Jorge Alexandre Neves
Jorge Alexandre Barbosa Neves professor Titular de Sociologia da UFMG, Ph.D. pela Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA. Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin, também nos EUA, e da Universidad del Norte, na Colômbia.

Coerência, Responsabilidade e Pragmatismo, por Jorge Alexandre Neves

Penso que o mais importante hoje para a América Latina e todas as forças progressistas no hemisfério é o sucesso do Governo Lula 3.

Ricardo Stuckert

Coerência, Responsabilidade e Pragmatismo

por Jorge Alexandre Neves

A crise venezuelana é o maior desafio para o Governo Lula 3, até o momento. Penso que este desafio requer coerência, responsabilidade e pragmatismo. A coerência deve vir do reconhecimento de que as democracias costumam ser imperfeitas (1), assim como que há uma superexploração – principalmente por parte da mídia hegemônica – dos problemas existentes no regime venezuelano (2). A coerência também exige que problemas sérios em eleições já houve em países e regimes amplamente reconhecidos como democráticos. Em 2000, a eleição presidencial estadunidense foi vencida por George W. Bush de forma mais do que suspeita, e o resultado só foi reconhecido internacionalmente graças ao compromisso singular de Al Gore com a estabilidade institucional. No Brasil, a presidenta Dilma Rousseff foi vítima de um golpe de Estado (com o apoio decisivo do aparelho estatal e paraestatal estadunidense – que, hoje, felizmente, parece estar assumindo uma posição diferente, pelo menos em relação ao Brasil) – hoje amplamente comprovado – e, em 2018, o presidente Lula foi impedido de concorrer em função de um processo judicial absolutamente fraudulento, o que também restou comprovado. Perceba-se que, naquele momento, Lula, o PT e todos nós que o apoiamos sabíamos que o processo eleitoral de 2018 era fraudulento. Apesar disso, o candidato Lula e o seu partido insistiram na via institucional (que sabiam totalmente viciada, naquele momento), apresentando todos os recursos legais cabíveis. Lula e o PT apostaram na via institucional até o fim! Haddad participou da eleição e, apesar de ele, Lula e o PT saberem que aquela eleição era uma fraude (o que, insisto, restou comprovado, depois), aceitaram o resultado, mantendo-se no jogo político-partidário.

Portanto, quando o Presidente Lula diz que é preciso que a oposição venezuelana esgote os procedimentos legais cabíveis, ele está apenas sendo coerente com sua própria trajetória política. É muito provável que o recurso não resulte em nada (como também o foi aqui, e ninguém esperava que houvesse a reviravolta que houve, a partir da divulgação da vaza jato, algo totalmente extraordinário), mas é necessário que os procedimentos normativos cabíveis sejam esgotados (a recusa da oposição venezuelana de fazê-lo pode ser apenas mais um indicador da sua dificuldade atávica com a institucionalidade dos processos democráticos, vide sua longa tradição golpista).

Em segundo lugar, é preciso agir com responsabilidade. Neste sentido, considero que vale a pena ouvir a análise de João Carlos Jarochinski, professor de Relações Internacionais da UFRR, no episódio de hoje do podcast “O Assunto”. Achei bastante apropriada a decisão de escolher um professor de uma universidade que fica localizada no ente federativo mais afetado pelos conflitos na Venezuela. O Presidente Lula, seu assessor Celso Amorim e o Itamaraty estão agindo de forma prudente e responsável. É fundamental que o Presidente Lula e o Brasil se mantenham como mediadores qualificados do conflito, neste momento. O papel de estadista que está sendo cumprido pelo Presidente Lula nesta crise foi explicitamente reconhecido pelo Presidente Biden (3). Um isolamento absoluto do atual governo venezuelano pode levar a Venezuela a uma guerra civil sangrenta, ou mesmo à invasão da Guiana, repetindo o ato desesperado dos generais argentinos em 1982 (ambas as possibilidades teriam consequências dramáticas para o Brasil e a Colômbia, por exemplo). O governo Maduro encontra-se, hoje, claramente aninhado às Forças Armadas (algo que foi ressaltado pela Presidenta Dilma Rousseff, em entrevista recente), formando um regime que pode ser chamado de “pretoriano” (diagnóstico que, salvo melhor juízo, ouvi pela primeira vez sendo feito pelo sociólogo José Maurício Domingues, do IESP/UERJ). Vale ressaltar que a cúpula das Forças Armadas venezuelanas já declararam sua lealdade a Maduro, em uma cerimônia cuja imagem que se buscou demonstrar foi, na minha opinião, bastante constrangedora.

Finalmente, penso que é preciso pragmatismo. Primeiramente, é necessário reconhecer que – mesmo não esquecendo da profunda injustiça produzida pelas sanções econômicas – os governos chavistas estão completando 25 anos com uma situação econômica extremamente deteriorada. Nesse quarto de século, o chavismo não conseguiu construir um sistema de proteção social sólido como o cubano, nem desenvolver um modelo de economia popular como o MAS fez na Bolívia. Assim sendo, o fato é que, a situação econômica venezuelana submete uma grande parcela dos cidadãos do país a muito sofrimento e privação.

