Trabalhadores de Apps em Cena: André Arruda (Lenine), por Daniele Barbosa

Lenine é coordenador do Movimento dos Motoristas de Aplicativos de Pernambuco (MAPE). Motorista e entregador de plataforma digital em Pernambuco.

Trabalhadores de Apps em Cena: André Arruda (Lenine)

por Daniele Barbosa[1]

Com a academia, mas para além dela! É assim que continua a próxima etapa da coluna Trabalhadores de Apps em Cena, iniciada em 2021. Além dos acadêmicos de diversas áreas do conhecimento, em 2022, ampliaremos o diálogo com juízes, procuradores e advogados, uma vez que a luta contra a precariedade politicamente induzida[2] deve implicar também os que atuam na Justiça do Trabalho no Brasil.

Busca-se, com esta coluna, fazer com que as vozes das trabalhadoras e dos trabalhadores de plataformas digitais compareçam à cena principal em um constante questionamento das formas restritivas por meio das quais a esfera pública vem sendo acriticamente proposta[3] pelo enquadramento da grande mídia[4]. Dando continuidade ao projeto[5], convidei para a formulação de uma pergunta: Danieli C. Balbi, Grijalbo Coutinho, Ivan Garcia, Marcelise Azevedo, Marildo Menegat, Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Rodrigo Carelli e Sayonara Grillo. Nas entrevistas deste mês, “nova forma da contradição entre capital e trabalho”, “trabalho por aplicativo”, “algoritmo”, “formação popular”, “metamorfose ou colapso do mundo do trabalho”, “formas de organização e de luta”, “direitos trabalhistas” e “gênero e trabalho” serão alguns dos temas abordados.

A construção coletiva das entrevistas é também uma forma de resistirmos à racionalidade neoliberal. Christian Laval e Pierre Dardot, em A nova razão do mundo, afirmam que “é mais fácil fugir de uma prisão do que sair de uma racionalidade, porque isso significa livrar-se de um sistema de normas instaurado por meio de todo um trabalho de interiorização”[6]. Segundo os teóricos ainda, para uma resistência à racionalidade dominante, é necessário “promover desde já formas de subjetivação alternativas ao modelo da empresa de si.”[7]. Na esteira dessa reflexão, em vez de se fortalecer aqui uma lógica da concorrência, da destruição dos laços sociais, da maximização do desempenho individual, a ideia foi buscar, neste agir juntos, com as entrevistas sendo produzidas coletivamente, uma outra maneira de nos relacionarmos.

A entrevista de hoje é com André Arruda (Lenine).

André Arruda (Lenine)

Coordenador do Movimento dos Motoristas de Aplicativos de Pernambuco (MAPE). Motorista e entregador de plataforma digital em Pernambuco.

DANIELI C. BALBI: De acordo com a sua avaliação, o conjunto das trabalhadoras e trabalhadores de aplicativos tem consciência de que a vulnerabilidade de suas condições de trabalho se relaciona às questões mais gerais, resultado da nova forma da contradição entre capital e trabalho e da necessidade que o capital tem hoje de criar condições precárias ao exercício desse trabalho, retirar direitos e, assim, deprimir o valor da força de trabalho?

É extremamente complicado a gente falar dessa situação, porque, assim, a tirada dos direitos trabalhistas, né, que foi tanto tempo a gente lutou, né, desde a criação da CLT, a gente conquistou vários e vários direitos e hoje a gente tem uma precariedade, não só no sistema por aplicativo, mas, assim, no modo geral, né. Nós, trabalhadores, perdemos essa capacidade que a gente tem de direitos, retirados por pessoas que precariarizam o nosso serviço, entendeu? Digamos assim, o capital, ele, quanto mais relação de consumo, para ele, melhor. E o trabalhador que se vire, entendeu? Eu entendo dessa forma.

GRIJALBO COUTINHO:O que levou você a escolher o trabalho por aplicativo?

