Jorge Alexandre Neves
Jorge Alexandre Barbosa Neves professor Titular de Sociologia da UFMG, Ph.D. pela Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA. Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin, também nos EUA, e da Universidad del Norte, na Colômbia.
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Lula está certo! É a desigualdade, progressistas!, por Jorge Alexandre Neves

O presidente Lula está sendo crucificado por ter dito a uma rádio gaúcha que a democracia é relativa.

Reprodução TV Brasil

Lula está certo! É a desigualdade, progressistas!

por Jorge Alexandre Neves

         Aproveitando o histórico discurso do presidente Lula em Paris e a histeria midiática com sua nova fala a respeito da Venezuela, redigi esse texto para tentar propor uma reflexão sobre a centralidade da questão da desigualdade para o campo progressista. Vou tentar ressaltar dois aspectos diferentes da centralidade do conceito de desigualdade. O primeiro aspecto eu vou discutir neste artigo. O segundo aspecto, deixarei para meu próximo texto.

Começo esta primeira parte lembrando que a mais citada obra sobre uma abordagem liberal da Teoria da Justiça (o famoso livro de John Rawls) vem nos lembrar que uma sociedade justa precisa atender a dois fundamentos: o princípio da liberdade e o princípio da equidade. Portanto, a equidade é tão central para a justiça quanto a liberdade, mesmo para uma abordagem liberal.

         Uma sociedade plenamente democrática e justa precisa atender os dois princípios. Todavia, na hora de classificar uma sociedade como democrática, a mídia e muitos analistas – inclusive do meio acadêmico – centram todas as suas análises na questão das liberdades democráticas (imprensa livre, seja lá o que isso for, liberdade para fazer oposição etc.), mas esquecem de se perguntar se uma sociedade pode ser plenamente democrática sem atender o segundo princípio da Teoria da Justiça de Rawls.

         O presidente Lula está sendo crucificado por ter dito a uma rádio gaúcha que a democracia é relativa. Será que essa afirmação é, realmente, um absurdo?

         Primeiramente, é preciso reconhecer que existem centros internacionais de referência que criaram indicadores contínuos de democracia. Logo, a democracia não seria uma variável binária, sim ou não!

         Em segundo lugar, quero ressaltar que muitos países que a mídia brasileira jamais aponta como não-democráticos têm indicadores que não parecem muito compatíveis com uma sociedade realmente democrática e justa. Vou propor aqui uma comparação entre dois países vizinhos que recebem tratamento totalmente inversos da mídia e dos analistas que se revoltaram com as falas do presidente Lula: a Venezuela e a Colômbia.

         Comecemos pela questão da desigualdade e do desenvolvimento humano. A tabela abaixo traz dados, para o ano de 2021, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) sobre o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) corrigido pela desigualdade e um índice chamado de Coeficiente de Desigualdade Humana (infelizmente, o Banco Mundial não calcula o Coeficiente de Gini para a Venezuela há algumas décadas). Observe-se que, apesar de toda a crise vivida nos últimos anos: a) quando controlado pelo nível de desigualdade, o IDH da Venezuela ainda é um pouco superior ao da Colômbia; b) o nível de desigualdade na Colômbia é 45% maior do que na Venezuela. Como disse o presidente Lula em Paris, o combate à desigualdade é central hoje no mundo. E a desigualdade que mais preocupa é a desigualdade dentro dos países, pois esta continua crescendo globalmente (ver: https://www.foreignaffairs.com/world/great-convergence-equality-branko-milanovic). Mas, por que essa diferença nos níveis de desigualdade não chama a atenção da mídia e dos analistas tão críticos à fala do presidente Lula? Será que os níveis mais baixos de desigualdade da Venezuela não justificam uma visão mais generosa do presidente em relação a este país, sendo ele alguém que acaba de deixar claro em um discurso histórico que a questão da desigualdade é aquela que mais lhe interessa?

PaísIDH (corrigido pela desigualdade)Coeficiente de Desigualdade Humana
Colômbia0,58920,6
Venezuela0,59214,2

Fonte: PNUD (os dados podem ser baixados em: https://hdr.undp.org/inequality-adjusted-human-development-index#/indicies/IHDI). 

         A comparação que proponho entre a Colômbia e a Venezuela não para nos índices acima. Há a questão dos refugiados? Sim, há! Mas quem no Brasil sabe que a Colômbia tem a maior população de refugiados do mundo? É verdade que o fato de ser uma população de refugiados internos faz diferença. Todavia, não é chocante que a grande mídia de modo geral e os analistas críticos das falas do presidente Lula não tenham o menor interesse nessa população (lembra o contraste entre a preocupação com o sofrimento dos ucranianos e o total desinteresse pelo flagelo muito maior do povo do Iêmen). Só consegui achar uma reportagem nesta década sobre o drama dos refugiados na Colômbia (https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2022/02/15/interna_internacional,1345156/deslocamento-por-violencia-na-colombia-aumentou-181-em-2021-diz-onu.shtml), e ela não está em um dos três grandes jornais do país. Nesta reportagem encontram-se os números mais chocantes desse drama humanitário: um total de refugiados que chegou a oito milhões, inacreditáveis 16% da população total do país! Por que esses números não incomodam os críticos da Venezuela?

