No dia 14/05/2020 o vice-presidente da República General Antonio Hamilton Martins Mourão publicou no jornal O Estado de São Paulo (um dia após o veículo de imprensa conquistar no STF a exposição dos exames do presidente para Covid-19) um sugestivo pronunciamento intitulado “Limites e Responsabilidades” [1]. No mesmo, aponta quatro razões do “estrago institucional” que “está levando o país ao Caos”. O presente artigo tem como objetivo consolidar a compreensão do significado mais profundo da nova declaração de Mourão, avaliando a degradação do regime democrático e a aproximação do projeto da nova intervenção militar no Brasil. Para tanto, promove uma síntese de diversas análises tecidas até então sobre o tema, inclusive apontando incomuns convergências de analistas tanto de direita quanto de esquerda — o que por si só demonstra que tal preocupação é vislumbrada, ao mesmo tempo, por ambos os lados do espectro político. A princípio, passa a pontuar uma a uma das razões (ou, melhor dizendo, culpados) pelo “estrago institucional” e “caos nacional” apontados pelo general em sua recente declaração — dando ao tema toda a minúcia e seriedade que merece.
1. A Polarização
A imprensa é unilateral e persegue o governo
Mourão inicia sua exposição afirmando que “a polarização […] tomou conta da nossa sociedade”. Trata-se de ponto pacífico, pelo menos, desde 2016. Todavia, Mourão não atribui ao presidente da república qualquer responsabilidade nesse processo, bem como não critica e nem mesmo cita o nome ‘Bolsonaro’ em qualquer parte do documento. É forçoso mesmo aos seus defensores caracterizar Bolsonaro como um governo de conflito permanente, que se sustenta, justamente, no populismo polarizador. É a guerra permanente contra as infindáveis conspirações marxistas e chinesas, contra a pervasiva ideologia de gênero, contra os corruptos, a eterna batalha contra o atordoado Partido dos Trabalhadores; tudo isso e muito mais polarizações que justamente sustentam o governo, mantendo assim sua base social em permanente mobilização. Se Mourão atribuísse ao próprio governo algum grau de responsabilidade pela radicalização da polarização que está “levando o país ao caos”, estaria efetivamente acenando ao Centrão com uma mensagem de conciliação nacional e poderia estar flertando com a instauração de um impeachment mediante ação do Congresso Nacional: apostando então numa saída institucional nos moldes republicanos.
Todavia, Mourão tem outro culpado para o agravamento da polarização nacional: a imprensa. A seu ver:
A imprensa, a grande instituição da opinião, precisa rever seus procedimentos nesta calamidade que vivemos. Opiniões distintas, contrárias e favoráveis ao governo, tanto sobre o isolamento como a retomada da economia, enfim, sobre o enfrentamento da crise, devem ter o mesmo espaço nos principais veículos de comunicação
Mourão aqui tanto atribui à imprensa total responsabilidade sobre o agravamento da polarização política, bem como trata de expor sua peculiar noção do que seja uma ‘imprensa democrática’. A seu ver, a imprensa brasileira atribui “espaços diferentes” a opiniões contrárias e favoráveis ao Governo, deixando o governo sem voz, propiciando então “descrédito e reação”, bem como a “deterioração do ambiente de convivência e tolerância que deve vigorar numa democracia”. Ora, Mourão fala como se muitas vezes não fosse o próprio Bolsonaro que se nega a falar com a imprensa, tratando a mesma com descaso e escárnio; como se seus apoiadores não agredissem jornalistas com conivência, senão do governo, inegavelmente do Presidente; como se a imprensa não se esforçasse para publicar na íntegra as contraditórias e controversas declarações presidenciais, bem como suas recorrentes reviravoltas.
O que Mourão enxerga como dar “o mesmo espaço” para as opiniões “contrárias e favoráveis ao governo” só pode ser satisfatoriamente interpretado como uma queixa contra uma imprensa que, a seu ver, sempre estaria perseguindo o governo e teimando em não o compreender. Sua solução é tanto original quanto inaplicável. É como se à imprensa coubesse repercutir as teses dos “caixões vazios” e dos governadores corruptos que inflam as estatísticas oficiais (inclusive vale ressaltar, em um outro ponto do texto, Mourão queixa-se que “continuamos entregues a estatísticas seletivas”) tanto quanto os discursos cientificamente respaldados e sustentados em todo o resto do globo acerca da eficácia das medidas de isolamento social, quarentena e lockdown. Como se à imprensa coubesse reafirmar a tese de que a cloroquina é a cura, com o mesmo peso que divulga as pesquisas médicas que apontam que a cloroquina não tem qualquer eficácia comprovada, e pior, pode elevar o índice de letalidade da doença, especialmente de pacientes integrantes de grupos de risco. Como bem ilustrou Ricardo Rangel na Revista Veja, é como se a imprensa precisasse falar de Adão e Eva sempre que menciona a Teoria da Evolução [2].
