Acertos e erros na requalificação de centros urbanos

Do Iphan

O centro em disputa

Reformas nas áreas urbanas precisam sempre lidar com o problema delicado da remoção de populações. O desafio é respeitar o patrimônio histórico e os moradores da região 

Patricia Mariuzzo

Uma questão freqüente nos programas de requalificação/reocupação dos centros urbanos é como tratar a população que habita essas áreas. Será possível tratar o problema de forma justa? Será possível conciliar o projeto urbanístico, que implica em revalorização desses espaços, com um projeto social de inclusão e permanência da população? Ou o sentido inerente a esses programas, presentes em diversas cidades brasileiras como Salvador, Recife, São Paulo, é afastar essa população? O recente caso da construção de rampas com piso áspero – para dificultar que moradores de rua se abriguem no espaço – na passagem subterrânea entre duas avenidas da cidade de São Paulo é apenas o fragmento de uma discussão mais ampla. É um sinal da dificuldade que as políticas públicas têm para tratar a questão da permanência das populações frente aos programas de revitalização de centros urbanos.

É raro conseguir encontrar projetos que tenham tido sucesso na resolução do problema. Críticos apontam para um processo de higienização social e gentrificação (elitização), que traz cultura e melhoramento do espaço urbano, mas, ao mesmo tempo, promove a exclusão social. Um equívoco comum é acreditar que essas áreas não possuem vitalidade. Segundo o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Carlos Vainer, é exatamente o oposto, essas áreas são muito vivas, mas foram ocupadas por grupos sociais de baixa renda. “O que está sendo feito é renegar um tipo de vitalidade e recuperar áreas para determinados grupos sociais”, afirma ele. Na maioria das vezes essas regiões perderam seu dinamismo porque o eixo econômico se deslocou, dispensando a região de seu papel de centralizar várias funções econômicas e sociais. A população rica desloca-se então desses locais que, consequentemente, perdem seu valor, tornando-se acessíveis às classes menos favorecidas. Com isso, tais locais deixam de receber a atenção do Estado e entram em contínuo processo de degradação. “Historicamente, os investimentos do Estado só se justificam se forem para a classe rica. A degradação ocorre devido à ausência do Estado”, explica Vainer. Entretanto, ainda segundo ele, como os custos da expansão da malha urbana (implantar sistema de transporte, levar energia elétrica, água e esgoto, escolas etc.) estão cada vez mais altos, a racionalidade econômica determina então reconfigurar o uso de regiões já estruturadas. Então as atenções se voltam novamente para os centros antigos.

Crítico do projeto de construção das rampas “antimorador” de São Paulo, o Padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua, classifica o projeto de revitalização do Centro Velho de São Paulo como higienista e excludente. Para ele, os benefícios do programa de recuperação, que está em curso desde o começo deste ano, são negados às pessoas que moram nas ruas. “Seria melhor uma rampa pedagógica em lugar da rampa de concreto, precisamos de uma política pública que permita que estas pessoas saiam das ruas definitivamente. O projeto não é ético, nem estético, já que não beneficia a todos, não parte de um princípio de inclusão. Por que determinada faixa da população só pode viver na periferia? O pobre também tem o direito de morar no Centro”, diz o Padre. Já a Associação Viva o Centro, que completou 14 anos de atividades este mês, apoiou a medida da prefeitura, afirmando a necessidade de desincentivar a permanência da população pobre no centro da cidade. A Associação defende a ampliação de projetos de promoção social conduzidos pelo Programa de Ações Locais – como os refeitórios comunitários e o Fórum de Entidades Assistenciais, voltado a crianças e adolescentes da área central – em parceria com a Secretaria Municipal de Assistência Social.

