Xadrez da oportunidade do STF se reconciliar com a democracia, por Luis Nassif

Desastre sanitário, as imagens chocantes de doentes morrendo sem atendimento, a indiferença gritante de Bolsonaro, a queda radical das expectativas dos agentes econômicos, tudo isso cria um ambiente de caos, no qual todas as saídas, mesmo as mais inusitadas, são possíveis.

A entrada de Lula no jogo eleitoral e a atuação genocida de Jair Bolsonaro na pandemia trazem componentes novos para o jogo eleitoral. Com o agravamento da situação sanitária, econômica e social, entra-se em um quadro de caos, no qual todas os desfechos – mesmo os mais improváveis – precisam ser ponderados.

Peça 1 – raízes do bolsonarismo

Hoje em dia, há um diagnóstico consolidado sobre os movimentos tectônicos que levaram ao bolsonarismo.

1. Lula levando o PT a ocupar o espaço da centro-esquerda, com amplo pacto nacional.

2. Desalojado, e com a morte de lideranças históricas, o PSDB fica nas mãos de Fernando Henrique Cardoso, José Serra e Aécio Neves, perdendo as bandeiras da social-democracia para o PSDB, e sem capacidade de articular um projeto alternativo.

3. Paralelamente, com a crise no seu modelo de negócio – e inspirada por Roberto Civita, da Editoria Abril – a mídia brasileira se transforma em uma imensa Fox News, levando a guerra híbrida a todas as frentes, com duas práticas fatais: a transformação da disputa política em guerra de extermínio; e a prática reiterada de fake news e do discurso de ódio, visando desestabilizar o sistema de valores nascido da Constituição de 1988. Como dizia Civita, a mídia é o verdadeiro partido de oposição.

4. Paralelamente, fortalecidas nos governos petistas, as corporações públicas e jurídicas passam a ambicionar influência política. Esse processo começa com a Procuradoria Geral da República e o Supremo Tribunal Federal no “mensalão”, e explode na Lava Jato, com juízes de 1a instância, procuradores, membros de órgãos de controle passando a exercer militância política e abuso de poder, especialmente em cima da satanização da política.

5. Nesse quadro, o discurso de ódio da mídia espalha-se por todos os espaços da República, promovendo uma ampla desarticulação política, especialmente devido à dificuldades dos partidos em se reciclarem. O único fator de coordenação eram as Organizações Globo, com seu discurso negacionista do direito, de criminalização da política, seus pactos com o Ministério Público e o Judiciário, e suas convocações para passeatas.

Resulta daí o sentimento de antipolítica que leva ao bolsonarismo, e a incompetência ampla das diversas forças políticas, de uma reação minimamente articulada contra suas loucuras.

Peça 2 – a entrada de Lula no jogo

Agora, surgem dois fatos novos.

O primeiro, a entrada de Lula no jogo político, funcionando como se fosse uma freada de arrumação. 

Com um discurso de estadista, pontuando os valores centrais da democracia – incluindo liberdade de imprensa -, destacando os conflitos inerentes ao sistema democrático, Lula acena com o grande acordo nacional.

De repente, toda a discussão política se rearruma. A mídia abranda a demonização de Lula, o STF – através de Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski – inicia a reação contra os abusos da Justiça e os dois principais estimuladores do macarthismo caboclo mudam o tom: Luiz Edson Fachin anulando as sentenças contra Lula; Luis Roberto Barroso usando as redes sociais para discorrer sobre amenidades. E o próprio grande capital anuncia apoio a Lula.

Passado o impacto inicial desse rearranjo, há um novo movimento ganhando força, em cima da convicção de que, com suas patifarias criminosas, Bolsonaro pode ser alijado do 2o turno. O Pierre Charles Villeneuve de Bolsonaro (o almirante francês responsável pela derrota para a esquadra inglesa) foram os Ministros Eduardo Pazzuelo, no front da saúde, e Paulo Guedes, no da economia.

E, aí, entra em cena Ciro Gomes, trazendo de volta o discurso da demonização dos adversários. Julgando que Bolsonaro estará fora do segundo turno, a seu modo, com mais habilidade que comentaristas da Globonews, tenta levantar novamente os falsos paralelismos contra Lula, fundado em dois temas concretos: a corrupção da Petrobras (e de Antonio Palocci) e o fracasso econômico de Dilma.

Cria um paralelo curioso.

O suposto radical, autoritário Lula, retomando seu estilo político favorito: a conciliação, em um momento que a bandeira da pacificação se impõe em um país cansado de guerra.

Do outro, o provavelmente mais autocrático e paradoxal dos políticos brasileiros, Ciro Gomes, incapaz de desenvolver qualquer estratégia que não seja mirar na cabecinha do adversário.

Ciro é autocrático por temperamento, e por ser incapaz de entender as contradições inerentes do jogo democrático e a grande necessidade da pacificação nacional. No exercício do poder, sempre se portou como o déspota esclarecido, incapaz de assimilar os embates políticos normais em uma democracia.

Paradoxal porque seus bordões favoritos são os temas que se tornaram tabu nos governos do PT – combate à cartelização dos bancos, ao rentismo, à cartelização da mídia, ao não-enquadramento das Forças Armadas, à incapacidade de enfrentar a politização do Ministério Público e do Judiciário.