O que Mourão não admite é que Bolsonaro tenha conseguido a proeza de tornar sua inimiga praticamente toda a imprensa nacional, o que foi fruto de sua estratégia política de polarização, em que é comum atribuir à jornais como Estadão e Folha de São Paulo, ou mesmo à Rede Globo, a igual alcunha de “comunistas” — o que seria risível, se não fosse compreensível que ‘comunistas’ são todos aqueles que discordam do governo. Seu idealismo da ‘isonomia dos espaços’, de certa forma, já é aplicado, afinal: para a imprensa falar de Bolsonaro, é preciso mencioná-lo. Por muitas vezes na própria declaração na íntegra do presidente já está contida todo o absurdo, de sorte que para criticar o governo basta, por vezes, apenas, expor sem cortes as controversas declarações do presidente.
No fim e ao cabo, o que Mourão deseja é uma imprensa que respalde o discurso oficial. E o que Mourão transparece é que não aceita o fato de a maioria absoluta da imprensa nacional estar em guerra contra Bolsonaro: uma guerra que o próprio tratou de criar e alimentar continuamente. Em suma, Mourão sutilmente revela que sua concepção de liberdade de imprensa é menos alinhada à democracia do que àquela concepção sustentada durante a ditadura militar, período e regime que tanto exaltou em reiteradas ocasiões.
2. “A degradação do conhecimento político por quem deveria usá-lo de maneira responsável”
Fogo aberto contra os governadores, magistrados e legisladores
Em seu segundo ponto, Mourão ataca os governadores, o Poder Judiciário e o Congresso Nacional. A seu ver, estes agentes políticos “esquecem” que o Brasil é uma Federação, e não uma confederação. Ressoa aqui sua ideologia autoritária e centralizadora, que referencia com a opinião de um liberal americano de 1787. Sustenta que o governo nacional sempre será mais “sensato, sistemático e judicioso” do que quaisquer governos estaduais, pois apenas o governo nacional seria capaz de “somar esforços e concentrar os talentos de forma a solucionar os problemas de forma eficaz”.
Aparentemente distraído com as polêmicas norte-americanas do século XIX, Mourão mal percebe que, diante da maior catástrofe sanitária do país que já vitima praticamente 20 mil pessoas no Brasil, o governo federal nada mostrou de sensato, nem de sistemático. Ao contrário, demonstrou esforços apenas para minimizar a pandemia e não reúne em torno de si qualquer talento, a não ser, para não discordar com o vice-presidente, os próprios militares que ganham cada vez mais espaço no governo.
O Presidente da República, invés de coordenar esforços políticos para superar a crise do Coronavírus, que o Vice-Presidente trata de reconhecer logo nas primeiras linhas de seu artigo, concentrou esforços em minimizar a pandemia como uma “gripezinha”, para logo após afirmar que não teríamos mais de 800 mortes, para depois passar a um discurso irresponsável de atacar os governadores em seus legítimos esforços de decretar o isolamento social e defender acriticamente a retomada geral das atividades econômicas. A única coisa que Bolsonaro poderia ter feito de sua cadeira de Presidente da República seria buscar uma coordenação de esforços a nível federal e também junto aos Estados para enfrentar a pandemia do Coronavírus, que agora vem se mostrando como uma tragédia cada dia mais inegável. Para responder o vice-presidente, utilizamos aqui do artigo de resposta do teólogo cristão e conservador Guilherme de Carvalho, publicado na Gazeta do Povo no dia 15/05/2020. Em suma:
“Essa era a única coisa que Jair Messias Bolsonaro poderia e deveria fazer, da cadeira da presidência, mas não o fez. Acusando a oposição de espalhar o pânico, o homem deixou todos em pânico. Com sua atitude omissa, negacionista e conflituosa, a presidência da República, de modo sutil, provoca a desordem e a rebelião para em seguida denunciá-la cinicamente como autoritarismo, legitimando progressivamente o discurso radical da revolta popular contra os traidores da nação.” [3]
Vale ressaltar que transcrevemos aqui a opinião de um teólogo cristão e auto-intitulado conservador, e não de um ideólogo esquerdista, como Bolsonaro costuma taxar seus opositores.
