Morre Damiana Guarani e Kaiowá, cacica do Tekoha Apyka’i

Renato Santana
Renato Santana é jornalista e escreve para o Jornal GGN desde maio de 2023. Tem passagem pelos portais Infoamazônia, Observatório da Mineração, Le Monde Diplomatique, Brasil de Fato, A Tribuna, além do jornal Porantim, sobre a questão indígena, entre outros. Em 2010, ganhou prêmio Vladimir Herzog por série de reportagens que investigou a atuação de grupos de extermínio em 2006, após ataques do PCC a postos policiais em São Paulo.
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Ela liderava um grupo de famílias que acampava no território reivindicado hoje na posse de invasores plantadores de cana para usinas da região

Cacica Damiana Guarani e Kaiowá é uma das grandes lideranças que no Brasil seguem sem o protagonismo merecido. Foto: Ruy Sposati/Cimi

De acordo com a Aty Guasu, a Grande Assembleia Guarani e Kaiowá, povo situado no Mato Grosso do Sul, morreu nesta terça-feira (7) uma de suas principais lideranças, a cacica Damiana Cavanha, sem ter realizado o sonho de retorno ao tekoha – lugar onde se é -, a terra natal de seu povo. 

As causas da morte ainda não foram esclarecidas, mas Damiana Guarani e Kaiowá vivia “há mais de duas décadas em barracos de lona preta e restos de tábua, morrendo um pouco a cada dia, entre a violência do agronegócio e do poder público”, escreveu o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) em nota

Nascida em 1939, conta o Cimi, ela liderava, desde a década de 1990, o acampamento do Tekoha Apyka’i, composto por um grupo de famílias que ocupava de forma provisória, e sob violência, o território tradicional reivindicado, tomado por um canavial que abastece usinas, às margens da rodovia BR-163, a menos de 10 km do perímetro urbano de Dourados. 

Cacica Damiana, num dos muitos despejos que enfrentou em seu tekoha Apyka’i. Foto: Ruy Sposati/Cimi

Em 2012, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) instituiu um grupo de trabalho para iniciar o processo demarcatório, nunca levado adiante. Apesar disso, diz o Cimi, Damiana seguiu acampada com sua família ora nas margens da rodovia, ora em meio às plantações de cana.

Em seus 86 anos de vida, Damiana sobreviveu a ataques armados de jagunços e empresas de segurança privada, e a despejos e reintegrações de posse, com ou sem mandado judicial. Entre a cerca e o asfalto, Damiana enterrou ali mesmo, no acostamento da rodovia, muitos de seus parentes mortos por atropelamentos, incluindo o próprio marido. 

Morte sob investigação  

No último dia 2 de novembro, Dia de Finados, Damiana enfrentou mais uma vez os jagunços e foi ao meio do canavial que invade o Tekoha Apyka’i para visitar o cemitério onde estão seus parentes. A cacica sofreu muitos atentados e inúmeras vezes foi machucada pela truculência da jagunçada contratada pelos fazendeiros invasores das terras Guarani e Kaiowá. 

O corpo de Damiana, no entanto, não será enterrado junto deles. “Eu não quero passar pelo mesmo que minha mãe passava, quando ia visitar os parentes enterrados”, explicou a filha de Damiana à equipe do Cimi. 

Nos últimos dias, Damiana vinha sentindo dores e tendo desmaios longos, sendo levada às pressas ao Hospital da Missão, em Dourados, na tarde desta segunda-feira (6). Segundo sua filha Sandra, já a caminho do atendimento, Damiana teve uma parada cardiorrespiratória, mas resistiu e foi internada. 

No dia seguinte, revela o Cimi, segundo laudos preliminares apresentados pela equipe médica à família, teria sido identificada uma sepse gravíssima, e Damiana então descansou. 

A morte, contudo, está sendo investigada, já que haveria, ainda segundo a família, hematomas em seu corpo (não se sabe ainda se novos ou antigos). O Ministério Público Federal (MPF) e Funai estão intermediando para garantir que exames sejam feitos no Instituto Médico Legal (IML), e a Polícia Civil também iniciou as investigações para apurar o falecimento.

Usina lucrou com vida Guarani e Kaiowá 

Se o Estado brasileiro negligenciou a vida de Damiana e seus parentes, a Usina São Fernando, consumidora da cana plantada na Terra Indígena reivindicada por Damiana, entre 2008 e 2012, recebeu empréstimos do BNDES de mais de 500 milhões de reais. 

“Dinheiro público, entregue durante os governos Lula e Dilma, ao pecuarista José Carlos Bumlai, proprietário da usina que nunca pagou de volta um único centavo. Com quase 1,5 bilhão de reais em dívidas, Bumlai foi preso em 2015 por distribuição de propina no contexto da operação Lava Jato”, escreve o Cimi em sua nota. 

Conforme o Cimi, a usina faliu e foi leiloada, e atualmente está sob disputa judicial entre ESG (um consórcio de investidores de São José dos Campos/SP), Grupo AGF (indústria sucroalcooleira com sede em Recife/PE), e Millenium Holding (uma empresa recém-fundada da Vila Olímpia de São Paulo/SP, com capital social de 600 milhões de reais). 

A empresa que ganhar na Justiça deverá pagar apenas cerca de 350 milhões pela compra da massa falida da São Fernando.

Enquanto isso, a cacica Damiana Guarani e Kaiowá não tem sequer um pedaço de terra para descansar de uma vida de lutas e sofrimentos. 

Neste ano de 2023, poucos meses atrás, relata o texto da Aty Guasu, Damiana sobreviveu à perda de mais um neto morto por desnutrição, com apenas um ano de vida. “Enterrou-o, assim como aos outros, dentro do tekoha – isto é, em meio à plantação de cana-de-açúcar”, noticiou o Cimi.  

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