Tarifa-zero e o modelo de mobilidade urbana I, por Luiz Alberto Melchert

A manutenção da cobrança pelo transporte público, bem como da escassez em fins de semana e feriados, tem motivadores políticos

Fabio Rodrigues-Pozzebom – Agência Brasil

Tarifa-zero e o modelo de mobilidade urbana I

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Quando minha sobrinha veio do Rio de Janeiro para cursar a USP, ela me disse “Em São Paulo, o pobre não tem direito de se divertir”. Ela tem razão. Aos sábados, os ônibus são reduzidos pela metade e, aos domingos e feriados, seu número cai para um quarto, sendo que algumas linhas sequer funcionam. Restava ao morador da periferia ir ao bar mais próximo e encher a cara de cachaça, transformando a vida da família num inferno. Restava porque há a alternativa de ir ao culto, facilitando a doutrinação política dos fieis. Passear? Jamais! Praticar esportes? Só se ainda restar um campinho na várzea, o que se está tornando tão raro que o próprio futebol está em decadência no país. Para um morador do Grajaú cobrir os 40 km que o separam de Guarulhos, onde – suponhamos – vive sua mãe, é uma saga de, pelo menos cinco horas num domingo.

A ideia de que somente trabalhadores, que têm vale-transporte; estudantes, que pagam meia, e idosos, que não pagam a passagem, tomam ônibus esconde a terrível realidade de que o transporte público não serve o povo, mas aos patrões, na medida em que o vale garante que estes não faltem por falta de verba para se locomover.

Depois de o município de Santo André SP anunciar a tarifa-zero para o transporte público, Ricardo Nunes, prefeito de São Paulo, acenou com a mesma possibilidade. Provavelmente, seus motivos sejam eleitoreiros, visto que ele corre pela reeleição em 2024. Possível, indubitavelmente isso é, mas será que é viável? A despeito da vontade de este autor ver o transporte público gratuito para garantir o direito de ir e vir, há que se considerarem as questões técnicas. Elas são decorrentes do modelo contratado por vinte anos na administração de Dória. Entre os técnicos em mobilidade urbana, a licitação de 2018 foi apelidada de recontratação, visto que, essencialmente, nada mudou em relação ao contrato anterior. Aliás, a vigência do anterior terminara em 2012, dez anos depois de Martha Suplicy ter implantado o bilhete único. Como a intenção de Haddad era de impedir a formação de cartel,  municipalizando as garagens, as negociações foram-se prorrogando e o sistema funcionando precariamente sob infinitas liminares que, inclusive, mantinham carros antediluvianos rodando impunemente. A epopeia só terminou com João Dória num contrato em que qualquer coisa poderia ser feita, desde que não se mudasse nada.

As linhas permaneceram as mesmas, os carros inalterados e só as empresas mudaram de nome e mesclaram-se persistindo o mesmo cartel.

O pagamento, que fora alterado para quilômetro rodado nos tempos da Martha (2001-2004), privilegiando as baldeações para otimizar o trajeto, voltou a ser pago por passageiro na gestão de José Serra (2005-2009). Voltou-se a induzir a superlotação para maximizar a lucratividade. Em suma, o modelo logístico continuou tão irracional quanto em décadas passadas, com carros superdimensionados para diluir os custos com a tripulação, cujas horas-extras excedem a jornada normal. As linhas continuaram verdadeiros caminhos de rato para maximizar o IPK (Índice de Passageiros por quilômetro). É que o passageiro que toma um ônibus para ir de final a final paga o mesmo que outro que o toma para andar dois quarteirões, até o próximo ponto. Claro que o bilhete único mescla pagamento por passageiro com uma remuneração por quilômetro rodado e quem paga a diferença é a prefeitura.

Foi o fato de o transporte público não ser gratuito que ensejou as primeiras manifestações de rua em 2013 em São Paulo. Recordemos que o chamariz foi a proposta de aumento da passagem de R$3,00 para R$3,20. A proposta de reajuste motivou a convocação para os blackboks, organizados por movimentos como MBL e Endireita Brasil, irem às ruas num movimento mais tarde chamado de “ucranização”. O bordão seguinte era “Não é pelos vinte centavos”. Se o transporte público fosse gratuito, os mentores da extrema direita teriam de encontrar outro motivo para levar o povo às ruas numa clara manipulação política com endereço certo.

A manutenção da cobrança pelo transporte público, bem como da escassez em fins de semana e feriados, tem motivadores políticos que excedem os interesses dos comerciantes. Eles vão da proliferação dos cultos à manutenção do poder do crime organizado que, por disfarce de benemerência, fornece transporte alternativo para os eventos de seu interesse.

A tão sonhada tarifa-zero deve ser precedida por mudanças no modelo logístico que serão discutidas no próximo capítulo.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

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