3. A usurpação das prerrogativas do Poder Executivo
A separação de poderes é desrespeitada pelo Judiciário e pelos governadores
Em seu terceiro ponto, o vice-presidente condena o Legislativo e o Judiciário de usurparem as prerrogativas do Poder Executivo, utilizando para referenciar sua acusação o teórico também norte-americano James Madison. Mourão parece esquecer de que ao Judiciário compete sim controlar judicialmente os atos administrativos justamente para que eles estejam consonantes com os preceitos da Constituição da República, a mesma que institui a separação de poderes. Isto faz parte daquele mesmo Estado de Direito que Mourão cobrou em 2019, quando criticava a decisão do STF que impedia a prisão em Segunda Instância.
Utilizando a obra de 1899 do constitucionalista, agora brasileiro, Amaro Cavalcanti, acusa que “muitos Estados da Federação, ou não compreenderam bem o seu papel neste regime político, ou, então, têm procedido sem bastante boa fé”. Não é possível identificar exatamente contra o que Mourão se insurge: qual seria tal incompreensão ou má-fé por parte dos governadores. Todavia, considerando o conflito instaurado entre União e Estados por decorrência da própria postura omissa, negacionista e conflituosa do governo federal frente à pandemia, é plausível considerar que Mourão se refere aos decretos de isolamento social instituídos pelos Estados federados, a contragosto do ‘governo nacional’. Tais decretos foram referendados em recente decisão do STF, o que parece revelar perfeitamente esta queixa indeterminada que Mourão dirige ao Judiciário e aos Estados simultaneamente.
Apesar de Mourão não se declarar abertamente contra o isolamento social em seu artigo, o vice-presidente critica a “maneira desordenada como foram decretadas as medidas de isolamento social” (pergunta-se: poderiam ser coordenadas mediante expressa oposição da União?), o que conduziu a paralisação da economia do país e “desoriganização do sistema produtivo”, bem como “queda nas exportações brasileiras”. Aparentemente, não existe qualquer divergência entre Bolsonaro e Mourão sobre a necessidade da retomada das atividades econômicas, o que nos permite intuir que, se dependêssemos apenas deles, não estaríamos na casa das dezenas de milhares, mas sim de centenas de milhares de mortes. É inacreditável como para o governo federal a morte de centenas de milhares de brasileiros e brasileiras em poucos meses não poderia levar a um caos econômico muito maior do que as medidas de isolamento social ordenadas pelos Estados e orientadas pelas normativas da Organização Mundial de Saúde. Como se o Brasil estivesse numa ilha e toda a economia global não vivesse uma recessão generalizada por conta dessa mesma pandemia que agora assombra o país.
O que Mourão não quer perceber é que o controle judicial dos atos do Executivo Federal e a reafirmação dos Estados da Federação justamente ressalta a separação de poderes, invés de contrariá-la. Como Ricardo Rangel expôs em seu artigo na revista VEJA: “o que é irônico é que o vice-presidente se queixa dos demais Poderes quando eles usam os freios e contrapesos da democracia justamente para impedir o presidente mais autoritário desde a ditadura de violar o Estado de Direito” [2]. Queixando-se da margem republicana de poder que o Judiciário e os Estados Federados ainda exercem, o que Mourão transparece é sua ideologia centralizadora e autoritária, em que o Executivo Federal se sobrepõe a todos os demais poderes — típica da caserna e da nossa história política.
4. O prejuízo à imagem do Brasil no exterior
As personalidades relevantes de administrações passadas, inconformadas com o ‘governo democraticamente eleito’, são responsáveis por prejudicar a imagem do Brasil na comunidade internacional
No seu quarto e último ponto, Mourão culpa as personalidades políticas que, relevantes no passado, restaram “inconformadas” com o novo governo e por isso se dedicam a atacar a imagem brasileira na comunidade internacional. Desta vez, identificando o problema que tergiversa, Mourão afirma que essas personalidades
“usam seu prestígio para fazer apressadas ilações e apontar o País “como ameaça a si mesmo e aos demais na destruição da Amazônia e no agravamento do aquecimento global”, uma acusação leviana que, neste momento crítico, prejudica ainda mais o esforço do governo para enfrentar o desafio que se coloca ao Brasil naquela imensa região, que desconhecem e pela qual jamais fizeram algo de palpável.”.
Paulo Cannabrava Filho [4] aponta que Mourão se refere ao manifesto internacional em Defesa da Amazônia, o qual denuncia as políticas de incentivo ao desmatamento anti-índigenas, qualificando tal política do governo como “anti-ambientalismo pré-científico, irracional e entreguista do governo Bolsonaro” [5]. O manifesto é assinado por diversos ex-presidentes latino-americanos, ex-chanceleres, ex-ministros, deputados, senadores e pelo candidato à presidência derrotado Fernando Haddad.
