Gilberto Maringoni
Gilberto Maringoni de Oliveira é um jornalista, cartunista e professor universitário brasileiro. É professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, tendo lecionado também na Faculdade Cásper Líbero e na Universidade Federal de São Paulo.
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Venezuela: precisamos todos perder a hipocrisia, por Gilberto Maringoni

Na Venezuela, defender soberania implica passar por cima de resultados eleitorais objetivos. E a democracia eleitoral é como triturar o país

Venezuela: precisamos todos perder a hipocrisia

por Gilberto Maringoni

TRABALHEMOS COM A PIOR HIPÓTESE para a esquerda e para os que defendem soberania nacional na periferia: Nicolás Maduro fraudou as eleições, como tudo indica. A consequência lógica é forçá-lo a entregar o poder, cumprindo assim o princípio da alternância liberal.

OCORRE QUE NÃO EXISTE aqui princípio algum de alternância: a chapa do outro lado representa a extrema-direita global, com laços estreitos com a OTAN e tudo o que daí advém. Sua primeira ação no poder será eliminar o artigo 303 da Constituição, no qual se lê: “Por razones de soberanía económica, política y de estrategia nacional, el Estado conservará la totalidad de las acciones de Petróleos de Venezuela, S.A.”. A partir daí, o inferno é o limite.

COMO O CHAVISMO não montou uma ditadura real, mas um regime cujos mecanismos de defesa comprometem pleno funcionamento democrático, é preciso reconhecer que o governo goza de boa aceitação popular. Somente repressão militar não explica sua capacidade de iniciativa e de galvanizar a opinião pública para resistir a nove tentativas de golpe a partir de 2002 e a uma década de pesado cerco econômico imperial. Em síntese, mesmo em condições de isolamento, Maduro resistiu e possivelmente resistirá por bom tempo. Derrubá-lo não será um passeio. Se chegar ao poder, a oposição terá de recorrer a medidas repressivas e massacres, como ocorreu na Bolívia em 2019-20 e no Peru em 2022-23.

MUDADA A CONSTITUIÇÃO, abre-se caminho para a estratégia vinda de fora: privatizar não apenas a PDVSA, mas as mais volumosas reservas de petróleo no planeta. Embora sejam hoje os maiores produtores mundiais do produto, os EUA precisam de estoque estratégico, como demonstrado diante do corte de fornecimento de petróleo e gás à Europa, na esteira da guerra na Ucrânia. Para Washington não se trata apenas de se assenhorar de maior quantidade de barris, mas de comandar seu fluxo e, por conseguinte, o preço internacional. Depois do controle da moeda de referência mundial, é preciso controlar o combustível que move o mundo.

ASSIM, A DISPUTA vai muito além da contagem de votos venezuelana, ou da qualidade de vida que a população local poderá ter num hipotético período pós-chavista. Significa tomar vantagem estratégica frente ao conflito que importa, a do eixo do poder global Ocidente/ Oriente. Mais do que a soberania venezuelana, é o poder planetário que está em jogo. Para a Venezuela, para seu Estado nacional e para seu povo, são mudanças de reversão quase impossíveis. O que sobrar do país será reduzido a um protetorado estadunidense de segunda linha, um cosplay de Porto Rico.

O DILEMA PARA A ESQUERDA em todos os países está em realizar separadamente uma disputa que preferencialmente deve ser embalada num único pacote. Ou seja, a luta por soberania e democracia. Na Venezuela, defender soberania implica passar por cima de resultados eleitorais objetivos. E defender a democracia eleitoral hoje significa triturar o país.

A ESCOLHA É AMARGA, qualquer que seja a opção. Ela é inescapável. Por isso a tarefa inicial no enfrentamento em curso implica que os dois lados joguem fora qualquer ranço de hipocrisia ou falsos moralismos. É duro e feio, mas a vida é assim.

Gilberto Maringoni de Oliveira é um jornalista, cartunista e professor universitário brasileiro. É professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, tendo lecionado também na Faculdade Cásper Líbero e na Universidade Federal de São Paulo.

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  1. A minha coluna quinzenal no jornal A Tarde da Bahia, Brasil. 06.08.2024

    BOLÍVAR OU EUA

    Na pátria de Simón Bolívar, se está decidindo o destino político de todo um continente. Num cenário explosivo com países enfrentados entre a direita e a esquerda institucional, a eleição venezuelana torna-se uma espécie de fiel da balança que influirá no decorrer geopolítico dos próximos anos. Histórico cenário onde Bolívar – que junto ao General José de San Martin, deu a independência aos países de América do Sul -, colocaria hoje novamente a sua espada a serviço das massas exploradas, ontem submetidas pela colonização do Império Espanhol, hoje pela continuidade do imperialismo norte-americano “democrático” e seus representantes da oligarquia venezuelana. Travestida de arautos da democracia, a oligarquia promove mais uma tentativa de golpe, desde a perda do seu monopólio do petróleo para as mãos da população chavista e não aceita os resultados onde Nicolás Maduro saiu vitorioso com 51,95% dos votos.

