Quem matou a Lava Jato?, por Ivan Colangelo Salomão

No suposto afã de se regenerar séculos de injustiças, personagens de reputação duvidosa incumbem-se da suposta tarefa de redimir a tragédia histórica do país por meio de suposta cruzada anticorrupção.

Quem matou a Lava Jato?

por Ivan Colangelo Salomão

Em nome do legítimo, necessário e improtelável combate à corrupção, crimes em série vêm sendo cometidos na história do Brasil desde, pelo menos, a última invasão portuguesa (1808). Subterfúgio subjacente à tentativa de se macular moralmente o adversário, a pecha (des)qualificativa de “corrupto” é artifício largamente empregado há muito por homens públicos de todas as matizes ideológicas.

Durante a República Velha, por exemplo, tratava-se do principal expediente eleitoral utilizado pelos candidatos de fora do sistema do Café com Leite para desonrar os representantes das oligarquias hegemônicas. Já na era desenvolvimentista, incontáveis foram as acusações contra a probidade das gestões de Getúlio e Juscelino, lideranças máximas do campo popular. Um dos mais festejados e controversos políticos dos anos 1950 chegou, inclusive, a ter seu sobrenome transformado em sinônimo de pregação hipócrita e vazia contra a corrupção. Acabou preso e cassado pela ditadura militar.

No início da Nova República, a moralidade foi o mote que embalou a vitória do primeiro presidente eleito democraticamente em três décadas. Ainda que sua capivara era fosse longa quanto seu repertório lexicográfico, como se sabia em todas as esquinas. Treze anos mais tarde, embalou a primeira eleição de um partido de centro-esquerda, cujo mote “Xô corrupção” era ilustrado por uma ratoeira. A relação pouco republicana mantida com os partidos da base parlamentar fez ruir o castelo (de cartas) do discurso petista em defesa da integridade pública.

Mas a repulsa à gatunagem política não é sem motivos. Se há um elemento transversal e imanente à história política brasileira é a prática ecumênica da corrupção, nas suas mais distintas e criativas modalidades. O que era uma chaga a ser combatida conforme as regras e prerrogativas inerentes ao arcabouço do Estado democrático de direito, porém, transformou-se em um Frankenstein típico de Estados policialescos. Combate à corrupção acima de todos; imparcialidade, republicanismo e isenção acima de tudo.

No suposto afã de se regenerar séculos de injustiças, personagens de reputação duvidosa incumbem-se da suposta tarefa de redimir a tragédia histórica do país por meio de suposta cruzada anticorrupção. Como já escrevi em coluna passada, heróis não existem. Há construção institucional, consciência coletiva e luta política. O resto é engodo.

No caso específico da Lava Jato, a mídia tem sua (enorme) parcela de culpa. O estardalhaço com que se propagandeou a “maior operação contra a corrupção da história do país” contribuiu para se encobrir as diversas práticas ilegais e as inúmeras condutas condenáveis de seus agentes. Com muito boa vontade, pode-se acusar os divulgadores dessa farsa – incluídos aí os grandes veículos de comunicação – de, no mínimo, desonestidade intelectual.

Tachar os inegáveis e notórios crimes perscrutados pela dita operação como o maior escândalo de corrupção da história do Brasil é indigno e obsceno. Por motivos tão elementares quanto irrefutáveis. (1) Porque antes dos anos 2000, não se investigava com os instrumentos, a autonomia e a profundidade com que se faz atualmente. O Ministério Público como se conhece hoje é obra recente. Durante a ditatura, por exemplo, mal se podia cantar música de protesto, que dirá apurar com rigor e seriedade desvios da administração pública. (2) Porque simplesmente não havia interesse (nem ambiente) político para se inquirir, muito menos incriminar governos anteriores. A sanha persecutória contra as gestões do PT pouco lembra a docilidade com que o arqui-conhecido engavetador-geral da República brindou o presidente que o nomeou. Natimortas, as inumeráveis denúncias de corrupção tinham destino certo nas mãos de Brindeiro. Os faraônicos casos de corrupção do governo FHC jazem na paz eterna dos escaninhos da PGR. A disfuncionalidade da estrutura judicial brasileira não nasceu com Aras.

