Maira Vasconcelos
Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).
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Principal projeto do governo Milei é aprovado no Senado, após concessões e repressão nas ruas

Abertura às multinacionais e atração de dólares “frescos”, concede benefícios tão extremos que não existem em nenhum país da América Latina.

Foto Maíra Vasconcelos

Principal projeto do governo Milei é aprovado no Senado, após concessões e repressão nas ruas

As concessões feitas pelo governo visavam blindar a medida que delega poder legislativo ao Executivo; o presidente poderia governar sem passar pelo Congresso, por um ano. Capítulo sobre aberturas às multinacionais e atração de dólares “frescos”, concede benefícios tão extremos que não existem em nenhum país da América Latina.

por Maíra Vasconcelos, especial para Jornal GGN

Negócios com empresas e empresários, diminuição do Estado com a venda de estatais, poderes inéditos e polêmicos ao Executivo, modelo de exploração de recursos naturais (mineração, petróleo e gás), para aumento das exportações e atração de divisas, baseado na abertura irrestrita e considerada descomunal às multinacionais. Essas são algumas das facetas que estão em jogo no principal projeto do governo de ultradireita de Javier Milei, a chamada “Lei Bases”, aprovada em linhas gerais, ontem, no Senado argentino, com forte recusa e protesto nas ruas, confronto com a polícia e repressão aos manifestantes. As modificações sugeridas pelos senadores e cada artigo da lei será ainda tratado na Câmara dos Deputados, que aprovou o projeto em abril deste ano.

Na região central de Buenos Aires, próximo à Praça de Maio, por volta das 8h30 da manhã, já havia agrupações de pessoas mobilizadas para a marcha contra a lei. “Na rua, nos estão pedindo outra coisa. Aqui dentro deveria ter uma câmera para ver o que está acontecendo nas ruas”, disse a senadora da província de Tierra del Fuego, Cristina López, no início da tarde de ontem, 12 de junho, durante a votação da “Lei Bases”, aprovada com 37 votos positivos e 35 negativos, do total de 72 senadores, após decisão de desempate dado pelo voto da vice-presidente e presidente do Senado, Victoria Villarruel. 

A sessão, que teve início às 10 horas, arrastou-se por mais de 11 horas de debate, com interrupções solicitadas por senadores da oposição, devido à repressão policial aos manifestantes que protestavam contra o projeto, do lado de fora do Congresso. Com a aprovação, o ultradireitista Milei poderá colocar em marcha os projetos que pretende para redução a um Estado mínimo ou para sua “destruição”, como tem dito o próprio presidente. Também foi votado um pacote fiscal, que está atado à lei.

O megaprojeto é considerado central para que o presidente mantenha a governabilidade, já que “La Libertad Avanza” (LLA), o partido do governo, tem uma hiper-minoria no Senado, com apenas três representantes. Além do mais, LLA não elegeu governadores, nem prefeitos em todo o país.

Para que o pacote fosse aprovado, o governo negociou a exclusão do capítulo sobre as pensões, que buscava eliminar o atual sistema de moratória e a pensão por invalidez. Também retirou a Aerolíneas Argentinas, o Correo Argentino e os meios públicos de comunicação, como a Rádio Nacional e a TV Pública, da lista de privatizações. Também o Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (CONICET) e o Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais (INCAA). O Banco Nación foi excluído da lista, dias antes da votação.

Das 40 empresas propostas para privatização, na primeira versão da lei, restaram oito estatais, entre elas a empresa de água e saneamento, “AySA”, a Sociedade Operadora Ferroviária e a Belgrano Cargas e Logística. Vale aclarar que algumas empresas serão colocadas à venda segundo o regime de concessão parcial, quer dizer, sendo ainda estatais, estariam abertas à incorporação de capital privado. 

Além das privatizações, outros dos principais pontos debatidos foram o imposto de renda sobre os salários mais elevados, a atribuição de poderes legislativos ao Executivo, e o capítulo “Regime de Incentivos para Grandes Investimentos” (RIGI), considerado o mais polêmico da lei. Este último versa sobre a possibilidade de alavancar as exportações, a partir de “flexibilizações” tributária, alfandegária e cambial, que atingiria principalmente empresas dos setores de mineração, petróleo e gás. Mas tais concessões são consideradas desproporcionais, segundo especialistas, e propõem um nível tal de abertura, que são medidas que nenhum país da América Latina, ou do mundo, concedem às empresas multinacionais que atuam em território local. *Nessa matéria há um ítem específico sobre RIGI.

Outro dos artigos considerados mais críticos, do ponto de vista constitucional, é sobre a atribuição de direitos legislativos ao poder Executivo, uma medida excepcional, que permite ao presidente governar sem passar pelo Congresso, que duraria um ano e não dois anos, como estava previsto na primeira versão da lei. Com tais faculdades o Executivo pode eliminar ou fusionar organismo públicos sem passar pelo Congresso.

Detidos, feridos e incêndios

A sessão de ontem, conduzida pela vice-presidente e presidente do Senado, Victoria Villarruel, conhecida por defender explicitamente repressores da época da ditadura militar argentina (1976-1983), foi a mais tensa de que se tem notícia, nos últimos anos. A operação policial comandada pela ministra de Segurança Patricia Bullrich, mais uma vez, reprimiu os protestos e usou gás pimenta, bala de borracha e caminhão hidrante contra os manifestantes que protestavam em frente ao Congresso. Houve confrontos com a polícia.