Vejo o caso da Venezuela como mais uma evidência do que tenho chamado de “Lei de Przeworski”, qual seja, a de que a esquerda só tem dois caminhos factíveis, o leninismo ou a socialdemocracia. Chama a atenção que, na América Latina, a esquerda populista radical consiga manter o poder numa crise de acumulação econômica tão longa quanto se tem vivido na Venezuela. Todavia, me parece que o processo está chegando a um esgotamento. Portanto, sendo bastante pragmático, penso que o mais importante hoje para a América Latina e todas as forças progressistas no hemisfério é o sucesso do Governo Lula 3. Os resultados socioeconômicos até aqui são excelentes, o que mostra a viabilidade de governos verdadeiramente social-democratas na América Latina, um modelo que pode ser seguido em todo o subcontinente. Desta forma, se de um lado é importante que o Governo Lula se mantenha numa posição que permita sua qualificação como um negociador crível, por outro, é fundamental que ele saiba o limite que deve haver nesse papel. É preciso que se mantenha a coerência com a posição assumida de que a declarada vitória de Maduro só será reconhecida com o estabelecimento da necessária transparência, que se dará com a publicação das atas das seções eleitorais. Penso que a melhor forma de lidar com o que virá pela frente é dar continuidade à concertação entre Brasil, Colômbia e México, buscando junto à ONU um posicionamento acordado. Caso o Presidente Lula se mantiver nesse caminho que tem trafegado, estará agindo como um Estadista, e continuará a ser visto como um ator relevante na superação da crise venezuelana, seja ela qual for.

Por último, indo do pragmatismo para o realismo, estou convencido de que a publicização de dados legítimos dos resultados eleitorais da Venezuela não irá ocorrer, simplesmente porque Maduro perdeu a eleição (4). Assim, citando o Presidente Lula, “Maduro tem que aprender, quando você ganha, você fica; quando você perde, você vai embora”. Portanto, o Governo Lula precisa se preparar para o deverá fazer, muito em breve, quando não houver mais condições para esperar a publicização dos documentos legítimos das votações por seção eleitoral. Manter um apoio incondicional a Maduro depois disso seria um enorme erro político! O Presidente Lula lidera um governo de frente ampla que poderia caminhar para um esfacelamento, dependendo da posição que for assumida, ao final. Adicionalmente, é primaz perceber que um apoio incondicional a Maduro fragilizaria sobremaneira a posição política do Governo Lula 3 de defesa do jogo democrático (como ele é), bem como seus louváveis esforços de reconstrução e preservação das instituições do Estado Democrático de Direito (liberal, sim, mas também com um caráter social relevante, definido a partir da CF-88). O papel do Presidente Lula como Estadista não é só o de buscar a estabilidade regional, mantendo-se como interlocutor crível da crise venezuelana, mas é, ainda mais, o de trabalhar duro para o sucesso do seu terceiro governo, algo de grande relevância para o futuro da América Latina!

NOTAS:

(1). Eu explorei este ponto em outro artigo aqui do GGN (https://jornalggn.com.br/artigos/lula-esta-certo-e-a-desigualdade-progressistas/). Nele, eu ressaltava que: “Dois renomados cientistas políticos de duas das mais prestigiosas universidades estadunidenses (Princeton e Northwestern) testaram, de forma bastante rigorosa, esta hipótese, em um artigo publicado em 2014 (https://www.cambridge.org/core/journals/perspectives-on-politics/article/testing-theories-of-american-politics-elites-interest-groups-and-average-citizens/62327F513959D0A304D4893B382B992B), chegando à seguinte conclusão: Wright Mills estava certo!”. Ou seja, há evidências científicas robustas hoje de que a maior democracia do ocidente não passa de um regime oligárquico. Além dos problemas ressaltados pelo trabalho dos dois cientistas políticos dos EUA, já está mais do que claro que o sistema eleitoral estadunidense tem problemas seríssimos.

    (2). Uma coisa que sempre me incomodou – a qual também analisei o no artigo do GGN citado acima – é a assimetria entre as atrocidades cometidas pelo regime oligárquico que imperava até 2022 na Colômbia, onde a violência política era brutal (ver este exemplo, 226 assassinatos de líderes populares: https://www.eltiempo.com/amp/colombia/otras-ciudades/lideres-sociales-asesinados-en-colombia-entre-enero-y-noviembre-del-2018-296924) e o regime venezuelano.

    (3). Ver: https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2024/07/30/readout-of-president-joe-bidens-call-with-president-luiz-inacio-lula-da-silva-of-brazil-2/.

    (4). Minha convicção só aumentou ao analisar atentamente o trabalho realizado por acadêmicos que respeito e admiro, que pode ser encontrado aqui: https://storage.googleapis.com/project-pvt-2.appspot.com/public/Alta_Vista_PPA.pdf.

    Jorge Alexandre Barbosa Neves – Ph.D, University of Wisconsin – Madison, 1997.  Pesquisador PQ do CNPq. Pesquisador Visitante University of Texas – Austin. Professor Titular do Departamento de Sociologia – UFMG – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas

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