Desrespeito à lei mostra relação da sociedade com o Estado

Do O Globo

No desrespeito à lei, a relação da sociedade com o Estado

Fábio Vasconcellos

Para analistas, formação histórica do país e sensação de desigualdade ajudam a explicar tragédia no Sul

Gianetti. “O Estado precedeu a sociedade. Não foi uma mobilização que o criou”

Passada uma semana da tragédia em Santa Maria (RS), na qual 236 jovens morreram no incêndio da boate Kiss, as investigações apontam fatores que provocaram o evento. Uma sucessão de falhas por parte do poder público aliada a decisões de pessoas pouco comprometidas com normas e procedimentos básicos de segurança. Muito mais do que uma caça a possíveis responsáveis, o caso do Rio Grande do Sul leva a uma discussão sobre a relação entre Estado e sociedade no Brasil. Um sistema bastante normatizado e burocrático, e incapaz de realizar adequadamente funções simples como a de fiscalizar, associado a uma baixa adesão dos cidadãos ao mundo legal. Evitar por completo a ocorrência de tragédias seria praticamente impossível. Mas a conjunção desses fatores contribui para repetição de casos de comoção nacional.

Foi assim na enchente da Região Serrana do Rio de 2011, quando mais de 900 pessoas morreram, muitas porque viviam há anos em áreas de risco. A obra irregular no 9º andar do Edifício Liberdade, que desabou no Centro do Rio ano passado, matando 17 pessoas, é outro exemplo. Mas há casos mais antigos, como o naufrágio do Bateau Mouche, em 1989. Nessas tragédias foram constatados ausência de fiscalização e descumprimento de procedimentos. Quais as razões para esse quadro, cujo efeito tem sido a reprodução de tragédias e uma cidadania refratária às regras?

Autor do livro “Vícios privados, benefícios públicos”, o professor de Economia do Insper Eduardo Giannetti entende que há características históricas nesse processo, ligadas ao modelo de fundação do Estado brasileiro. Interesses externos – isto é, os da Coroa portuguesa – formularam as bases do nosso Estado. Essa seria uma das razões da contínua desconfiança da sociedade em relação às instituições públicas, e destas, com relação à sociedade.

– O Estado brasileiro precedeu a sociedade. Não foi uma mobilização interna que criou o Estado para atender suas necessidades. O mundo ibérico descobriu esse território e criou uma sociedade para atendê-lo. E um exemplo disso são as capitanias hereditárias. A sociedade aqui foi inventada pela Coroa portuguesa para financiá-la. Nesse modelo, há desconfiança mútua. O agente privado tenta driblar a voracidade arrecadadora do Estado, e o Estado, quando se percebe driblado, aumenta mais o número de normas e instituições. É uma espiral que acaba criando uma zona cinzenta, onde o cidadão e os agentes do Estado ou não cumprem obrigações ou cumprem por acordos, muitas vezes pela corrupção – diz Giannetti.

Mas a não adesão às normas teria outros motivos. Giannetti considera ao menos três. O primeiro seria a fiscalização. Se o cidadão percebe que tem maior probabilidade de ser punido, porque de fato há fiscalização, há chance menor de ele se arriscar. O segundo fator, identificação, consiste no desejo das pessoas de serem bem avaliadas pelo grupo. O último seria o de internalização, e diz respeito à percepção que as pessoas podem ter de que é importante seguir as regras, independentemente de o Estado cobrar ou não. Como alguém que decide respeitar o sinal de trânsito de madrugada:

– Entre esses três fatores, o primeiro é claramente responsabilidade do Estado. Se há baixa probabilidade de uma pessoa ser punida, há mais chances cometer infrações. O segundo (identificação) tem relação com a constituição familiar. São sentimentos morais que levam as pessoas a se sentirem culpadas, caso não sigam determinado comportamento. Já o terceiro fator (internalização) tem a ver com o processo educacional. A internalização das normas depende do processo formal de educação, da escola. O Brasil tem problemas nessas três dimensões.

O antropólogo e professor da PUC-Rio Roberto DaMatta estuda há anos a relação do brasileiro com normas e regras do mundo legal. Ele diz que a tragédia em Santa Maria revela a dificuldade da sociedade brasileira de conviver com a igualdade de todos diante da lei. Como há sentimento geral de que alguns têm mais direitos que outros, as regras não são cumpridas porque se sabe que, caso haja problemas, tudo pode se resolver no “jeitinho”:

– A maneira como lidamos com o mundo formal está no cerne dessa tragédia. Há duas coletividades que não se entendem, que muitas vezes falam línguas diferentes. Uma é a máquina do Estado; a outra, a da sociedade, movida pelas relações pessoais. Ou seja, as leis que regem as casas noturnas, por exemplo, estão escritas, mas não seu uso, que depende das pessoas.

Em 2010, DaMatta publicou o livro “Fé em Deus e pé na tábua”, sobre a prática dos brasileiros de desrespeitar as normas no espaço público, onde todos devem ser considerados iguais. Em vários estudos, ele lembra uma diferença entre o Brasil e os Estados Unidos quando o assunto é o cumprimento das leis. Nos EUA, diz, há menos instituições públicas fazendo a mesma coisa, e o cidadão tem percepção de que vive numa sociedade mais igualitária. Desse modo, todos são mais autônomos e, assim, mais atentos ao que diz a lei.

Luis Nassif

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