O chamado Centro Velho de São Paulo continua sendo uma área vital da cidade, mesmo com todos os problemas de degradação. A região tem um fluxo de cerca de dois milhões de pessoas em dias úteis e representa 11% dos empregos da cidade. Conta ainda com sistema de transporte, água encanada e esgoto, energia elétrica e várias opções de entretenimento. Toda esta estrutura é alvo de especulação imobiliária. No dia 6 de setembro, foi publicado decreto no Diário Oficial do Município, declarando como utilidade pública uma área de 105 mil metros quadrados que abrange ao todo 750 imóveis. Isto significa que a prefeitura pode, a partir de agora, desenvolver um projeto urbanístico para a região, inclusive desapropriando imóveis no futuro para que sejam “melhor” aproveitados, colaborando para a revitalização da região. Para o professor da UFRJ, Carlos Vainer, um erro freqüente nos projetos urbanísticos de requalificação é desconsiderar a vitalidade das populações que ocupam os locais degradados procurando um “aproveitamento melhor” de tais áreas. Para ele, os programas encobrem na verdade um processo de reapropriação burguesa que força a população de baixa renda a sair dos centros por não ter condições de aproveitar adequadamente tais regiões. “A recuperação mencionada pelos urbanistas tem um duplo sentido, trata-se de recuperar a paisagem, mas também de recuperar a terra. A cidade é uma arena, um local de disputa de grupos sociais”, diz ele.

Depois da rampa, um novo problema

O projeto das rampas antimorador foi interrompido sob críticas, mas outra celeuma ameaça ocupar seu lugar, a questão dos catadores de lixo reciclável ou carroceiros que circulam pelas ruas do Centro Velho, área onde se concentra o maior número de catadores avulsos e cooperativas fora das centrais municipais. A infra-estrutura da coleta de materiais recicláveis da prefeitura conta com 14 centrais de triagem e 72 caminhões que circulam com 20% de sua capacidade de transporte. São beneficiadas 705 pessoas, com uma renda média mensal de R$ 400. Em paralelo, cooperativas e catadores avulsos operam fora desse sistema, segundo a sub-prefeitura, em condições inadequadas de trabalho. A Secretaria de Serviços está implantando mudanças no atual modelo de coleta seletiva na cidade, para inclusão de profissionais que vivem desse ramo e, por enquanto, não houve conciliação entre a subprefeitura e as cooperativas catadores independentes. Para Carlos Antônio dos Reis, o Carlão, do Movimento Nacional dos Catadores de Lixo Reciclável, a real intenção da Secretaria é tirar esses catadores avulsos e cooperativas não conveniadas do Centro. Carlão faz parte da Cooperativa Recicla Vida localizada no Centro onde, além do trabalho de separação do lixo, são realizados outros projetos de educação com os catadores. “A prefeitura diz que não tem espaço físico para manter cooperativas aqui no Centro, mas ela poderia subsidiar o aluguel de espaços e dividir as despesas com a própria cooperativa, cujo trabalho dá lucro”, explica Carlão.

A requalificação dos espaços públicos, como ruas, avenidas e praças, valoriza a área onde essa população está inserida. Entretanto, segundo a arquiteta Evelyn Furquim Werneck Lima, do Instituto Bennett do Rio de Janeiro, o perigo ocorre justamente quando essa valorização causa o aumento imediato dos aluguéis e impostos, expulsando a população residente, muitas vezes constituída de moradores antigos e tradicionais. Estes, acabam buscando abrigo na periferia da cidade, pois não têm como arcar com o novo custo. Outro exemplo ocorreu nas áreas portuárias em todo mundo. Entre as décadas de 1960 e 1970, o progresso tecnológico e a adoção de containers para armazenagem e transporte das cargas abriram a possibilidade de navios cada vez maiores, o que, por sua vez, exigia canais e áreas de cais compatíveis, condições que os antigos portos não podiam atender. Com isso, ocorreu um processo de esvaziamento e abandono dessas áreas, muitas vezes localizadas próximas aos centros das cidades e com razoável infra-estrutura instalada. Da mesma maneira, o fenômeno da revitalização de áreas portuárias é um sintoma contemporâneo da reestruturação do espaço geográfico de muitas cidades em todo o mundo. Seguindo o exemplo de cidades como Boston, Londres e Nova York, a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro lançou em outubro de 2001 o Plano de Revitalização da Região Portuária (PRRP). Entretanto, segundo a professora Evelyn Furquim as residências aproveitadas no processo de requalificação destinaram-se às classes média e alta. Ela lembra que cidades como Lisboa e Paris adotaram políticas habitacionais fundadas na locação dos imóveis. Os proprietários recebem subvenção do governo para manterem os prédios preservados, alugados por um valor social, o que não exclui a população de baixa renda dos locais revitalizados.