Na verdade, a escolha do trabalho por aplicativo, ele não é uma escolha e sim uma necessidade, né. A gente sabe que o nosso país está beirando milhões de desempregados, né, e a única forma que a gente tem de correr atrás do nosso pão de cada dia é o aplicativo, que a gente sabe que, geralmente e possivelmente, a oferta de trabalho que existe requer uma determinada qualificação, né. E, com a retirada de direitos trabalhistas que aconteceu, aconteceu também uma precarização também do sistema de ensino, né, do nosso ensino médio. O acesso à universidade se tornou mais difícil nos últimos anos. Então, assim, pra gente poder ter um trabalho digno, a gente tem que ter uma formação digna. Eu digo por mim. Eu tranquei Medicina Veterinária no sétimo período, porque não tive condições. Ou trabalhava ou estudava, entendeu? Então, sim, não é uma escolha. É uma necessidade. E a forma do aplicativo, a gente ir para o aplicativo é mais fácil, porque não requer uma, digamos assim, uma formação acadêmica para ser motorista de aplicativo ou entregador de aplicativo. Você só tem que ter realmente é atividade remunerada, ter um aplicativo seu ou locado ou uma moto sua ou locada para trabalhar, entendeu? Então, assim, não é que a gente escolhe ser motorista ou entregador de aplicativo. É uma necessidade que a gente tem nesse momento, porque as contas não param de chegar.

IVAN GARCIA: Os algoritmos do aplicativo criam um sistema de recompensas e punições (“sticks & carrots”) que estimulam, como num jogo (“gameficação”), que o motorista se direcione para o local de maior demanda, no momento em que ela se forma. Caso o motorista pare, por exemplo, para almoçar, a empresa envia diversas mensagens estimulando o motorista a voltar a rodar. Por outro lado, além de uma série de diretrizes, a empresa monitora a movimentação do motorista em tempo real. Isso sem contar a utilização que a empresa dá para as avaliações dos passageiros. Sabendo então que a empresa acaba colocando o motorista no local que ela quer e na hora que ela quer, você considera que tem autonomia real para definir seu horário de trabalho? Considerando seus gastos para trabalhar e o valor médio de ganho com as tarifas definidas exclusivamente pela empresa, quantas horas por dia de trabalho você precisava fazer para ter um ganho efetivo? Ainda assim você considera que tinha plena liberdade para definir o horário que trabalhava?

Sobre a questão da demanda, né. Vamos por parte. Primeiro, a empresa, ela realmente monitora o motorista. Ela tem essa questão de lançar promoções e demandas, né, porém são fantasiosas. Porque ela lança a demanda, mas, quando tu vai para o local da demanda, a demanda não existe lá, neste local, entendeu? Segundo, a gente não tem uma autonomia, porque, se você tiver em uma determinada área que não tem essa oferta, que não tem essa demanda, é o que a gente chama de “voltar batendo”. A gente pega uma corrida num local de demanda pra deixar num local que não tem demanda. Então, a gente não tem autonomia, por quê? Porque a gente vai ter que “voltar batendo”. Porque não existe demanda pra gente voltar. A gente volta sem passageiro, sem gerar bônus, digamos assim, entendeu? E, em terceiro lugar, sobre a questão do processo de horários pra trabalhar por dia. Então, a questão de horas trabalhadas, ela é complicada, porque a gente precisa de uma real demanda pra trabalhar um determinado horário, para poder, assim, a gente cumprir, né, com os nossos deveres, naquilo que a gente realmente está precisando no momento, entendeu? (…) Basicamente se trabalha entre 12 horas, né, de trabalho. São 12 horas de trabalho. E, mesmo assim, a gente não tem essa efetividade que ele pergunta aí. A gente não tem esse tipo de efetividade.

MARCELISE AZEVEDO: Você acredita que uma formação popular sobre os direitos trabalhistas que esses trabalhadores têm, estabelecidos em legislação e em razão de decisões judiciais, poderia auxiliar na conscientização sobre a precariedade das suas condições de trabalho?