Primeiramente, como aponta Ricardo Rangel na Veja, Mourão em seu quarto ponto confunde governo e país: “o governo não é o país, e criticar o governo pode, no máximo, prejudicar a imagem do governo. Já o governo, que pode, ele sim, prejudicar a imagem do país, já mostrou que, nesse campo, não precisa da ajuda de ninguém.”. [2] De fato, o manifesto nada mais fez do que dar repercussão política a um fato que já possuía por si só ampla repercussão midiática em todo mundo. Como aponta Thomas Traumann, também na Revista Veja: “se o vice quiser melhorar a imagem ambiental do Brasil poderia começar demitindo o ministro do meio ambiente.”. [6]
Mas o problema não é o aumento inegável do desmatamento, das queimadas, do garimpo ilegal e da ofensiva contra os indígenas. Afinal de contas, este expediente sempre foi comum nos governos militares. O problema, ao ver de Roberto Bueno, é “que isto seja denunciado na comunidade internacional, assim como também ocorreu durante a ditadura militar de 1964 quando os militares reclamavam das denúncias de tortura no Brasil que diversos ativistas realizavam no exterior.”[7] Afinal de contas, o problema nunca foram tais políticas: o problema é a própria existência das críticas — o que Mourão parece tolerar de muito mal-grado como, como sugere seu artigo, como uma irresponsabilidade que ultrapassa os limites do aceitável.
Preparando o terreno para a Intervenção Militar
O amadurecimento das condições e critérios estipulados pelo próprio Mourão para o golpe militar
O pós-doutor em Filosofia do Direito Roberto Bueno publicou no último 16/05 um artigo revelador e essencial no Jornal GGN intitulado “O ameaçador artigo de Mourão” [7], no qual promove uma análise de discurso do general Mourão ao longo de suas pontuais e incisivas intervenções no debate público brasileiro, com a mais recente sendo o artigo publicado no Estadão que já foi comentado de maneira minunciosa nas seções acima. O que mais interessa em seu artigo é perceber a linha de coerência e continuidade histórica do discurso de Mourão, em que reiteradas vezes pregou a necessidade novo golpe militar, bem como enumerou as condições para que essa intervenção venha a tomar forma.
Desde 2017, quando palestrou na Maçonaria (ordem a qual compõe) no dia 15 setembro daquele ano, Mourão revelou sua crença na conveniência de uma intervenção militar no país. Respondendo à pergunta de um dos presentes, que mencionava que atitude tomar frente à segunda denúncia recebida pelo Congresso Nacional contra Michel Temer, Mourão pregou o golpe militar como solução: “se os poderes não buscarem uma solução retirando da vida pública os elementos envolvido em todos os ilícitos” referindo-se talvez à Temer, talvez à Lula. Sobre o momento oportuno para assaltar o poder, afirma:
“qual é o momento para isto, não existe fórmula de bolo, não tem, não tem, nós temos uma terminologia militar que se chama “o Cabral”, né, uma vez que o Cabral descobriu o Brasil quem segue o Cabral descobre alguma coisa, então não tem Cabral, não existe Cabral de revolução , não existe Cabral de intervenção, nós temos planejamentos muito bem feitos, então no presente momento o que que nós vislumbramos, os poderes terão que buscar a solução, se não conseguirem, não é, chegará a hora que nós teremos que impor uma solução, e esta imposição, ela não será fácil, não é, ela trará problema, podem ter certeza disto” [7].
Em sua fala, também revelou que esta não era apenas sua opinião, mas a do próprio Alto Comando do Exército. Este fato não foi desmentido pelo então Comandante do Exército Brasileiro (5.11.2015–11.01.2019), General Eduardo Villas Bôas: questionado se Mourão seria punido por tais declarações, afirmou que tal assunto já fora “questão resolvida internamente” [8].