A forma temerária e megalomaníaca com que se passou a gerir a Petrobras a partir de determinado momento do século XXI, porém, deu margem para que uma seita de alucinados encabeçasse um dos movimentos mais sombrios da história contemporânea do país. Se os sinais de desatino e parcialidade de seus agentes já se faziam notar desde o início da Lava Jato, foi a perspicácia de um não menos obscuro hacker de Araraquara que revelou as entranhas da pornografia que se praticava em Curitiba.

A começar por um procurador lunático que conversava consigo mesmo por mensagem de celular. Esquizofrenia é uma perturbação séria e não pode ser ridicularizada. Mas se esperava um crivo psiquiátrico um pouco mais rigoroso no concurso para cargo de tamanha relevância na estrutura burocrática brasileira.

Do encontro com um magistrado que desconhece o conceito de isenção, formou-se o cenário ideal para a caça (e a cassa) de seus adversários políticos. Sim, o mesmo já ex-ministro que, no dia 1º de agosto de 2020, publicou em sua rede social: “Viva a Lava Jato”. Por simetria exigida pela imparcialidade, tratar-se-ia de acinte tão abjeto quanto se tivesse escrito: “Viva o advogado de defesa”. Talvez ele não tenha aprendido na escola, mas cabe ao juiz julgar, não acusar. Menos ainda se manifestar em defesa de uma das partes, qualquer que seja ela.

Trata-se do mesmo cidadão que dera um duplo twist carpado quando questionado acerca do assumido caso de caixa-dois praticado por um de seus mais salientes colegas de Esplanada: “Ele já admitiu e pediu desculpas”. Mas a condescendência de novembro de 2018 contrasta com a intolerância do Torquemada de agosto de 2016: “Eu particularmente sou favorável a essa criminalização [de caixa-dois]. Tenho uma posição muito clara: eu acho que o caixa-dois muitas vezes é visto como um ilícito menor, mas é trapaça em uma eleição”. Contraria ainda mais a severidade do xerife de abril de 2017: “Tem que se falar a verdade, caixa-dois nas eleições é trapaça, é crime contra a democracia. Alguns desses processos me causam espécie quando alguns sugerem fazer uma distinção entre corrupção para fins de enriquecimento ilícito, e a corrupção para fins de financiamento de campanha eleitoral. Para mim, a corrupção para financiamento de campanha eleitoral é pior que para o enriquecimento ilícito”.

Tudo isso em menos de dois anos. Que demonstração de desapego. Quanta abnegação.

O mitômano que ocupa o Planalto sugeriu que a famigerada operação sucumbiu por inanição: na ausência de crimes, não haveria motivos para se manter as investigações. Não é verdade, como se sabe. Ela foi suicidada pelo juiz de província que apontou a arma para a têmpora ao aceitar o cargo no governo fascista que ajudara a eleger – passo que ele negou dar em pelo menos sete entrevistas antes de abandonar a 13ª Vara da Justiça Federal em Curitiba. E que apertou o gatilho inúmeras vezes, mesmo depois de constatado o óbito da mais hipócrita narrativa já elaborada na história político-jurídica do país.

Intelectualmente curto e cognitivamente limitado, o Sancho Pança de Maringá voltará, em novembro de 2022, para o lugar de onde jamais deveria ter saído: a insignificância.

Ivan Colangelo Salomão, professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Redação

1 Comentário

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  1. “A forma temerária e megalomaníaca com que se passou a gerir a Petrobras a partir de determinado momento do século XXI, porém, deu margem para que uma seita de alucinados encabeçasse um dos movimentos mais sombrios da história contemporânea do país.”
    Poderia explicar esta parte com mais clareza?
    Quanto foi a valorização da Petrobrás neste “determinado momento”?
    Em qual exercício ela deu prejuízo*?
    * Não vale o prejuízo forçado pela lava jato para justificar sua ação ilegal e deletéria.

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