
Piso da enfermagem: os abrigos filantrópicos foram abandonados pela Saúde
por Ion de Andrade
As Instituições de Longa Permanência de Idosos (ILPI) filantrópicas, no Brasil, país que não tem uma política nacional de financiamento da institucionalização dos idosos em situação de risco e vulnerabilidade, são a única porta aberta a essa população, normalmente desassistida.
Tais instituições recebem idosos originados de situação de rua, sem família, em na miséria, o que inclui famílias incapazes do cuidado, fome, doença mental, exploração do benefício, ou aposentadoria por terceiros e abusos os mais diversos.
Qualquer país em fase de envelhecimento populacional já entendeu que a institucionalização de idosos nessas condições é incontornável se é que queremos construir padrões mínimos de civilidade.
O Brasil ainda não chegou nesse patamar e a maioria das instituições que abrigam esses idosos pobres em situação de vulnerabilidade social são filantrópicas e por lei estão vinculadas ao Serviço Único da Assistência Social (SUAS) e não ao SUS. As ILPI públicas, que deveriam ser a regra, se constituem na verdade numa grande exceção.
Noutras palavras estamos no que toca ao acolhimento aos idosos no patamar em que a Saúde estava no século XVIII: a caridade pública!
Essas instituições estão obrigadas para prestar os seus serviços dignamente e, muitas delas, sem qualquer financiamento público, a contratar enfermeiras e técnicas de enfermagem.
Apesar de terem sido abandonadas pelo Ministério da Saúde, a Emenda Constitucional que estabeleceu o Piso Nacional da Enfermagem reconheceu na filantropia em geral, legitimidade para receber os recursos do repasse para o pagamento da enfermagem, como veremos abaixo (clique aqui para ver a emenda aprovada).
Diz a Emenda no caput:
Altera a Constituição Federal e o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias para estabelecer que compete à União prestar assistência financeira complementar aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios e às entidades filantrópicas, para o cumprimento dos pisos salariais profissionais nacionais para o enfermeiro, o técnico de enfermagem, o auxiliar de enfermagem e a parteira; altera a Emenda Constitucional nº 109, de 15 de março de 2021, para estabelecer o superávit financeiro dos fundos públicos do Poder Executivo como fonte de recursos para o cumprimento dos pisos salariais profissionais nacionais para o enfermeiro, o técnico de enfermagem, o auxiliar de enfermagem e a parteira; e dá outras providências.
E reafirma sem outras restrições nos seguintes parágrafos:
§ 14. Compete à União, nos termos da lei, prestar assistência financeira complementar aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios e às entidades filantrópicas, bem como aos prestadores de serviços contratualizados que atendam, no mínimo, 60% (sessenta por cento) de seus pacientes pelo sistema único de saúde, para o cumprimento dos pisos salariais de que trata o § 12 deste artigo.
§ 15. Os recursos federais destinados aos pagamentos da assistência financeira complementar aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios e às entidades filantrópicas, bem como aos prestadores de serviços contratualizados que atendam, no mínimo, 60% (sessenta por cento) de seus pacientes pelo sistema único de saúde, para o cumprimento dos pisos salariais de que trata o § 12 deste artigo serão consignados no orçamento geral da União com dotação própria e exclusiva.” (NR)

O legislador foi claramente abrangente a uma filantropia que obviamente é a que tem enfermagem nos seus quadros, incluindo-a no benefício do repasse e sem estabelecer a obrigatoriedade do seu vínculo com o setor Saúde. Isso ocorreu, possivelmente para incluir instituições como as ILPI que são filantrópicas, estão vinculadas à Assistência Social (SUAS) e são obrigadas a ter enfermagem contratada…
O Fundo Nacional de Saúde, por sua vez, refletindo as decisões do Ministério da Saúde, mostrou-se extremamente restritivo, desrespeitando a Emenda Constitucional (que é agora a própria Constituição Federal) que havia posicionado a filantropia como um todo num mesmo patamar, sem privilégios para aquelas que operam no setor Saúde, mas com foco nas que têm enfermagem contratada.
No site do Fundo Nacional de Saúde no link que trata do piso da enfermagem em perguntas e respostas (clique aqui) encontramos as seguintes desobediências à lei:
- Profissionais que atuam em Asilos, entram?
Resposta: De acordo com a Lei nº 14.434/2022 todos os Profissionais de saúde ali relacionados tem direito ao piso. Se o Asilo for contratualizado do SUS, dentro das condições estabelecidas pela Lei, os dados desses profissionais deverão ser inseridos
Aqui, observem, é a contratualização ao SUS que é considerada como determinante para o recebimento do repasse e não o caráter filantrópico da entidade como quer a lei e como está claramente previsto na emenda constitucional aprovada. Ora, trata-se de uma resposta esperta e para prejudicar pois as ILPI não têm contratualização com o SUS, portanto, trata-se de uma negativa velada. E
- Entidades que não são de saúde irão receber o piso de enfermagem pelos fundos estaduais e municipais de saúde?
Resposta: Não
Aqui as entidades externas ao setor Saúde, como é o caso das ILPI filantrópicas que estão sim cobertas pela Emenda Constitucional, conforme vimos e pertencem ao SUAS, são sumariamente excluídas.
É preciso que o Fundo Nacional de Saúde, o Conselho Nacional de Saúde, o Ministério da Saúde e em última análise o governo federal corrijam urgentemente essa ilegalidade que prejudica as mais vulneráveis dentre as vulneráveis instituições do Brasil: as ILPI filantrópicas.
É preciso também que o Ministério Público Federal acompanhe isso de perto para que essas instituições que representam o gesto excepcionalmente raro de solidariedade da sociedade brasileira para com os idosos pobres em situação de risco e vulnerabilidade e vivem em permanente crise e dificuldades não venham mais uma vez a ser desrespeitadas pelo Poder Público.
Não é admissível que sejam criadas despesas para elas em sua imensa maioria pobres e hipossuficientes sem que o Estado compense com receitas novas.
Atenção Ministra Nísia Trindade, pois acredito que a senhora não tenha conhecimento de tamanho absurdo.
Ion de Andrade é médico epidemiologista e professor e pesquisador da Escolas de Saúde Pública do RN, é membro da coordenação nacional do Br Cidades e da executiva nacional da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela democracia
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