A Raposa, as galinhas e o 8 de janeiro, por Luiz Alberto Melchert

Constituinte num ambiente como aquele foi inconveniente, com inconveniência que foi elevada ao quadrado ao entregar a tarefa ao Congresso.

A Raposa, as galinhas e o 8 de janeiro

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

A Constituição Federal de 1988, também conhecida por Constituição Cidadã foi fruto de um momento político que mereceu a alcunha de estelionato eleitoral, o Plano Cruzado. Não há quem conte com mais de cinquenta anos e não se lembre de que, no dia 16 de novembro de 1986, todas as tabelas tenham sido revogadas e os depósitos compulsórios incorporados aos preços de vários bens, especialmente dos automóveis. Convocar uma constituinte num ambiente como aquele já era inconveniente, com inconveniência que foi elevada ao quadrado ao entregar a tarefa ao Congresso. Esperar que não legislasse em causa própria era mais que aguardar que – não o Mar Vermelho – o Mediterrâneo se abrisse para um ovo passar.

O resultado de a raposa tomando conta do galinheiro foi um monstrengo que gerou cento e trinta e uma emendas, mais da metade do número de artigos que ela tinha originalmente. Enumerar as lambanças constitucionais daria um livro com vários tomos. Aqui vão dois, cujo resultado foi o 8 de janeiro.

Baixar o mínimo de votos de dois terços da CF67 para os três quintos da CF88 para aprovação de emendas. Ficou fácil demais alterar a Constituição e esse recurso acaba sendo usado para evitar a possibilidade de veto presidencial. Pode-se dizer que, mais que cidadã, a CF88 é autofágica. Duro é, com uma proporção dessas, ainda se falar em “segurança jurídica”. As PEC do primeiro governo de FHC foram as que mais descaracterizaram o Estado brasileiro, a começar pelo vilipêndio ao sistema previdenciário e a terminar pela PEC da reeleição. Não fora a ânsia por ser reeleito, e Bolsonaro não se teria empenhado, de formas tão esdrúxulas, em impor a si próprio para um segundo mandato. Claro que alguns cientistas políticos, bem como alguns comentaristas muito pouco científicos vão dizer que, se não fossem as reeleições, os presidentes mais mal intencionados tentariam o golpe ainda no primeiro turno. Tudo indica que não, visto que os candidatos à sucessão não permitiriam ser jogados para escanteio.

Transformar o Distrito Federal em estado talvez tenha sido o maior aliado à tentativa de golpe deste ano. Na CF 67, o Distrito Federal, como o nome diz era independente das leis pertinentes aos estados. A arrecadação vinha de todo o comércio de trigo ser lançado como oriundo do DF, garantindo a verba para sustentar todo o aparato da capital da República. O governador era nomeado e havia somente uma câmara de vereadores para deliberar sobre assuntos eminentemente locais, como se cães poderiam ou não frequentar parques, horário de funcionamento de estabelecimentos e coisas assim. O governador era indicado pelo presidente eleito antes mesmo da posse para que, quando ela ocorresse, o novo mandatário já encontrasse um ambiente seguro e controlado por ele. A CF88 adotar representação do DF no Congresso, bem como promover eleições para o seu governador, permitiu – como de fato aconteceu – que o mandatário local fosse antagônico ao presidente, desembocando nos fatos vergonhosos de 8 de janeiro. Como é de conhecimento público, tudo foi facilitado pela atitude do secretário de segurança nomeado por um governador radicalmente antagônico ao presidente eleito.

Entenda-se que, provavelmente, nem mesmo o episódio de 12 de dezembro teria ocorrido, pois, sendo o DF governado por alguém nomeado pelo presidente, a responsabilidade recairia diretamente sobre o mandatário. Em outras palavras, o presidente não se poderia esquivar da responsabilidade direta pela frouxidão da polícia distrital naquele quebra-quebra e, principalmente, na tentativa de invasão à sede da Polícia Federal.

Durante a vigência da constituinte, o que mais se ouvia era o termo “entulho autoritário”, que foi substituído pelo entulho ideológico dos últimos sete anos.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

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