O ouro de Rafaela Silva e a fábula da meritocracia, por Marcelo Burgos

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Por Marcelo Burgos

Na CartaCapital

A conquista da medalha de ouro olímpica por Rafaela Silva, menina da Cidade de Deus, traz de volta, com renovado vigor, a retórica da superação que o caminho do esporte, como expressão máxima do poder transformador do mérito, é capaz de propiciar.

O fato de Rafaela ser negra, de família pobre e oriunda da favela, serve como uma luva à narrativa de que pelo esporte é possível “escapar ao caminho da violência”, e o judô seria a atividade ideal para transformar a “violência que ela trazia da comunidade em força para vencer na luta”.

Afirma-se, irresistível, o caráter redentor do esporte contra uma realidade que tem tudo para desencaminhar as crianças levando-as para o “caminho do mal”.

Acostumados com essa narrativa sobre a favela, que a toma como locus da cultura da violência por excelência, assistimos impassíveis à repetição do mantra que traz o sinal da naturalização de uma cidade desigual, e que se contenta resignada com o fato de que, como nem todos podem ser como Rafaela, não resta outra alternativa a não ser cumprir o destino traçado pela “cultura da violência das comunidades”.

Difícil dizer o que choca mais: se é a falta de respeito e cuidado com os milhões de crianças e famílias que moram em favelas e periferias e que lutam cotidianamente contra a violência do Estado e do tráfico (as quais frequentemente se confundem) para construir uma vida digna baseada na valorização da escola e do trabalho, e que são insultadas com a suspeição de que caso não bafejadas pela sorte de um projeto salvacionista cumpririam um destino inexorável; ou se é a desfaçatez com que se assume a violência das comunidades como um dado natural, tal como um desígnio de deus, contra o qual nada se pode fazer.

A trama macabra do fatalismo desresponsabiliza a sociedade e o poder público, e esvazia o papel transformador da política.

Atenta às consequências de suas palavras, e aparentemente prevenida para o mau uso político de sua imagem, Rafaela demonstra prudência apesar da emoção, mas não deixa de pontuar que na Cidade de Deus “não tem nada”. Em uma única frase, resume timidamente sua percepção nua e crua de uma realidade brutalmente desigual.

O que talvez seja menos evidente para Rafaela, embora ela pareça intuir, é que para ser produzida e reproduzida essa cidade desigual não pode dispensar o uso de contraexemplos como o dela que, perversamente, mais servem para ocultar do que para revelar a questão social na qual sua vida – nossas vidas – estão encerradas.

Quem conhece as armadilhas do debate sobre a favela sabe o quanto tem sido difícil romper com esse círculo vicioso, de uma narrativa que tanto opera com uma sociologia vulgar, que toma o território (a favela) como determinante de um comportamento violento e potencialmente criminoso – a velha máxima “o meio faz o homem”; quanto com uma psicologia igualmente vulgar, que procura explicar as exceções pelo talento e pela perseverança individual, mas nunca pelos efeitos virtuosos que a família e a vizinhança podem ter para a sua formação.

Essa forma específica de articulação entre a dimensão social e a dimensão individual tem tido entre nós a força de um mito que, afinal, explicaria a sobrevivência, desde a abolição da escravatura, de uma dinâmica que torna muito difícil a emergência dos conflitos sociais urbanos, na medida em que contribui para naturalizar a pobreza e a desigualdade social, e suas formas mais explícitas de exteriorização, que são as favelas e periferias das grandes metrópoles do país.

É por isso que a maravilhosa conquista de Rafaela, em vez de ser tratada como a vitória de uma atleta, logo teve que ser convertida em “medalha de sabor social”, com o que se vivifica a força do indivíduo que serve de exceção que confirma a regra.

Mais uma vez vale a pena trazer a voz da judoca: “não tenho recado para ninguém, eu tenho é uma medalha no meu peito”. Como se vê, apesar do empenho da grande imprensa, Rafaela tem dado sinais de que pretende resistir com tenacidade a cumprir com o script que se espera dela.

Como destruir esse mito que mantém a política à margem do coração do drama urbano brasileiro?  Não há caminho fácil, mas algumas apostas podem ser feitas. A que parece mais promissora é aquela que aponta para o caráter transformador da recente mobilização dos estudantes secundaristas em diversas cidades e estados do país.