Os protestos foram conduzidos pela Confederação Geral do Trabalho (CGT), por organizações e movimentos sociais e partidos de esquerda. Por volta das 19h30, a senadora da província de Mendoza Anabel Fernández Sagasti, bravejava contra o RIGI, resumindo o programa de atração de dólares, como sendo um plano de “entrega nacional”. Também chamou a atenção para as questões ambientais. “A mudança climática existe, ainda que o governo diga que não”.

Durante esses seis primeiros meses de governo “libertário”, foram realizadas inúmeras marchas de oposição, algumas com mais de 500 mil pessoas, e duas greves gerais. A votação da “Lei Bases” foi também antecedida e acompanhada por uma paralisação universitária de 48 horas, que começou um dia antes da votação no Senado. Também prévio à votação, trabalhadores de meios públicos de comunicação, organizados pelo Sindicato de Imprensa de Buenos Aires (Sipreba), Correio Argentino e Aerolíneas Argentinas, realizaram uma conferência de imprensa, em frente ao Congresso, contra a privatização das empresas estatais.

Em janeiro deste ano, a “Lei Bases” foi rejeitada e voltou para tratamento inicial no Parlamento, como se nunca tivesse sido votada. No final de abril, voltou a ser aprovada na Câmara dos Deputados, sendo que 400 artigos foram excluídos.

Assembleias de bairro e panelaços

O 12 de junho foi uma longa jornada de protestos, repressão e convocatórias que duraram, ao menos, até às 21h30. Por volta das 19 horas, corria uma convocatória para panelaços, também via whatsApp, através dos grupos de assembleias dos bairros portenhos, com horário e endereço das esquinas, em cada bairro, onde ocorreria a manifestação. Todos os panelaços estavam marcados para às 20 horas. Por exemplo, no conhecido bairro de “La Boca”, coração do time do Boca Juniors, o panelaço estava convocado para a esquina da Avenida Almirante Brown e Galdos. As assembleias de bairro, em Buenos Aires, foram se formando ao longo desses seis meses de governo “libertário”, como uma forma de organização, planejamento de estratégias para protestos, panfletagens e discussão sobre como se mobilizar frente à política do atual governo.

*O capítulo “RIGI” de atração de dólares

O capítulo “Regime de Incentivos para Grandes Investimentos” (RIGI), considerado o mais polêmico da “Lei Bases”, versa sobre a possibilidade de alavancar as exportações argentinas, abrindo o mercado à multinacionais, ao conceder benefícios que, para muitos especialistas, são extremos e, nem sequer, são demandados pelas empresas. O RIGI dispõe sobre flexibilidades tributária, alfandegária e cambial para empresas que invistam mais de US$ 200 milhões em solo nacional, com garantia de estabilidade fiscal por 30 anos, o que se aplicaria em maior medida a empresas de mineração e de hidrocarbonetos (petróleo e gás).

Permite que as empresas importem com tarifa zero tudo o que necessitem para desenvolvimento de projetos, e não inclui uma cláusula que verse sobre compra de produtos nacionais. Por exemplo, as empresas poderiam importar até os uniformes de trabalho e todo o maquinário que necessitem, sem incluir qualquer imposição de compra de produtos nacionais.  

O RIGI concede benefícios tão extremos que não existem em nenhum país da América Latina, e dos quais se tem notícia apenas em alguns países da África, escreveu Martín Reydó, da Fundação Fundar, no artigo “O RIGI, um projeto anti-argentina: 5 pontos para entender por quê”. “Amarra o Estado argentino com  mãos e pés, por 30 anos, para capturar lucros extraordinários e fazer política de desenvolvimento produtivo. Uma combinação de privilégios para o capital e restrições ao bem coletivo que não é feito por nenhum país sério no mundo (pelo menos nenhum na região, embora haja exemplos na África)”.

Além de não incluir nenhum ponto sobre as questões ambientais, também anula qualquer regulação já existente sobre o setor em nível municipal, provincial e nacional, esclarece Reydó. Em toda a região, a Argentina é o país com maior quantidade de projetos de mineração que se encontram paralisados devido a conflitos ambientais, escreveu.

“O projeto busca consagrar de uma vez por todas um padrão de especialização produtiva da Argentina como mera exportadora de commodities, com as multinacionais dominando a nata dos negócios e sem qualquer articulação com a estrutura produtiva nacional ou com o sistema de inovação. Uma economia de enclave pura e simples”.

Após a votação no Senado, foi discutido que o RIGI sofrerá modificações, que serão ainda vistas especificamente, já que a lei volta para tratamento de cada artigo, na Câmara dos Deputados. Portanto, deve-se assim considerar as informações incluídas nesta matéria, sobre tal capítulo da “Lei Bases”. 

Maíra Vasconcelos é jornalista e escritora, de Belo Horizonte, e mora em Buenos Aires. Escreve sobre política e economia, principalmente sobre a Argentina, no Jornal GGN, desde 2014. Cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina (Paraguai, Chile, Venezuela, Uruguai). Escreve crônicas para o GGN, desde 2014. Tem publicado um livro de poemas, “Um quarto que fala” (Urutau, 2018) e também a plaquete, “O livro dos outros – poemas dedicados à leitura” (Oficios Terrestres, 2021).

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

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