A retórica golpista reaparece nas eleições de 2018. Roberto Bueno relembra a entrevista de Mourão concedida à Globo News no dia 07 de setembro de 2018, na qual declarou, em suma:
“(a) já à época, em face da crise, o General admitia que se “os poderes” não chegassem a uma solução quanto a questão da corrupção, o Exército (e, percebamos, não as Forças Armadas!) terá de impor uma solução para pacificar a questão; (b) que uma vez no Governo, sim, uma intervenção militar (golpe de Estado) poderia ser realizada e que, © isto poderia ocorrer se “houvessem as condições para tanto”, entenda-se, de desequilíbrio e desordem interna; (d) e que esta intervenção militar poderia ocorrer segundo o conceito de “aproximações sucessivas”. Parece que o General Mourão desenhou claramente o que seria o cenário político e institucional do Brasil desde então. Estava concebido o projeto e era preciso apenas executá-lo […]
quando questionado sobre se uma vez triunfando nas eleições quais poderiam ser as medidas a adotar, o General Mourão desenhava cenário de “anarquia generalizada” como circunstância legitimadora para uma intervenção militar, vale dizer, para que fosse concretizado um golpe de Estado ou “autogolpe”. Perguntado pelos jornalistas que o entrevistavam quem seria o árbitro que estabeleceria o que configuraria a “anarquia”, o General Mourão respondeu que tratava-se de competência do “comandante”, o Presidente da República, Comandante-em-Chefe das Forças Armadas. E, afinal, qual a condição para tanto, como se desenharia, na prática, uma situação de anomia? A resposta foi taxativa: que grupos estivessem circulando armados pelas ruas” [7]
A “anarquia generalizada” que Mourão colocou como fator que legitimaria a intervenção militar foi caracterizada por acompanhar a condição de se encontrarem “grupos armados circulando pelas ruas”. Roberto Bueno aponta, certamente, que: “esta condição entendida como central para a deflagração da intervenção e golpe militar está sendo alimentada pelo Governo através de medidas jurídicas e também por ações políticas, pois assistimos como vieram sendo tomadas medidas para a facilitação de liberação da venda de armas, para a ampliação da venda de munições, mas também a vedação legal a persecução do caminho trilhado pelas munições vendidas e, finalmente, pelo olhar complacente reservado aos grupos armados acampados na Praça dos Três Poderes”. [7]
É ilustrativo que Mourão afirme, logo nas primeiras linhas do seu último artigo publicado no Estadão, que “a pandemia de covid-19 não é só uma questão de saúde: por seu alcance, sempre foi social; pelos seus efeitos, já se tornou econômica; e por suas consequências pode vir a ser de segurança. [1]” O aumento da miséria e agravamento extremo da polarização política, filhas da pandemia, juntamente com o estímulo governista ao armamento da população, certamente pode levar ao aumento expressivo da violência nas ruas, assumindo ela uma feição política ou não. Se a crise sanitária já está prestes a se tornar uma crise de segurança, parece seguro concluir que a condição dada pelo próprio Mourão para instaurar um novo regime militar no país está prestes a se realizar, de acordo com sua própria avaliação.
Outra condição apontada para a realização de seu intento golpista por Mourão se daria quando o Presidente da República, não sendo mais capaz de exercer sua autoridade, acionasse as Forças Armadas para resolver uma situação de “anarquia generalizada”. A base social do golpismo segue e manifestante firme e forte, todos os dias apresentando cartazes defendendo “intervenção militar” e o “novo AI-5” em Brasília, manifestações que sempre contam com a participação de Bolsonaro. O presidente, talvez iludido com as manifestações de sua base social que defendem “intervenção militar com Bolsonaro” pareceu confiante o suficiente para afirmar que “as Forças Armadas estão comigo”. Todavia, a reação contrária do general Fernando de Azevedo e Silva, afirmada através de nota oficial do Ministério da Defesa, veio esclarecer que “As Forças Armadas sempre estarão ao lado da Lei e da Ordem” [9]. Um verdadeiro balde de água fria na auto-confiança de Bolsonaro. Aparentemente, as Forças Armadas só estão consigo mesmas e reconhecem Bolsonaro mais como presidente do que como verdadeira liderança.
Neste sentido, discordamos da posição de Jeferson Miola, publicado no portal “Tribuna da Imprensa Livre” no último 17/05, visto que sustenta a tese de que as Forças Armadas estariam comprometidas no projeto de um golpe militar com Bolsonaro [10]. Apesar de Mourão em nenhum momento atacar o governo, também não usou seu artigo para defender Bolsonaro, nem sequer chega a mencionar seu nome para engrossar o caldo do bolsonarismo. Em verdade, a grande maioria das análises sustenta que a lealdade de Mourão não é a Bolsonaro, e sim às Forças Armadas. É a conclusão que chega, também, o cientista político e Doutor pela UERJ Christian Edward Cyril Lynch em artigo publicado no Jornal GGN:
“a lealdade dele, na verdade, não é a Bolsonaro, que sequer é citado. É aos generais conservadores do Planalto e do alto comando. É governista, sem ser bolsonarista. Mourão está lhes estendendo a solidariedade política e dizendo o que eles querem ouvir: o mantra tradicional do exército como poder moderador da república e da centralização no executivo como guardião da ordem e da autoridade, garante da unidade nacional, contra as derivas judiciaristas e estadualista. […] O movimento do general Mourão parece ir assim no sentido de dar segurança aos colegas militares, constrangidos de terem se manter leais a um governo incompetente e nepotista, de notórios arruaceiros, no caso de uma eventual mudança na presidência. A honra militar do vice-presidente não lhe permite trair o presidente como fez o Temer. O partido de Mourão é o Exército. O que Mourão sugere — mas nunca irá admitir — é que, na hora de desembarcarem do governo Bolsonaro, se este momento chegar, desembarcarão todos juntos.[11]”
Mourão passa a despontar como o verdadeiro Bonaparte de um novo regime que está por vir, após a desestabilização e desmoralização irreparável das instituições da decadente democracia liberal brasileira. Esta análise atesta sua força por estar presente enquanto conclusão de analistas de matiz política das mais diversas, tais como Ricardo Rangel/VEJA [2], Chrystian Lynch/Jornal GGN [11], Roberto Bueno/Jornal GGN [7] e Pedro Marin/Revista Opera [12]. O compromisso de Mourão nunca foi com Bolsonaro, mas com seu próprio projeto. Neste sentido, nunca foi por acaso a desconfiança e as dezenas de acusações de Carlos Bolsonaro contra o vice-presidente da chapa [13].