         Há também a questão da violência política? Há, sim! Ouvi um antigo crítico ácido de Lula e do PT, que hoje assumiu outra postura, dizer em seu programa diário de rádio, algo mais ou menos assim: “presidente Lula, houve mortes por razões políticas na Venezuela!”. Isso é verdade! Mas por que ninguém se preocupa com as centenas de assassinatos políticos de lideranças populares ocorridos na Colômbia nos últimos anos. Entre 2016 e 2020, foram mais de 900 assassinatos, quase duas dezenas por ano (https://www.dw.com/es/m%C3%A1s-de-900-l%C3%ADderes-sociales-asesinados-en-colombia-desde-2016/a-57257906). O presidente do Chile – talvez a maior liderança da “esquerda todynho” na América Latina – puxou a orelha de Lula, quando aqui esteve, recentemente, citando o problema dos refugiados da Venezuela (mas é mais um a não lembrar  do drama dos refugiados internos da Colômbia) e o fato de que sua conterrânea, Michelle Bachelet, Comissária de Direitos Humanos da ONU, fez um relatório duro sobre violações de Direitos Humanos da ONU. Muito bem, mas por que ele também não lembrou de citar que ela fez um relatório igualmente duro sobre a Colômbia (https://www.ohchr.org/en/news/2022/03/human-rights-council-hears-high-commissioner-present-her-global-oral-update-and-her), junto com outros países como Guatemala e Honduras?

         Eu só consigo ver uma explicação para tanta histeria em relação à Venezuela e tanta tolerância em relação à Colômbia: a mais pura hipocrisia! É verdade que se pode dizer que agora, finalmente, a Colômbia mostrou ser uma verdadeira democracia, pois hoje está no poder, pela primeira vez na história, um presidente de esquerda. Acho que precisaremos esperar um pouco para fazer uma melhor avaliação. De qualquer forma, esse é um fenômeno muito recente, a Colômbia viveu em um regime oligárquico, muito distante de um regime plenamente democrático, por décadas, sem jamais ter sofrido críticas contundentes dos que hoje apedrejam o presidente Lula por sua fala.

         Eu quero aproveitar que falei de regime oligárquico, acima, para encerrar este texto retomando a questão da relatividade dos regimes democráticos proposta pelo presidente Lula. Quero lembrar que há algumas décadas, o famoso sociólogo estadunidense Charles Wright Mills formulou a hipótese de que os EUA não eram uma democracia plena, mas um regime oligárquico. Dois renomados cientistas políticos de duas das mais prestigiosas universidades estadunidenses (Princeton e Northwestern) testaram, de forma bastante rigorosa, esta hipótese, em um artigo publicado em 2014 (https://www.cambridge.org/core/journals/perspectives-on-politics/article/testing-theories-of-american-politics-elites-interest-groups-and-average-citizens/62327F513959D0A304D4893B382B992B), chegando à seguinte conclusão: Wright Mills estava certo! O sistema político dos EUA é totalmente corrompido pelo dinheiro. Essa realidade – na ausência do regime soviético para servir de ameaça e contraponto – fez a desigualdade explodir nos EUA (levando-a a se assemelhar aos padrões de alguns países da América Latina, a região mais desigual do mundo), corroendo a democracia por dentro. Não é à toa que o neofascismo tornou-se uma ameaça tão real. Ponto para o presidente Lula, a desigualdade corrói a democracia!

Jorge Alexandre Barbosa Neves – Ph.D, University of Wisconsin – Madison, 1997.  Pesquisador PQ do CNPq. Pesquisador Visitante University of Texas – Austin. Professor Titular do Departamento de Sociologia – UFMG – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Jorge Alexandre Neves

Jorge Alexandre Barbosa Neves professor Titular de Sociologia da UFMG, Ph.D. pela Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA. Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin, também nos EUA, e da Universidad del Norte, na Colômbia.

1 Comentário

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  1. A democracia é relativa desde a sua fundação na Grecia antiga. Para um terço da população existia, para os 2 terços de escravos não! Nos tempos atuais, podemos dizer que não existe democracia plena em nenhum lugar do mundo, mas que os seus presupostos são atendidos em variados graus de acerto. No entanto, podemos afirmar que a democracia plena só pode ser atingida, se algum dia, os seres humanos possam viver numa sociedade em que todos possam produzir conforme a sua capacidade e consumir de acordo com as suas necessidades. Como se vê, estamos muito longe de atingir esse objetivo. Enquanto existir na humanidade uma parcela ínfima que possui a maior parte das riquesas e a maioria vivendo na pobreza e até abaixo da linha da pobreza, A democracia relativa será o campo de batalha, da luta pela busca da igualdade, mas não podemos esquecer que podem ocorrer retrocessos ainda que passageiros.

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