    Venezuela possui as maiores reservas de petróleo do mundo e este é o primordial interesse norte-americano no país, alentando a líder oposicionista Maria Corina Machado e o seu procurador Edmundo González Urrutia. Anteriormente houve outras tentativas norte-americanas de interrupção democrática como a de Juan Guaidó, que colocou em voga o mais curioso e engraçado mecanismo eletivo, a auto proclamação presidencial, um produto saído dos laboratórios do Departamento de Estado norte-americano, para atuar em prol dos seus interesses em conluio com as forças golpistas locais.

    Neste delicado contexto não se pode deixar de lado o nefasto papel que o candidato da ultra direita protagonizou em El Salvador quando foi o segundo secretário da Embaixada da Venezuela e participou da Operação Centauro, uma série de operações de extermínio dos Esquadrões da Morte do exército, submisso à gestão do presidente americano Reagan. No período da sua atuação na Embaixada, entre 1981 e 1983, o saldo dos esquadrões foi de mais de 13 mil mortos. González mantinha vínculos com a CIA desde 1976. Os EUA sempre impulsaram esses segundos funcionários para disputar presidências em América latina (Castillo Armas na Guatemala em 1954, Diaz Ordaz no México em 1964, Noriega no Panamá em 1983, etc.).

    Já Maria Corina Machado apoiou o falido golpe de Estado contra Hugo Chávez em 2002, quando Pedro Carmona, um dos principais empresários do país, ocupou a presidência por 48 horas. O presidente deposto foi resgatado da prisão pelas massas e recolocado na Presidência. Corina Machado participou daquele efêmero governo e assinou o decreto que fechava o Congresso Nacional e anulava a Constituição. Muito além das eleições, ou é Bolívar, o povo e as Forças Armadas da Venezuela de Maduro ou os EUA de novo.

    Carlos Pronzato
    Cineasta, diretor teatral, poeta e escritor
    Sócio do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB)
    [email protected]

  2. Esse tipo de raciocínio serve para defender o regime iraniano, Daniel Ortega e falecido stalinismo, que continua vivo na mente de muitos intelectuais de esquerda.
    Maduro e seus dois mil generais estão pouco preocupados com a independência da Venezuela e dos países do sul global. Querem apenas continuar no poder, seja para não serem julgados pelos crimes que cometeram seja para continuar usufruindo das riquezas do país.
    O pior é o final do raciocínio: combater uma ditadura é favorecer os interesses imperialistas dos Estados Unidos.
    O regime de Maduro nada tem a ver com o socialismo ou com os ideais de Bolívar. Trata-se de uma ditadura, mais uma, nessa pobre América Latina.

  3. Peço licença ao Chico Buarque e ao Gilberto Gil, para usar um trecho da letra de CÁLICE. “De tanto usada a faca já não corta, e digo: De mal usada a democracia nunca funcionou. Aliás, a Democracia deveria significar um sistema de governo com mando do povo, mas este, por total falta de condições para exercer o tal mando, que se resume a votar nos candidatos que os controladores do poder, permitem que sejam escolhidos. ainda que sob severas restrições. Assim, no meu entender, todos os sistemas de governo que existiram e existe desde o começo da civilização podem ser classificados como DELEGADOCRACIA, cuja delegação de mando era e é, propiciada por diversas formas e entidades. Nos sitemas monáquicos pelo clero(s) pelos militares(s) em nome do deus ou deuses e pela aceitação ou tolerância do povo. Nas chamadas democracias, além da escolha eleitorais descrita acima, combinadas os demais fatores das monarquias. Finalizando, antes que me chamem de anti democrático, se um dia a democracia for factível. a humanidade atingirá um alto grau de civilidade pois não terá necessidade nem de deuses, guerras ou políticos profissionais.

  4. Concordo que demonstrada derrota de maduro a Venezuela será entregue ao saque. Mas maringoni estaria sugerindo que o governo Lula passe por cima dos resultados da eleição? Discordo.pq o resultado disso seria a derrubada do governo Lula que entraria ele também no golpismo…

    1. A Venezuela já vem sendo saqueada pela inflação, queda substancial do PIB , salários irrisorios. Tanto decaiu em todos os aspectos que 25% da sua população já emigrou.

  5. Oferecer anistia a Maduro em troca da saída do poder bem demonstra o papel de xerife do mundo que os EUA sempre pretenderam impor ao mundo. Seria o caso de exigirmos “Venezuela Livre”?

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