Mourão é um governista sem ser bolsonarista, e espera o momento certo para dar o bote, agindo de maneira decisiva. Não acena para Bolsonaro, mas sim para os generais e demais militares que compõem com ele o governo. Não há necessidade de pressa, afinal de contas, progressivamente os militares já estão ganhando: ocupam os principais cargos do governo nacional, como arremata Pedro Marin em seu artigo na Revista Opera:
Para os militares, que já ganham poder a cada desatino do presidente, que já ocupam a Casa Civil, a Secretaria de Governo, o Gabinete de Segurança Institucional, o Ministério da Saúde, a Vice-Presidência, a Secretaria-Geral da Presidência da República, o Ministério da Defesa e mais três mil cargos em esfera federal, custa muito pouco consentir agora às loucuras de Bolsonaro. Afinal, se suas projeções estiverem corretas, Bolsonaro em pouco tempo nada mais será do que um detalhe, uma mancha, uma vírgula de anormalidade em um oceano de anormalidade, enquanto eles serão a exclamação de ordem em um cenário excepcional e caótico. Se tiverem de abrir mão de sua marionete, que à medida que se arruina prende a si novos fios, eventualmente o farão. Se tiverem de defendê-la, assim também será feito. Quem poderá impor limites e responsabilidades ao Partido Fardado? Ninguém. A quem poderá ele? A todos. Se há desequilíbrios na federação, e, aliás, na República, eles começam pelo pelotão de coturnos que se aquartelou no governo [12].
Se não há pressa no projeto golpista, tampouco há pausa. Pelo contrário, o próprio governo Bolsonaro parece estar preparando um terreno de caos e desordem nacional, que somado com a tragédia sanitária-pandêmica, configure-se como o momento mais propício para enfim implantar a intervenção militar no país. Atualmente, é seguro afirmar que o golpe militar depende substancialmente da queda de Bolsonaro. Contra o que aspiram os manifestantes golpistas em Brasília, será a intervenção militar sem Bolsonaro, ou não será. O pronunciamento de Mourão é um sinal: com o aumento generalizado do caos social, o momento de se livrar de Bolsonaro para que os militares implementem seu antigo projeto está chegando, como vislumbra Roberto Bueno [7]:
O projeto das Forças Armadas foi e continua sendo o de erodir a Presidência da República assim como o universo político, e não apenas para alcançar o Poder Executivo, mas para fazê-lo em condições de completa dilaceração e arraso das instituições e da economia, que justifique a tomada de quaisquer medidas radicais, o que legitimaria ante os olhos da população o enfeixamento de poderes totais por parte dos militares, o que ocorreria com total condescendência das forças que também apoiaram o golpe de Estado de 1964. O que hoje está em causa em meio às mais tresloucadas medidas, condutas políticas e institucionais não diz respeito à lealdade que a farda impõe, mas uma lealdade ao planejamento que o General Mourão já manifestou publicamente ter sido realizado e que continua a ser cumprido através das anunciadas aproximações sucessivas. “Abandonai toda a esperança, vós que entrais no inferno”. (Dante Alighieri, A Divina Comédia. Inferno, Canto III, 9).
Golpe militar à vista: ou a oposição repensa sua estratégia, ou será eliminada
Uma bifurcação arriscada
Enquanto parte da oposição, especialmente aquela ligada ao PT e ao Centrão, assiste toda a catástrofe nacional, e tomando o exemplo de sua liderança, afirmam “ainda bem” que o governo está se desgastando sozinho, aguardando ingenuamente as próxima eleições; é possível constatar que os militares guardam a mesma expectativa, porém silenciosamente aguardando a oportunidade para tomar não o governo, mas o poder.