Boa parte deles moradores de favelas e periferias pobres, os estudantes ocuparam por um momento as escolas para convertê-las nos espaços públicos que suas cidades sistematicamente se recusam a oferecer-lhes. E nas escolas ocupadas puderam ensaiar o espetáculo que cedo ou tarde levarão para o teatro mais amplo da política.

Nesse espetáculo, eles são sujeitos da história desse país, e se lutam por uma escola pública de qualidade é por verem nela o caminho mais universalista para a construção de uma sociedade mais igualitária e mais inclusiva.

Caso a vitória de Rafaela deixasse de ser lida como encarnação do discurso salvacionista, que reafirma a fábula do mérito individual e o fatalismo da desigualdade social, e se articulasse com a nova narrativa que a luta dos estudantes secundaristas está construindo, teríamos, aí sim, um verdadeiro legado social e político da Rio 2016. 

*Marcelo Burgos é professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

16 Comentários

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  1. No Brasil, pra população mais

    No Brasil, pra população mais marginalizada, é menos difícil conseguir um pódio olímpico do que se tornar médico ou engenheiro. Que Rafaela consiga não ser explorada por gente que não deixaria que ela usasse o elevador social de seu prédio – ah, o elevador de serviço, a perfeita tradução do racismo brasileiro, racismo que não ousa dizer o seu nome. 

     

     

  2. Mulher, negra, favelada,

    Mulher, negra, favelada, pobre e homossexual. Rafaela Silva é a maior porrada na cara do neo-Brasil. (Flavio Gomes))

  3. o ouro…

    Rafaela nasceu em plena “panfletária e demagógica” democracia. Num país sob a regra da Constituição Cidadã. Cresceu enquanto “socialistas, democratas e perseguidos politicos” se alternavam no poder, ininterruptamente. E mesmo assim contra tamanha incompetência que pairava sobre o Estado brasileiro, por seus esforço pessoais, chegou ao sucesso. Agora vem novamente este discurso barato e infindável dos iludidos da esquerda, esta praga nacional que mesmo em face ao abismo da sua incompetência e desmoralização, querem continuar com seu argumento vencido. Se existem favelas porque não diminuiram? Veja bem não falo nem em acabar, apenas diminuir. Se não teve apoio, porque não foi dado a esta menina? Por que as escolas,  centros de lazer e esporte na periferia pobre ou favelas não foram implantados? Agora querem diminuir a “meritocracia” que levou esta ginasta até o sucesso? É muita hipocrisia. Não foi um período da centro esquerda socialista que esteve no poder. Foram todas as figuras desta época em governos distintos desde os municipais até a presidência da República durante quase 30 anos. Teotonio, Arraes, Brisola, FHC, Lula, Dilma, Marta, Benedita, Tarso, Covas, Montoro, Eduado, Olivio, Ulisses,…Acabou a farsa. Discurso vazio e ninguém para ouvi-lo. Olhe pela janela, a desgraça desmoralizante do período em que vivemos é fruto das mentiras implantadas nestes 30 anos. Não se pode andar nas ruas ou errar o caminho. A sentença pode ser um tiro de fuzil na cara. 

    1. meu jezuis cristinho…

      lá vem o zezinho de novo e seu pequenino mundinho. Esse minino só fala do Brasil de 30 anos pra cá. Querido zezinho, vá ler um pouquinho de história do Brasil, minino!

      1. Bem mostra o efeito da inflação

        A curva acompanha bem o aumento da inflação no país: a desiguladade só diminuiu quando diminuiu a inflação, que sem dúvida é o maior dispositivo concentrador de renda já inventado. Quem tinha acesso ao sistema bancário aplicava seu dinheiro, quem só tinha papel moeda no bolso se danava.

    2. OMG!!!
      “Se não teve apoio, porque não foi dado a esta menina?”

      Ela teve apoio através de bolsa criada no governo dilma. Este apoio foi reconhecido pela atleta que gravou um vídeo de apoio a Dilma nas eleições.

      Veja abaixo o video.

      E não precisa se envergonhar de tanto desconhecimento. Isso é normal em leitor da mídia tradicional.

      https://www.google.com.br/url?sa=t&source=web&rct=j&url=http://www.revistaforum.com.br/2016/08/09/ouro-no-judo-rafaela-silva-explica-por-que-votou-em-dilma/&ved=0ahUKEwicuIibw7rOAhUGEZAKHTaeD9gQFggeMAE&usg=AFQjCNFPl0nZQX17705UlPgQKb8E4Ith7A&sig2=c22_ZoC1sihqGNopyQwiYg

    3. Dos muitos comentários

      Dos muitos comentários desonestos que já li aqui, decerto esse teu ganha disparado; leva a medalha de ouro.