O caso do Bairro do Recife

O professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Silvio Zancheti, defende a idéia de que a revitalização de áreas históricas deve ser entendida no interior de uma estratégia mais geral de desenvolvimento econômico local. O Bairro do Recife é um exemplo. O Plano de Recuperação do Bairro do Recife (PRBR), elaborado em 1993, representou na época uma nova forma de relacionamento entre o poder público e atores privados, propondo uma divisão de tarefas que incluiu a introdução de novas atividades na região e também a conversão de construções em habitações para pequenas famílias como meio de garantir maior utilização dos espaços públicos e aumentar a segurança. A parceria deu certo e grande parte dos projetos foi executada ou está em implantação. “O maior êxito do projeto foi a forte adesão do setor privado, sem que o município investisse altas quantias. Outras experiências no Brasil, como a do Pelourinho em Salvador e São Luis no Maranhão, não conseguiram atrair investimento privado, apesar de o investimento público ter sido muitas vezes superior ao feito no Recife”, conclui o professor.

Por outro lado, exatamente as ações voltadas para os grupos menos favorecidos, como a conversão de prédios para habitação, foi relegada para segundo plano. A inserção da iniciativa privada na revitalização urbana não supera os problemas de segregação espacial e de exclusão social. Para Zancheti, no Bairro do Recife, houve avanços sociais significativos quanto à democratização do uso do espaço público. “Entretanto, existem ameaças muito fortes no sentido de formação de barreiras à criação de um espaço público amplamente aberto à manifestação cultural de todos os grupos da sociedade local”, conclui.

Nesse contexto, a cidade presente nos planos não é a cidade dos cidadãos, de todas as relações sociais, um espaço de vida, mas sim um espaço de disputa, um jogo meramente formal, composto pelas motivações do setor empresarial, tendo o governo municipal como seu principal aliado. Esse jogo resulta cada vez mais num processo de formação de guetos, em detrimento de um dos traços mais característicos do espaço urbano, que é justamente a heterogeneidade ou um lugar de encontro de indivíduos diferentes.

Pelourinho: para muitos, o mau exemplo

Reformado e revitalizado por uma intervenção que começou em 1993, e que teve como objetivo explícito trasformá-lo em pólo de atração turística, o Pelourinho, em Salvador (BA), é um dos casos mais notórios de conflito entre população pobre e o poder público. Um dos seus maiores críticos é o filósofo francês Henry-Pierre Jeudy, autor do livro Espelho das cidades (veja resenha). “O centro, que era uma área viva, se transformou num museu, um pólo para turistas. Esse princípio da conservação, de fazer do centro um museu, é uma síndrome de morte da cidade. Ele petrifica a cidade. As pessoas que moravam no Pelourinho foram expulsas, isso quer dizer que o aspecto vivo da cidade desaparece com a patrimonialização. Havia uma mistura da população, a região era partilhada por todos”, declarou ele em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo.

Para Jeudy, o ideal seria fazer a restauração das edificações mas manter a população lá. Essa é justamente a proposta da nova fase do programa Monumenta, realizado pelo Iphan e pelo Ministério da Cultura. O programa, que ganhou uma nova inflexão em 2003, continua procurando valorizar e preservar o patrimônio histórico edificado, mas promete agora cuidar mais da questão habitacional e do bem-estar dos moradores dos sítios históricos. E um dos primeiros locais a ser beneficiado com essa nova filosofia do programa será justamente a região do Pelourinho.

Leia mais sobre o Monumenta e a história da revitalização do Pelourinho no texto Monumenta muda pelos moradores dos centros.

Luis Nassif

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