Correndo por fora da raia, os setores mais avançados da oposição e da sociedade civil organizada passaram a defender a campanha do impeachment consistente no mote “Fora Bolsonaro”. Por mais que tais setores, muitas vezes se desprendendo de suas lideranças, defendem com afinco, coragem e honestidade a campanha do impeachment em meio à pandemia, é preciso repensar as consequências políticas de entregar a cadeira presidencial à Mourão, pois significa assumir o risco real de alçar um inimigo muito mais poderoso do que o incauto Bolsonaro ao poder — talvez de maneira dificilmente reversível.
É bem verdade, como apontaram os Jornalistas Livres em editorial de 15/05 [14], que está em tramitação uma PEC que exige novas eleições em 90 dias no caso de queda do presidente. A aprovação de tal PEC seria tão urgente quanto a aprovação do próprio impeachment — mas investir neste caminho significaria concentrar as forças em pressionar o Congresso Nacional para que Bolsonaro e Mourão sejam derrubados.
Por outro lado, Paulo Cannabrava Filho relembra que existem três pedidos de anulação das eleições presidenciais de 2018 no Tribunal Eleitoral, que cumulada com os resultados parciais auferidos pela CPI das Fake News, pode apontar um outro caminho: pressionar pela anulação das eleições para derrubar o governo. Cannabrava aponta a necessidade de cumular a luta para pressionar o Judiciário para anular as eleições por uma ampla campanha popular por uma Constituinte e a convocação de eleições gerais [4]. Tal caminho é tão legítimo quanto aquele apontado acima — significando investir as esperanças sobretudo no Judiciário para a tomada de uma decisão sem precedentes na história política nacional.
Tanto um, quanto outro caminho exigem uma ampla campanha de mobilização popular pela pressão: seja sobre o Legislativo, seja sobre o Judiciário. As “multidões” desejadas por Cannabrava para dar materialidade à derrubada do governo [4], todavia, parecem pouco prováveis em um país que caminha para ser o novo epicentro mundial da pandemia do Coronavírus. Urge que a oposição, sobretudo, dedique sérios esforços a repensar como fazer política, derrubar presidentes e governos em tempos de pandemia, para assim determinar a melhor estratégia para impedir a instauração de um terceiro regime militar na história do país.
Referências
[1] https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,limites-e-responsabilidades,70003302275
[2] https://veja.abril.com.br/blog/ricardo-rangel/o-que-quer-hamilton-mourao/
[6] https://veja.abril.com.br/blog/thomas-traumann/os-limites-de-mourao/
[7] https://jornalggn.com.br/a-grande-crise/o-ameacador-artigo-de-mourao-por-roberto-bueno/
[9] https://www.defesa.gov.br/noticias/68495-nota-oficial-do-ministro-da-defesa-3
[10] https://tribunadaimprensalivre.com/opiniao-o-general-mourao-e-a-ameaca-de-escalada-ditatorial/
[12] https://revistaopera.com.br/2020/05/18/sem-limites-sem-responsabilidade/
[13] https://exame.com/brasil/carlos-bolsonaro-completa-38-horas-de-ataques-a-mourao-no-twitter/
[14] https://jornalistaslivres.org/editorial-o-adulto-na-sala-ou-ensaio-para-uma-nova-ditadura/
Mulher trans, jornalista, fotógrafa, militante, pensadora, irrequieta, ansiosa, utópica e construtora de um mundo novo.
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O que assistimos é como uma explosão em câmera super-lenta.
O golpe não irá acontecer, ele já está ocorrendo a vários anos.
Difícil precisar o momento inicial.
Impeachment da Dilma? Não, tudo ali já estava muito bem acertado.
Quando o palhaço-presidente foi “autorizado” a ir fazer política dentro dos quartéis? Não, os pró-golpe já estavam nos postos chave.
Quanto foi implantada a missão no Haiti, infeliz sob todos os aspectos, que viabilizou o projeto-piloto do que pretendem fazer no Brasil? Não, os comandantes já estavam a postos.
Quando foram promovendo oficiais alinhados a ditadura? Lembrar que o Heleno foi ajudante de ordens do Frota. Talvez, mas aí já havia os dispostos a promovê-los.
Que tal, quando o contexto necessário foi urdido? Sim, lá no final(?) da ditadura, o genial Golbery, com a sutileza e eficiência que lhe eram características, viu a grande oportunidade e ajudou a projetar Lula e o PT como a esquerda inofensiva que atropelaria o trabalhismo, herdeiro de Getúlio (este sim, visto como o grande inimigo), liderado por Brizola.