      Ódio ideológico destrói os neurônios. Tome cuidado. 

      1. status…

        O que “destrói” neurônios é tiro de fuzil na cabeça. E o que destrói argumentos  e propicia que se caia sozinho é culpar fantasmas e não apresentar resultados significativos depois de 3 décadas no poder. Direita ou esquerda, este Brasil ditatorial que não evolui e não se altera é resultado de incompetentes que não cumpriram o prometido e não permitiram meios pra a sociedade cobrá-los. Afundem na sua mediocridade, que é tamanha, que devolverá o poder para outros tão medíocres quanto os atuais. 

  4. Vivo cercado de coxinhas, sou

    Vivo cercado de coxinhas, sou servidor público “concursado”, mas os caras se acham muito inteligentes e competentes, entram para ganhar um bom salário e começam a fazer discursos liberais, mentirosos de cara limpa, capitalistas pendurados no estado, vivem se dizendo meritocratas, quando sabemos que são apenas burocratas privilegiados que jamais conseguiriam no “mercado”, que tanto amam, receber no início de carreira o salário que receem.

     

    A meritocracia é o mantra dessa gente, hoje ouvi um falando que o Brasil “parou de piorar” e que tudo vai voltar a ser  progresso a partir de agora, o cara com toda empáfia tipica dos convictos, disse que somos uma bela democracia e que os problemas do pais serão resolvidos de forma “incremental” por economistas que agora tomaram conta do Ministério da Fazenda e pelas medidas do novo governo.

     

    Quase todos têm diploma universitário de escolas públicas federais, mas são contra as cotas, dizem que o Brasil precisa privilegiar a produtividade, a meritocracia, acabar com todos os subsídios, o Brasil desse povo é completamente diferente daquele da maioria esmagadora do Brasil das periferias, da violência urbana, do desemprego, da repressão policial, enfim são todos servidorzinhos que querem um estado forte apenas para manter seus privilégios, são de uma classe média reacionária e totalmente refratária aos dramas dos mais pobres.

     

    Por exemplo, eles querem reformar a CLT e as leis trabalhistas, são a favor da terceirização, mas não querem nem ouvir falar de qualquer mudança nos seus privilégios, como a estabilidade no emprego, sob o argumento de que são  beneficiários da tal meritocracia.

     

    Acho que o fututo do pais com gente como esta será muito complicado, não tenho expectativas positivas para avanços na renda per capta, na redução da desigualdade e nem na redução da probreza a curto e médio prazo por aqui.

    1. Comentário díficil ou impossível de contestar

      Antônio A.  B. Neto,

      Este teu comentário atinge a jugular dos falsos meritocratas; conheço muitos deles, os quais não têm nada de original. Aécio Cunha, que jamais conseguiu um emprego (seja na inciativa privada ou no setor público) por mérito próprio, mas que faz esse discurso demagógico e hipócrita, repetido como mantra pelos pseudo-moralistas e pseudo-meritocrata, é o guru dessa gente. Jessé Souza, em livro recente, intitulado “A tolice da inteligênia brasileira”, põe esses hipócritas no devido lugar.

    2. Eles estão caindo na real

      Vejo que eles estão simplesmente caindo na real. Mesmo que possam ser chamados de hipócritas, já que usufruem dos privilégios de funcionário público, eles entenderam o óbvio: o país só funciona com a meritocracia e o incremento da produtividade. A meritocracia não é uma ideologia ou uma moral, é tão somente um método de gestão, que visa obter o bem comum ao conceder os cargos àqueles indivíduos que podem desempenhá-los melhor. Do bom serviço todos se beneficiam, o mau serviço prejudica a todos.

  5. não espere que os vivem e

    não espere que os vivem e nasceram em opulência faça algoque preste, é dos miséráveis que haveremos de tirar o que o país precisa.

    1. Os miseráveis são massa de manobra

      Os miseráveis só prestam como massa de manobra. Não são os miseráveis que fazem o que o país precisa, eles só fazem atos de desespero, em geral com péssimas consequências para eles próprios, e depois os que nasceram, vivem ou almejam viver na opulência se proclamam representantes desses miseráveis.

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