Sim, sim! Com certeza, uma formação popular. Quanto mais informação a população tiver sobre o trabalho que exercemos, melhor, né, é a conscientização da precarização do sistema. Com certeza. (…) Sim, com certeza, porque aí a população também vai estar sabendo quais são os nossos direitos, aquilo que a gente precisa fazer, aquilo que a gente precisa cumprir. E aquilo que a empresa oferece e o que não oferece, entendeu? Eu acho que sim, acho que todo tipo de conscientização, ela é bem-vinda, ela é super bem-vinda. E isso, assim, uma formação popular sobre todo esse tema, sobre todo esse contexto, é de super importância. Não só pra gente que é motorista, que é entregador de aplicativo, mas para a população saber por que é que você cancela uma corrida. “Ah, vou cancelar porque não tá valendo a pena, porque a tarifa tá muito baixa. A distância é longa. O aplicativo não tá pagando certo.” Entendeu?

MARILDO MENEGAT: Minha questão sobre este tema é entender e delimitar se estamos diante de uma ‘metamorfose do mundo do trabalho’ – entendida como resultado de uma reestruturação produtiva e do choque de novas tecnologias -, ou diante do ‘colapso do mundo do trabalho’ – devido às novas tecnologias poupadoras de trabalho humano, como as da terceira e, agora, quarta revolução industrial – , com as atividades assalariadas regulares tornando-se cada vez mais raras e insignificantes na dinâmica da acumulação do capitalismo atual. Tal diferença muda completamente o tratamento que se deve dar ao tema. Se for uma metamorfose, teremos no futuro chances de produzir novos instrumentos de regulação – como ocorreu no fordismo. Se for colapso, não haverá futuro reconhecível por padrões do passado. Como você percebe esta zona cinzenta da fronteira, ou seja, como são suas projeções de futuro – otimistas? Ou são sombrias?

Bom, em relação à pergunta do professor, posso dizer que seria um colapso, né. A gente sabe que existe as tecnologias, né, a gente está vendo que a tecnologia está muito avançada, a tecnologia tá pra nos ajudar no dia a dia, porém é aquela história, é um colapso, por quê? Todo mundo que tem seu emprego de carteira assinada etc e tal que perde o seu emprego hoje, uma grande maioria, 78% dos desempregados, eles tendem a vim pra esse lado de entregador de aplicativo ou de motorista de aplicativo, né, nos apps em geral. Então, a gente entende isso como um colapso. Eu entendo isso como um colapso, por quê? Porque é a única opção que tem. Então, assim, quando se tem muita gente dentro de um só sistema, termina entrando em colapso. A gente não tem uma via regra, a gente não tem uma via de saída. É uma metamorfose também. É assim: as pessoas estão aprendendo a lidar com a tecnologia, aprendendo novas coisas, evoluindo, né, não tá ficando pra trás. Mas, em sua grande maioria, é realmente um colapso. Um colapso sombrio, né. E, assim, todo mundo tá correndo pra esse lado. Correndo, correndo, correndo. E termina acontecendo o quê? Chega o momento que vai ter que estancar essa sangria. E a gente não sabe da onde vai vim. A gente não pode ter uma perspectiva de futuro. A gente tem que, sim, trabalhar o presente, né, almejando o futuro de uma forma que vai ser bom pra todas as pessoas que trabalham com apps, seja motoristas ou seja entregadores, entendeu? Inclusive, as empresas estão fazendo agora uma coisa única. A gente, antigamente, tinha, tipo, o aplicativo só de carro pra levar passageiro. A gente já tem moto, ou seja, então, é uma metamorfose, por quê? Em várias cidades, existem mototáxis, né. E aí esses mototáxis já estão entrando dentro do app pra poder trabalhar como piloto de moto, né, mototáxi do aplicativo. Porém, se você sair colocando tudo dentro de um sistema e não ter uma via regra, não ter uma definição muito exata e um horizonte a se traçar, isso termina causando um colapso geral desse sistema, que é o que eu vejo que é um colapso. Se não tiver uma grande reunião, um grande manifesto, uma grande conversa, uma decisão e dizer “isso é assim, isso é assim, isso é assim”, o sistema vai colapsar com o tempo.

