Tarifa-zero e o modelo de mobilidade urbana II, por Luiz Alberto Melchert

Quando Luíza Erundina assumiu a prefeitura de São Paulo, uma de suas primeiras medidas foi revitalizar a CMTC, com material sucateado

Tarifa-zero e o modelo de mobilidade urbana II

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Se o mercado fosse capaz de resolver todas as mazelas sociais, as guerras teriam ficado para trás, extintas a partir do momento em que Adam Smith descobriu a mão invisível. Será que descobrir é o termo? Afinal, ela continuou  invisível. O fato é que a teoria econômica ainda vive discussões tão férteis quanto a dos químicos que acreditavam no flogisto com sua massa negativa, contra os que defendiam a existência do oxigênio. Chega a ser pior que defender a teoria dos miasmas depois de descobertos os microrganismos. Defender a privatização de serviços públicos chega a ser contraditório em essência, visto que sua função é a sociedade prover o acesso aos direitos básicos do Homem, inclusive, o de ir e vir.

Quando Luíza Erundina assumiu a prefeitura de São Paulo, uma de suas primeiras medidas foi revitalizar a CMTC, Cia Municipal de Transporte Coletivo, cujo material rodante estava sucateado. Foi um mutirão de funcionários da Mercedes Benz, marca que compunha a quase totalidade da frota, que pôs os carros a rodar novamente e em excelentes condições. O estado deplorável, ao contrário do que se divulgava, não vinha de se tratar de empresa pública, mas de ela ser um serviço complementar da iniciativa privada. É que os empresários não queriam atender a periferia, onde o calçamento era precário, induzindo à intensificação dos reparos, o que fazia subir significativamente o custo do quilômetro rodado. Resumindo, as empresas ficavam com o filé e a CMTC com a carne de pescoço. Foi quando a prefeita passou a pagar o serviço por quilômetro rodado. Ela  já tinha em mente a tarifa-zero.

Aí veio a costumeira enxurrada de fake News. A mais comum entre as bobagens era que os ônibus ficavam sobre cavaletes, em quinta marcha, para o odômetro girar sem sair do lugar. Na verdade, a remuneração era feita pelos tickets de viagem que eram fornecidos todas as vezes que um veículo completava um ciclo, cuja distância percorrida era fixa. Assim, se a linha tivesse 50 km e o valor fosse de R$10,00/km, cada viagem valeria R$500,00, simples assim. Cada modelo tinha sua remuneração baseada no consumo de combustível, no número de rodas e capacidade de passageiros, entre outros fatores. Isso induzia as empresas a maximizar o número de carros rodando, o que era limitado em contrato.

O serviço melhorou sobremaneira, seja pela presteza da frota, seja pela regularidade do intervalo entre carros, seja pelo fato de todos viajarem sentados, como em qualquer país desenvolvido. Afinal, transporte coletivo não é para rico ou para pobre, é para o povo. Também foi o tempo de menor custo de manutenção da frota porque, sem a superlotação, o peso diminuiu e com isso o desgaste de suspensão, pneus freios e, principalmente, combustível. Para otimizar a logística, era preciso afastar o fantasma das baldeações, ou seja, fazer com que a troca de linhas no decorrer do percurso não onerasse o passageiro. Daí a necessidade da tarifa-zero. Afinal, cobrar uma passagem por roleta não coaduna com o pagamento do carro por quilômetro.

O anúncio da possibilidade de implantação da tarifa-zero ensejou outra onda de asneiras como: “agora é que o povo não trabalha mais, vai ficar passeando de ônibus o dia todo”. Dizia-se isso de boca cheia, como se não pagar pela condução fosse suficiente para sustentar a família sem trabalhar.

Mas o mandato terminou e Erundina não foi reeleita. Maluf assumiu em 1993 e privatizou a CMTC, transformando-a na SP-Trans. Os carros recém reformados foram vendidos a preços vis para os empresários e o pagamento voltou a ser por passageiro transportado com todas as mazelas descritas no capítulo anterior. Os ônibus voltaram a ser lotados, a periferia perdeu a frequência e o preço subiu. Aí veio a cereja do bolo. Maluf decretou que a idade do veiculo não seria mais medida pelo chassis, mas pela carroceria. Foi quando São Paulo foi inundado por ônibus obsoletos em suas cidades de origem. Eram carros com chapas de todos os estados, inclusive do amazonas a serem reencarroçados aqui e postos para rodar por mais dez anos, sem contar com os ônibus montados sobre chassis de caminhão com motor na frente e uma altura que tornava impossível o acesso de idosos ou pessoas com deficiência.

As distorções foram-se somando a ponto de criar um mercado para o transporte clandestino. No início, ele só aceitava pagamento em dinheiro, deixando o vale-transporte de fora, até que o crime organizado encontrou no desconto dos vales uma forma de lavar dinheiro, passando assumindo a atividade indo até peruas decrépitas pilotadas por motoristas sem habilitação. Era acidente atrás de acidente, até que Martha Suplicy  assumiu a prefeitura, mas isso é outra história.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de shttps://jornalggn.com.br/transporte/tarifa-zero-e-o-modelo-de-mobilidade-urbana-i-por-luiz-melchert/eu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

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