Ele brande os temas e, com seu discurso de demonização de Lula, tenta conquistar o tal centro democrático, seja lá isso o que for, valendo-se da fraqueza dos candidaturas até agora empinadas – o inodoro Luciano Huck e o direitista Sérgio Moro. Ou seja, apresenta-se como campeão, contra as disfunções de vários setores intocados pelo petismo e, ao mesmo tempo, tenta obter  apoio desses setores, exercitando um discurso de guerra contra o PT e Lula.

Mas, ao mesmo tempo, expõe os paradoxos de Lula.

A conciliação é fundamental. Mas como varrer para baixo do tapete o não-enfrentamento dos desequilíbrios acumulados no seu período de governo? E, como enfrentar agora, sem comprometer o objetivo maior, que é o combate ao bolsonarismo.

Os desdobramentos de ambos os casos não serão explicitados publicamente por nenhum dos dois. Serão construções políticas de médio prazo. No momento, o que importa é a frente para acabar com o bolsonarismo na política.

Peça 3 – o papel do Supremo Tribunal Federal

Esta semana, o Supremo Tribunal Federal (STF) terá a oportunidade de uma manifestação histórica, capaz de reverter as embrulhadas em que se meteu desde o “mensalão”.

De um lado, jogando a pá de cal na Lava Jato, principal instrumento da polarização que dividiu o país e criminalizou a política. De outro, viabilizando a volta política de Lula.

Depois, aproveitando a iniciativa do  Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), que ajuizou uma arguição de descumprimento de preceito fundamental contra omissões do governo na compra de vacinas para o Covid 19.

Foi pedida a concessão de uma medida cautelar para obrigar a União a adquirir vacinas para imunização em massa da população.

Como lembrou o colaborador do GGN Eduardo Appio, professor de Direito da Universidade Federal do Paraná, anos atrás a Suprema Corte da Colômbia interveio na política de saúde da União, gerida de forma irresponsável. Montou várias audiências públicas com médicos especialistas para determinar as melhores práticas a serem adotadas.

Procedimento similar poderia ser adotado pelo STF, ainda mais neste momento em que a pandemia se agrava e Bolsonaro continua com seu jogo macabro de boicotar o combate à doença.

Poderia convocar audiências públicas de urgência, conseguir o aval do Congresso, para a nomeação de uma comissão de especialistas de alto nível que orientasse a política de saúde.  Já existem organizações que poderiam fornecer a base central de apoio, especialmente o fórum dos governadores e dos secretários estaduais de saúde. 

Seria o sinal mais decisivo para deflagrar o grande pacto nacional pela vida, coordenado por um poder teoricamente suprapartidário e sem vinculações explícitas com grupos políticos ou de interesse.

Não se deve minimizar a vocação do atual Supremo de se apequenar em muitos momentos. Se houver grandeza, é a hora.

Peça 4 – a reorganização das instituições

Nos próximos dias, haverá a necessidade de uma avaliação de perto sobre a rearrumação das instituições no novo momento político, no qual a pandemia e o desgoverno trouxeram para o centro de debates a necessidade do grande pacto.

Midia nacional – tenta se recolocar como defensora da democracia. Mas, além do enorme desgaste acumulado, do período em que se pretendia partido político, enfrenta grave crise financeira, o assédio de compra por grupos estrangeiros e nacionais, o combate, pela esquerda, do ecossistema de informação de resistência e, pela direita, as bolhas radicais das redes sociais. Se não embarcar na radicalização proposta por Ciro, poderá ser um canal para ampliação do debate. A última pesquisa Datafolha retoma velhos instrumentos da mídia, de pressão sobre o STF.

Mercado – está pulando definitivamente do barco de Bolsonaro. Especialmente depois que os grandes players globais passaram a sinalizar que Lula é mais palatável que Bolsonaro. A política econômica desastrosa de Paulo Guedes ajuda nesse desmonte.

Governadores – estão criando um novo eixo de governabilidade, em uma demonstração inesperada da pujança do federalismo brasileiro.

O bolsonarismo reage através das seguintes frentes:

A Lei de Segurança Nacional – sem a malícia dos Ministros da Justiça de Michel Temer – Torquato Jardim e Raul Jungman -, André Mendonça, o Ministro de Bolsonaro, é um bobinho brincando com o fogo. Sua perseguição aos críticos de Bolsonaro, ameaçando-os com a Lei de Segurança Nacional, faz dele figura certa para o futuro Tribunal de Nuremberg, os processos e condenações que desabarão inevitavelmente sobre as autoridades que se lambuzaram com a lambança bolsonariana.

Clubes de caça e tiro – conforma já alertamos inúmeras vezes, são tentativas do bolsonarismo de criar milícias armadas. A ação imediata das polícias civis contra esses malucos será fundamental para impedir aventuras mais ousadas.

Polícias Militares e FFAAs – desde o início do seu governo, Bolsonaro veio cultivando as policiais militares, Forças Armadas e Polícia Federal. Mas está em mau momento, inclusive com esses apoiadores. Dois das supostas virtudes superiores dos militares foram desmoralizadas simultaneamente. No plano da gestão, o inacreditável general Pazuello na Saúde; no plano da idoneidade, a quadrilha de traficantes operando dentro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República.

Todos esses agentes – assim como o restante do país – serão expostos, nas próximas semanas, ao agravamento maior ainda da crise. Desastre sanitário, as imagens chocantes de doentes morrendo sem atendimento, a indiferença gritante de Bolsonaro, a queda radical das expectativas dos agentes econômicos, tudo isso cria um ambiente de caos, no qual todas as saídas, mesmo as mais inusitadas, são possíveis.

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