NAIR HELOISA BICALHO DE SOUSA: A distribuição do trabalho através de plataformas digitais pretende isolar os trabalhadores, tirando o espaço físico de trabalho que sempre foi a sua mais importante base organizativa. Em muitos lugares, na Europa principalmente, esses trabalhadores, porque são trabalhadores e não empreendedores, desenvolveram estratégias, pontos de encontro, redes de comunicação que os mantiveram em contato, para estabelecerem formas de organização e de luta. Com toda a fragmentação que recai sob esses trabalhadores, a greve ainda é o horizonte forte de luta da classe. Há exemplos de greves bem sucedidas nesse campo. Qual é a sua experiência nesse processo (greve por exemplo, se já participou de alguma) e o que identificou como núcleo duro dessa forma de luta, enquanto reconhecimento, agenda de reivindicações, ganhos de proteção e de remuneração?

Bom, primeiro de tudo, lutar não é crime, né. É até um direito constitucional você lutar por seus direitos, né. E, aqui, em Pernambuco, a gente teve, não digo greve, porque, infelizmente, se a gente parar, a gente também não ganha o pão. Mas a gente teve duas grandes paralisações, que a MAPE fez, que é o Movimento dos Motoristas e de Entregadores de Aplicativos de Pernambuco, né, que é a MAPE, que é a qual eu sou um dos coordenadores. E a gente fez essa grande paralisação. E a gente conseguiu, através de duas grandes paralisações, que a gente fez aqui, em Pernambuco, né, pela MAPE, a gente conseguiu fazer com que o aplicativo entendesse, né, que ele precisa ouvir o motorista, porque, em via de regra, quem é a engrenagem principal desse sistema, que é aplicativo, seja ele entregador ou motorista, é o motorista e o entregador. Porque, se tiver o aplicativo e tiver o cliente e não tiver quem entregue ou quem pegue, no embarque e desembarque, não vai ter sistema. Então, o aplicativo conseguiu entender, naquele momento, que precisava escutar, ouvir os motoristas e entregadores. E aqui a gente conseguiu um pouco de reajuste, mínimo, mas conseguimos, entendeu? A gente conseguiu que o aplicativo nos desse direito de defesa, porque existia casos de exclusão e bloqueio de motoristas sem ter legítima defesa. “Ah, você tá bloqueado.” Por quê? Não dizia o porquê. A gente também não tinha como se defender. Então, eu não tenho como me defender de uma coisa que eu não sei. Mas, assim, tá excluído, acabou. Pronto, acabou-se, entendeu? Então, assim, a greve, ela é primordial. O direito de lutar é primordial. Lutar não é crime. A gente precisa lutar, né. E a gente sempre tá conversando com os motoristas, conversando com os entregadores, né, pra saber como é que tá o sistema, como é que tá andando, se realmente a gente precisa fazer o movimento, se não precisa fazer, né. E, como a professora perguntou, a greve é fundamental. É fundamental pra o sistema entender que a gente precisa de melhorias. Porque o aplicativo, ele só tá ali. Você solicita uma viagem, a gente pega, faz o serviço de embarque, desembarque e acabou, entendeu? E lá no… o aplicativo não tá no dia a dia do motorista, não tá no dia a dia do passageiro. Então, ele precisa entender que tem que escutar os motoristas e entregadores. Então, pra ele entender isso, só através da greve. Mas é porque, infelizmente, dentro da classe, que é os motoristas e os entregadores, existem algumas pessoas que se aproveitam desse momento. E, se você não tem uma força de trabalho, a demanda vai aumentar. Então, quando a demanda aumenta, o valor aumenta. Então, os demais que não querem aderir a greve veem que o valor da tarifa de uma corrida que era R$ 5,00 foi pra 19, pra 20, ele aproveita pra sair das ruas, né, digamos assim, não fazer parte da greve, que a gente tá lutando pelos direitos deles também, mas eles se aproveitam disso. A gente chama de aproveitadores, que é aquele que não se une à causa e espera a oportunidade, uma tarifa demandar muito alta, pra ele ir pra rua, entendeu? Isso aí o aplicativo vê e diz: “Ah, não. Então, não é greve não. Fulano tá, cicrano tá, beltrano não tá.” Mas, assim, a greve, ela é fundamental para fortalecimento tanto dos trabalhadores como para o fortalecimento também da causa. E lutar não é crime. (…) É o que eu te falei. O aplicativo, ele entendeu, porque o principal… por que a gente fez a paralisação, uma semigreve? Aumento de tarifa. Esse foi o norte principal. Só que, dentro desse norte principal, a gente precisava de mais seguranças, precisava que o aplicativo fizesse, digamos assim, uma triagem em seus passageiros, verificasse suas contas, entendeu? A gente teve mais segurança, verificação de passageiros, um pouco de reajuste de tarifa, um pouco de diminuição nos ganhos dos aplicativos, mas não chegou a tanto. A prova é tanta que, em muitas cidades, os motoristas estão se unindo e estão criando o seu próprio aplicativo. Existem hoje cidades que têm aplicativos criados pelos motoristas que pagam 95% do valor da corrida ao motorista e 5% fica pra manutenção do aplicativo, entendeu? Então, eu acho que o núcleo básico disso aí, o norte principal que a gente tem, é o reajuste de tarifas. Mas só que, além disso, veio mais segurança, direito de defesa do motorista, ouvir mais o motorista, tanto motorista como entregador, porque a gente é uma causa só. A gente se uniu em uma carreata só. Então, foi isso. A gente tinha um norte, mas esse norte tinha várias diretrizes. E a gente conseguiu fazer essas diretrizes acontecerem.

RODRIGO CARELLI: Pela nossa lei, um empregado pode ter horário de trabalho fixo ou variável, remuneração fixa ou variável e ter mais de um empregador. Mantendo a flexibilidade que você tem, você gostaria de ser reconhecida/o como empregada/o da plataforma para a qual você trabalha? Você gostaria de ter direitos trabalhistas? 

Sim, gostaria sim. Não só eu como muitos motoristas e entregadores que a gente conversa, né. A gente precisa ter um reconhecimento. Não é que a gente gostaria. A gente precisa ter um reconhecimento. Porque, assim, em algumas regulamentações de algumas cidades, é necessário que a gente pague INSS, né, como autônomo. É necessário ter uma idade veicular. É necessário que a gente exerça atividade remunerada na carteira de motorista. Então, se tudo isso a gente tem que ter, por que não ter o reconhecimento na plataforma? “Ah, a plataforma vai reconhecer o motorista. Vai ter direitos trabalhistas. Vai ter horário.” Porque, em algumas plataformas, você só pode trabalhar 12 horas por dia. Ela tá se blindando de um “ah, o cara trabalhou 12 horas e 1 minuto”, de ter um direito trabalhista? Não. Isso, assim, seria uma forma de acabar, tanto com o estresse de tá processando plataforma, processando plataforma, é a plataforma chegar e dizer, assim, pro motorista: “Eu sou a plataforma tal. Tenho esse direito aqui pra te oferecer, certo?” Aí a turma diz: “Não, mas, assim, a gente tem a flexibilidade de ligar e desligar o aplicativo quando quer.” Sim, mas, se a gente liga e desliga quando quer, a gente é punido por isso. Se você passar muito tempo sem rodar, sua taxa de aceitação cai. Se você recusa muita corrida, sua taxa de recusa aumenta. Você fica sem receber corridas. Você é obrigado a aceitar alguns destinos que você sabe que é perigoso. Qual a segurança que a gente tem? Nenhuma. “Ah, tá acompanhando a corrida em tempo real!” Tá acompanhando em tempo real, mas, quando chegar uma autoridade para averiguar o que aconteceu, já vai tá acontecido, entendeu? Então, é necessário um reconhecimento. É necessário um reconhecimento por parte das plataformas para os entregadores e para os motoristas de aplicativos. É fundamental esse reconhecimento.

SAYONARA GRILLO: Poderia nos contar como é ser entregadora ou entregador de produtos comprados por uma plataforma, relatar como é sua vida e seu trabalho? Como é sua vivência concreta na recepção de produtos e serviços com os fornecedores e na entrega de mercadorias para pessoas? Você recebe gorjetas? Seu trabalho é atravessado por seu gênero? Existem desafios específicos na singularidade do trabalho, considerando o seu gênero?

Bom, eu dei uma entrevista um tempo atrás, logo quando começou a pandemia, né. E, assim, o que movimentou grande parte do país foi o serviço por entrega por aplicativo, tá. E não só entrega de moto, de bicicleta ou de carro, né, porque existe uma alta demanda e não ter corrida, porque estava todo mundo isolado, todo mundo de lockdown, mas solicitavam pra gente entregar de carro, tá. E, assim, o que fez a economia do país realmente − um dos fatores, né − não ir pra baixo, não ir pro buraco, foi o serviço de entrega. A gente foi peça fundamental, a gente foi ponta de lança disso aí. Porque, se não fosse os entregadores, a gente sofreria com isso, tá. E existe, sim, uma grande discriminação por questão de pessoas trans ir trabalhar com entrega, mulheres, negros. Existe uma perseguição. A gente vê casos direto do entregador ser negro e chegar pra entregar e a pessoa discriminar, não querer receber, entendeu? Existe todo um contexto, toda essa cultura arcaica, né. E, ainda, tem essa questão de racismo, seja ele por gênero, por cor, por raça. E a questão de gorjetas? É muito difícil você receber uma gorjeta. Muito difícil. Eu, pessoalmente, raramente recebo uma gorjeta, tá. Recebo sim. Eu não tenho o troco. O cara não tem 0,10 centavos pra dar de troco, 0,20 centavos. O cara: “não, tudo bem. Deixa pra lá.” Mas uma gorjeta de, sei lá, R$5,00, R$10,00, não existe isso. É muito raro, né. Eu lembro uma ou duas gorjetas grandes que eu ganhei, mas, fora isso, eu não recebo, tá. A questão é centavos, que a gente não tem pra dar de troco. O cliente: “não, tudo bem. Sem problemas. Não tem estresse.” Mas, assim, existe todo esse contexto, né. A gente passa todos os dias por dificuldades, por desafios, né. O próprio aplicativo, como eu te falei nas perguntas anteriores, eles lançam uma proposta, lançam uma demanda, lançam uma meta pra bater, um desafio, a gente se mata de trabalhar e a gente não consegue bater esse desafio. Porque, como eu te falei, existe um colapso, que a demanda tá muito alta, a mão de obra tá muito alta, tá, e não tem trabalho. Então, começa a baratear. Uma corrida que era dez, hoje, é cinco. Uma entrega que era sete, hoje, é dois e cinquenta. “Ah, porque o cliente ganhou uma promoção!” Ah, beleza, o cliente ganhou uma promoção, mas a gente recebe lá no aplicativo. Mas o aplicativo já desconta, tipo, sei lá, uma câmera de segurança ou um monitoramento, que não era você, era pro aplicativo ganhar o mínimo possível, porque quem tá fazendo trabalho na rua é a gente. O aplicativo só faz selecionar o cliente. Seleciona o aplicativo, o aplicativo nos seleciona e manda aquela demanda de trabalho pra gente. Então, existe todo esse contexto de discriminação, de falta de gorjeta, né, de preconceitos, seja ele cor, raça ou gênero, né. E também, como eu te falei, a gente foi e segurou. Fez a economia rodar. Não só por aplicativos, mas os entregadores, os motoboys, serviços de coleta de exame médico, motoboy que trabalha com entrega de medicação. Tem o que vai levar vacina. Então, assim, foi todo um processo e acho que a gente foi ponta de lança nesse papel, entendeu? A gente é peça importante disso aí.

