
Ecosofia
Argentina + Brasil = Prosperidade III
por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva
David Ricardo estruturou seu modelo de cunho redistributivo na fertilidade do solo. Karl Marx assumiu esse modelo como verdadeiro, com a diferença de que Ricardo aceitava que a população fosse limitada pela fome, enquanto Marx sugeria que isso poderia ser contornado com a extinção da propriedade privada. É que Ricardo acreditava — não sem razão – que o cultivo ia das terras mais férteis às mais estéreis, fazendo o custo dos alimentos subir e, com ele, o preço. Isso incorria no aumento da mortalidade, fazendo com que a população diminuísse, reiniciando o processo de expansão. Não contavam ambos com o que se chamou mais tarde de economia-mundo. É que bens poderiam ser produzidos em larga escala em uma região e consumidos em outras, à milhares de quilômetros de distância.
Quem proporcionou isso foi a tecnologia de navegação. Foi ela que viabilizou a dominação das Américas. Alguns países tinham especiarias a oferecer, como era o caso do açúcar no Brasil, o algodão nas colônias do sul dos Estados Unidos, a prata mexicana ou peruana. Nasceu um tipo novo de economia, a exportadora.
A Argentina tinha o solo extremamente fértil e plano, o que lhe conferia uma enorme vantagem comparativa na produção de grãos. Como a tecnologia de cultivo fosse tradicional, a quantidade produzida seria proporcional à área plantada, trazendo para dentro do território a máxima de Ricardo. O aumento do custo de produção de grãos, mormente o trigo, não limitava o consumo local, mas a viabilidade da exportação. Isso induziu os proprietários de terra a pressionar os indígenas para fora do território de interesse e, ao contrário do que pretendia a legislação, manteve-se a formação de latifúndios cada vez maiores. Existe vasta literatura de como, no Brasil e na Argentina, a legislação foi distorcida e os privilégios dos tempos das ordenações Filipinas foram mantido. O próprio Juan de Rosas, governador da Província de Buenos Aires, detinha 400 ha mil, área respeitável até para um país do tamanho do Brasil.
Os investimentos em tecnologia agrícola foram concomitantes no Brasil e na Argentina. Aqui, começou com o Imperial Instituto de Agricultura em 1859, transformando-se na primeira escola superior da área em 1875, fazendo hoje parte da UFBA, Campus Cruz das Almas. Dali por diante, as escolas começaram a pipocar nos dois países. Em alguns pontos, como o da cana de açúcar, os institutos trocavam informações e cultivares. Em outros, como a produção de trigo e café, reconheciam serem especialidades regionais e os caminhos correram paralelamente. Esses dois produtos eram os principais itens da pauta de exportação agrícola dos dois países respectivamente. A diferença é que o trigo já tinha sua produção almejada pelo mundo inteiro, enquanto o café era visto como especiaria. Apesar de motivos tão diversos, quanto mais exportavam, Brasil e Argentina igualavam-se em fragilidade, tanto que que o economista cubano, Carlos Diaz-Alejandro[1], chamou esse fenômeno de “imiserizing Growth”[2]. É que a situação agravava-se pelo fato de estados Unidos, Argentina e Brasil serem os principais focos para emigração a partir da Europa e Extremo Oriente.
Em ambos países, a crise de 1929 derrubou o castelo de cartas em que suas economias se transformaram. No Brasil, resultou em Getúlio Vargas; na Argentina, veio a Década Infame. A despeito de a II Guerra trazer um certo alento às economias exportadoras, a Revolução Verde aniquilou quaisquer vantagens comparativas com que a Argentina pudesse contar no que tange aos grãos, ao passo que, para o café, as vantagens comparativas do Brasil mantiveram-se incólumes. Mais minuciosamente, o advento de variedades híbridas, assim como a indústria de fertilizantes, espalharam a lavoura de grãos por toda a face da Terra. Ao mesmo empo, a mecanização aumentou significativamente a produtividade nos países que não podiam contar com mão de obra suficiente. O golpe mortal veio com o aproveitamento do Cerrado e a técnica do plantio direto, bem como a oferta de transgênicos que, virtualmente, acabaram com os limites regionais e climáticos na produção de grãos.
Até mesmo no tocante às frutas de clima temperado, a tecnologia anulou vantagens comparativas. Esses produtos, cuja exportação era garantida pela sazonalidade invertida em relação ao mercado consumidor, hoje são produzidos exitosamente até no nordeste brasileiro, sem contar com a África do Sul, entre outros concorrentes.
A indústria poderia ter salvo a lavoura argentina, mas se salvou ou não, é tema para o próximo capítulo.
Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.
[1] Carlos Diaz-Alejandro (1937 – 1985)Teve carreira brilhante na história econômica da América Latina, mormente de Cuba, Colômbia e Argentina. Tive a honra de ter sido seu aluno na columbia University, para onde ele se tinha mudado no ano anterior à sua morte, aos quarenta e oito anos.
[2] Em português, “Crescimento que traz a miséria”.
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.
Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.