Creio que aí está o início da explosão.
Claro, por trás de tudo, o verdadeiro poder: o império anglo-sionista.
esse terceiro regime militar será CATASTRÓFICO. dificilmente os militares vão deixar o poder e o mais grave: terão apoio dessa sociedade que é que mais sofrerá com esse regime.
Nassif: esse papo do ìndioVice mais parece história de LaFontaine, aquela tal de “Lupus et Agnus”. Pouco importa de onde vem a “água”. Se da “direita” ou da “esquerda”. A Fera tá faminta (de chegar ao topo do governo) e quer jantar; nem o Capeta socorre o Cordeirinho. Nem quer saber se foi Ele (Kummunista) ou o Pai dele (Esquerdopata) ou o Avô dele (fundador das LigasCamponesas). A água está turva e alguém tem que pagar por isto. E você acha que a Bala não tem razão? Concordo com você, é discurso escuro em céu de brigadeiro…
Isso não é uma matéria é um aviso de que, a estratégia já se encontra em avançado estágio.
Infelizmente, só o Congresso Nacional e o STF, não enxergam os flagrantes desrespeito à CF por agentes públicos e que, há muito, a prática do poder do povo e da política democrática brasileira (Parágrafo Único do Artigo 1º da CF) e da convivência harmônica dos Poderes e das instituições constitucionais brasileiras (Artigo 2° da CF), estão em perigo.
Como cidadão consciente, servimos à pátria por um ano e nesse período, aprendemos algo que aproveitamos para a vida até hoje.
Trata-se, de um ensinamento básico de sobrevivência, representado por uma sigla ESAON, que muito bem casa com a situação atual do Brasil e de todos e todas que queira ajudá-lo e, que se encontram perdidos e indecisos, quanto a atitude a ser tomada.
A decifração da sigla ESAON é o seguinte: E- estacione; S-sente-se; A-alimente-se; O-oriente-se e N-navegue. Pronto, é só utilizarem a inteligência, boas ideias e comuniquem ao povo, que é soberanamente, o dono do Poder Constitucional. Lembrem-se, o Brasil não tem um único dono, ele é de todos nós, de nossos filhos, netos e das gerações futuras.
Sebastião Farias
Um cidadão brasileiro nordestinamazônida
Resumindo, o trama é o nosso maduro a la derecha…
trama: madeira menor das cercas… mourão é o poste maior… termos de gaúcho da fronteira…
Mourão e os seus miquinhos amestrados verde-oliva estão esperando a passagem do dia 31 de dezembro de 2020. A partir do 1º dia de janeiro, estarão promovendo a dispensa de Jair Messias e tomando, de fato, o controle de todo o país. O Congresso Nacional e a Justiça estarão reféns do novo pelotão. Se discordarem, serão fuzilados. Em todas as cidades do país estão sendo formadas milícias armadas, patrocinadas pelas polícias e pela maçonaria, para tomarem à força as rédeas das comunidades. É a ultra-direita tomando as suas posições, sob o olhar contido da população, que rumina pastosamente durante o dia e dorme calmamente toda a noite, sem perceber a tempestade perfeita que está se armando no horizonte de um futuro próximo no país chamado Brasil.
Horas depois de publicado o artigo, nenhum comentário ainda.
Aposto como o Nassif os está submetendo à censura prévia do Helenão.
Os militares já governam, porquê precisam de um golpe?
As forças armadas brasileira nunca deixaram o poder, a epidemia democrática virou modismo na maior parte do mundo, a partir dos anos 80, os obrigaram a ficar entrincheirados.
Com a eleição do retardado norte americano e por conseguinte seu aprendiz tupiniquim, a caserna se alvoroçou e arrisca-se a tentar ser protagonista novamente.
Porém incompetentes que são, o máximo que conseguirão é serem os capatazes de nossos exploradores, o que nos manterá no terceiro mundo por mais algumas décadas.
Comentando com dois dias de atraso o artigo, se vê boas análises quanto a preparação do golpe que começa a ficar mais claro, entretanto com a atual epidemia que simplesmente acelerou o calendário e começa a mostrar as próprias deficiências insuperáveis da gestão da mesma, os militares tem todas as condições de golpear e vão golpear, talvez nem esperem para o fim de dezembro para Mourão ocupar o cargo, entretanto a cada dia as contradições ficam mais aparentes e talvez seja a última vez que eles consigam dar um golpe, mas quanto tempo esse vai durar e o que virá depois desse, eles não estão nem pensando, pois com a crise internacional que se instalará, não ficará pedra sobre pedra.