CONSIDERAÇÕES FINAIS DE ANDRÉ ARRUDA (LENINE): Primeiro, eu quero agradecer pela oportunidade, né. Tá falando um pouco sobre essa correria, né, por ser coordenador do Movimento de Motoristas e Entregadores de Aplicativos de Pernambuco, né. E queria dizer o seguinte, gente: “Lutar não é crime, tá. Lutar não é crime.” Eu sei que não só entregadores e motoristas vão tá escutando essa entrevista, mas, assim, uma grande população. Mas eu quero dizer pra vocês o seguinte: Quando você solicitar uma entrega ou solicitar uma corrida, uma viagem, não deixe que o motorista fique esperando, não trate o motorista mal, entendeu? Seja cortês. Assim como os motoristas também tratem seus passageiros bem. Se tiver com algum problema, para o carro, dá uma refletida na vida. O que eu quero deixar, de verdade, para as pessoas é o seguinte:  A gente tá trabalhando, nas plataformas, por necessidade, porque a gente precisa. A gente somos pais e mães de família. A gente precisa pagar as nossas contas, entendeu. Mas que o pessoal tenha um pouco de paciência. A gente sabe que tá muito difícil o transporte por aplicativo, a entrega por aplicativo. Os passageiros reclamando de demora: “Ah, por que tá demorando? Passei quarenta minutos pra chegar uma entrega. Passei uma hora esperando um carro.” E, assim, gente, sejam cortês um com outro. O mundo já anda muito cheio de ódio. Eu acho que a gente precisa ter um pouco mais de paciência. Ter um pouco mais de amor no coração, entendeu? Eu acho que a gente tem que tratar o outro como a gente queria ser tratado. Então, se eu quero ser tratado de uma determinada forma, eu vou tratar aquele outro, a pessoa, de uma determinada forma. Então, é isso, dizer para todo mundo que lutar não é crime, que, se a gente fizer uma paralisação, uma passeata, uma greve, a população entenda. Hoje o transporte por aplicativo, a entrega por aplicativo, ele é fundamental em todas as cidades que existe. É fundamental. Então, é isso que eu peço pra todo mundo. Tenham paciência, tenham calma. Coloquem mais amor no coração e tratem o próximo como você gostaria de ser tratado. Eu tenho certeza que vai ser recíproco. E você vai ser tratado da forma que queria.

Participantes:

Danieli C. Balbi: Professora Substituta na Escola de Comunicação Social da UFRJ (2019/2021). Assessora Parlamentar da Comissão de promoção de Direitos das Mulheres da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) desde 2019.

Grijalbo Coutinho:Desembargador do TRT da 10ª Região. Membro da AJD e da AAJ. Presidente da ANAMATRA (2003/2005), da AMATRA-10 (1999/2001 e 2001/2003) e da ALJT (2006/2008).

Ivan Garcia: Professor de Direito do Trabalho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Advogado.

Marcelise Azevedo: Advogada. Membra da ABJD.

Marildo Menegat: Professor do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NEPP-DH/UFRJ).

Nair Heloisa Bicalho de Sousa:Coordenadora do Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos da UnB. Docente-Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania CEAM/UnB.

Rodrigo Carelli: Professor de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ). Procurador do Trabalho (MPT1-RJ).

Sayonara Grillo:Professora de Direito do Trabalho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ). Desembargadora do TRT da 1ª Região. Membra da AJD.


[1] Idealizadora e coordenadora do projeto “Trabalhadores de Apps em Cena”. Professora na pós-graduação lato sensu em Direito do Trabalho e Previdenciário (CEPED/UERJ). Professora Substituta de Direito do Trabalho na UERJ (2017/2019). Autora do livro A precariedade politicamente induzida e o empreendedor de si mesmo no caso Uber: Sob uma perspectiva de diálogo entre Butler, Dardot e Laval. Advogada.

[2] BARBOSA, Daniele. A precariedade politicamente induzida e o empreendedor de si mesmo no caso Uber: Sob uma perspectiva de diálogo entre Butler, Dardot e Laval. RJ: Lumen Juris, 2020.

[3] BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. 1ª ed. RJ: Civilização Brasileira, 2018, p. 14.

[4] BARBOSA, op. cit., p. 100.

[5] https://jornalggn.com.br/destaque-secundario/trabalhadores-de-apps-em-cena-por-daniele-barbosa/

[6] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo– ensaio sobre a sociedade neoliberal. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 396.

[7] Ibidem.

Redação

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