreditamos que há possíveis diferentes razões para isso, mas uma delas é que, apesar de a Colômbia ter um dos sistemas políticos mais oligárquicos na América Latina, ela não conta com uma elite estamental tão relevante, com tanto poder político e tão fortemente incrustada no Estado, como ocorre no Brasil. Ou seja, a Colômbia é um país mais “normal” do que o Brasil. Na Colômbia o conflito distributivo é mais próximo do modelo “clássico”, qual seja, é um conflito entre capital e trabalho. No Brasil, em contraste, há um terceiro estrato social com fortes interesses, preferências e um elevado nível de poder político, que é o estamento burocrático, particularmente nas suas frações referentes ao estamento jurídico e militar. Assim, o tipo de conflito distributivo que emerge com o aprofundamento da democracia e se aprofunda com o avanço do Estado de Bem-Estar Social em sociedades capitalistas em geral tende a ser ainda mais duro no caso brasileiro. O diagnóstico que O’Connor fez para os EUA é ainda mais profundo no nosso caso. Aqui, um Estado democrático e social precisa equilibrar mais pratos do que nos EUA, ou mesmo nos principais países latino-americanos, como a Colômbia.

O lulismo foi o remédio mais eficaz que a Nova República conseguiu produzir para pôr em prática os princípios humanísticos da CF-88 e, assim, combater o nível brutal de injustiça social que impera no Brasil. No momento atual, a situação é ainda mais grave porque só há uma outra força política capaz de eleger o presidente da República, que é o bolsonarismo. Se o lulismo é o que a Nova República produziu de mais próximo da social-democracia, o bolsonarismo é um movimento político mais próximo do fascismo histórico do que, por exemplo, o trumpismo. Ao contrário deste, o bolsonarismo tem nos estratos médios e na plutocracia sua base de legitimação política. Como mostramos acima, os mais pobres, ainda, estão apoiando o lulismo no Brasil.

Não por acaso, grifamos a palavra “ainda” em diferentes momentos, pois o lulismo corre sérios riscos! Este terceiro governo progressista de Lula sofre a mais violenta chantagem econômica que um governo já sofreu na Nova República. As “forças do mercado” tentam desesperadamente fazer o governo romper com seus princípios progressistas e distributivistas. Ou seja, querem destruir o lulismo! É óbvio que o cenário à frente do governo não é simples. De um lado, se aderir ao fiscalismo exigido pelo mercado, irá matar o lulismo e tornar o Beemote bolsonarista a única força política viável, no curto prazo. De outro, se perder completamente as rédeas do controle fiscal pode fazer o Brasil entrar numa espiral de degradação econômica do Estado. O segundo cenário, contudo, apesar de muito ruim, é menos desastroso do que o primeiro, pois a morte do lulismo acabaria com qualquer esperança de continuidade de um processo civilizatório no Brasil por décadas.

É diante desta situação estratégica que, pensamos, o governo Lula anunciou seu conjunto de propostas para equalizar a situação fiscal nos próximos anos. Foi uma proposta equilibrada, mas, ao mesmo tempo, muito corajosa! Mexe em alguns processos que levarão a uma desaceleração na promoção da justiça social (o melhor exemplo é a nova regra de correção anual do salário mínimo) e em outros que cortam benefícios de forma gradual (a mudança no teto do abono), mas busca, principalmente, avançar sobre os privilégios dos dois estratos de elite – a plutocracia e o estamento – e propõe tornar nosso sistema tributário muito mais progressivo, com a isenção de IRPF para quem ganha até R$ 5.000,00 mensais (atingindo justamente um conjunto de famílias do estrato médio intermediário, aquele que é preciso reconquistar). Se o “mercado” acredita que as medidas anunciadas não serão suficientes, que pressione o Congresso Nacional, onde há grupos de pressão a seu serviço, para eliminar as desonerações fiscais, elevar a tributação da renda e da riqueza da plutocracia e, ainda, eliminar os privilégios do estamento. A outra alternativa é tentar eleger, outra vez, um dos seus lacaios para a presidência da República, em 2026. Opções não faltam, de Tarcísio de Freitas a Ronaldo Caiado, passando por Romeu Zema, estão todos sonhando com a chance de exercer o papel daquele que irá bombardear nossa estrada civilizatória e demolir os princípios de justiça social da CF-88.

Não há dúvida de que o presidente Lula e o ministro Haddad fizeram uma escolha que tem riscos. Pode dar errado e as forças progressistas podem ter que voltar para casa em 2026. Todavia, pensando até como um típico ator da Teoria dos Jogos, acreditamos que, neste momento, esta é a estratégia maximin, ou seja, no mínimo é preciso preservar o lulismo. Com ele vivo, as forças progressistas terão no que se segurar para tentar voltar ao poder, caso percam a eleição em 2026. Matando o lulismo agora, escolha que não fez, perderia em 2026 e ficaria sem sustentação para o futuro.

Jorge Alexandre Neves – Professor Titular de Sociologia da UFMG.

Luciano Mattar – Pesquisador pós-doutorado do PPGS/FAFICH/UFMG.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “

2 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Falso como uma nota de três reais.

    O rapaz do texto poderia ir no IPEA, pegar a série histórica do índice Gini, e ver que a curva de desigualdade quase não se alterou, entre 2003 e 2024, descontando inclusive os anos sem PT.

    Lulismo ou barbárie é de uma estupidez tal, só comparada com a tese do fim da história de Fukuyama.

    Ora, se há um consenso razoável que os modelos de conciliação propostos pelo lulismo não estabilizaram o cenário político, nem garantiram avanços com impacto maior que era esperado, ou pior, maior que era imprescindível, como dizer que esse fenômeno político tem um aspecto determinante, dentro de uma dicotomia que também é falsa?

    A paráfrase com Marx (socialismo ou barbárie) não é só esteticamente imoral e ofensiva ao pensamento marxiano, é um erro científico GRAVE!

    Como é que a suposta antítese à barbárie, o lulismo, possa ser, ao mesmo tempo, sua oposição e parte dela, quando insiste em conciliar suas contradições irreconciliáveis.

    Se o lulismo fosse a tensão, a antítese da barbárie, ok, mas não é, ao contrário, é o analgésico da febre provocada pela infecção bárbara!!!!!

    É a distorção mais vulgar do processo dialético de compreensão histórica que já tive o desprazer de ler!

    Nesse caso, é a burrice E a barbárie.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador