Eliara Santana
Eliara Santana é doutora em Linguística e Língua Portuguesa, com foco em Análise do Discurso. Ela é pesquisadora associada CLE/UNICAMP, onde participa do projeto Pergunte a um/uma Cientista. É integrante do Observatório das Eleições. Desenvolve pesquisa sobre desinformação, desinfodemia e letramento midiático no Brasil.
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A graça constitucional de Jair e a desgraça do Brasil, por Eliara Santana

O discurso de Jair tem dois pontos centrais e muito importantes na construção da argumentação: os pilares do Estado Democrático de Direito e os valores da sociedade.

Agência Brasil

A graça constitucional de Jair e a desgraça do Brasil

por Eliara Santana

Jair sabe o que está fazendo ao confrontar o STF. Ele joga m*&rda no ventilador com bastante propriedade e muita assessoria.

Em seu pronunciamento de ontem, 21 de abril, nada era aleatório, e se construiu uma justificativa forte para corroborar a decisão da “graça” ou indulto a Daniel da Silveira, deputado condenado pelo STF por estímulo a atos antidemocráticos e ataques a ministros do Supremo e às instituições.

A argumentação construída no discurso de Jair ressalta que a decisão do presidente é baseada nos melhores princípios, portanto, não se trata de ação entre amigos, tampouco de afronta a qualquer poder. Trata-se de uma ação prevista pela Constituição, e que é amparada por pilares inquestionáveis e não somente do ponto de vista jurídico.

O discurso de Jair tem dois pontos centrais e muito importantes na construção da argumentação: os pilares do Estado Democrático de Direito e os valores da sociedade. São duas bases argumentativas de peso.

Em relação ao primeiro ponto, ele traz a noção de respeito ao Estado Democrático de Direito e afirma que sua decisão de conceder a graça é baseada inclusive em decisões já tomadas pelo ministro Alexandre de Moraes em outros momentos. Ressalta também que a decisão de conceder indulto ou graça é medida constitucional e que essa concessão integra as bases de um Estado de Direito.

E então ele, Jair, como autoridade moral e constituída, traz os valores da sociedade, e não apensas justificativas jurídicas, para dizer por que concede a graça a Daniel. Portanto, o que embasa a decisão dele não é simples capricho ou ajuda ao amigo, é algo maior, são os valores basilares da sociedade brasileira e os valores basilares do Estado de Direito. Assim falou Jair para justificar a concessão da “graça”:

“Considerando que a prerrogativa presidencial para a concessão de indulto individual é medida fundamental à manutenção do Estado Democrático de Direito, inspirado em valores compartilhados por uma sociedade fraterna, justa e responsável;
Considerando que a liberdade de expressão é pilar essencial da sociedade em todas as suas manifestações;
Considerando que a concessão de indulto individual é medida constitucional discricionária excepcional destinada à manutenção do mecanismo tradicional de freios e contrapesos na tripartição de poderes;
Considerando que a concessão de indulto individual decorre de juízo íntegro baseado necessariamente nas hipóteses legais, políticas e moralmente cabíveis;
Considerando que ao Presidente da República foi confiada democraticamente a missão de zelar pelo interesse público; e
Considerando que a sociedade encontra-se em legítima comoção, em vista da condenação de parlamentar resguardado pela inviolabilidade de opinião deferida pela Constituição, que somente fez uso de sua liberdade de expressão”

A concessão da graça se ancora na busca pelo equilíbrio entre os poderes, nos valores da sociedade, no respeito à liberdade de expressão, no respeito à comoção que se verifica na sociedade, atônita com a decisão arbitrária, pois o acusado apenas fez uso da prerrogativa da liberdade de expressão, portanto, o presidente da República recebe a “missão” de zelar pelo interesse público.
Fica, assim, concedida a graça constitucional, para a desgraça do país e das instituições.

E Jair encerra o pronunciamento sob aplausos:
“É o que eu tinha a se (sic) manifestar”

Há um terceiro aspecto ou arcabouço que não está totalmente evidenciado, mas compõe a argumentação do pronunciamento que é o aparato religioso, as categorias religiosas – perdão, missão, valores, justiça, fraternidade. Esse arcabouço obviamente dialoga com os outros dois pilares do discurso da “graça constitucional”, e isso tudo é substrato para o time da desinformação estar em campo e mobilizar o discurso e o contradiscurso. Em bem menos de 24 horas, memes e cards e vídeos estão prontos e circulando.

Os estudos bíblicos mostram que quem concede a graça do perdão é aquele que tem elevação moral, uma autoridade especial – só pode perdoar um ofensor quem já foi ofendido, essa é a ideia. Jesus tinha esse poder e deu seu perdão a vários pecadores que foram ofendidos e se arrependeram; a Bíblia diz que nós temos de perdoar não somente 7 vezes, mas “70 vezes 7”. E nesse aspecto se coloca também discursivamente a ideia de uma perseguição injusta – o STF, que já deu decisões favoráveis e aceitou indultos a outros condenados persegue os de agora por “apenas” fazerem uso de “sua” liberdade de expressão.

Não vou entrar aqui no mérito das construções e acordos com o Centrão – isso já é ponto para outro artigo. O que temos já dimensiona bem a grande lama em que estamos mergulhados. Será uma eleição como nunca antes na história desse país.

Eliara Santana é uma jornalista brasileira e Doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), com especialização em Análise do Discurso. Ela atualmente desenvolve pesquisa sobre a desinfodemia no Brasil em interlocução com diferentes grupos de pesquisa.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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Eliara Santana é doutora em Linguística e Língua Portuguesa, com foco em Análise do Discurso. Ela é pesquisadora associada CLE/UNICAMP, onde participa do projeto Pergunte a um/uma Cientista. É integrante do Observatório das Eleições. Desenvolve pesquisa sobre desinformação, desinfodemia e letramento midiático no Brasil.

1 Comentário

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  1. Jair não é nem um pouco engraçado, mas gosta de fazer graça. Da graça de deus, que ele diz que tem, à graça que ele pode , em nome deus e da ” justiça divina” , conceder a um criminoso amigo, há uma grande diferença.
    Jair pode estar agora em “estado de graça” , por ter concedido essa “graça” ao meliante, e mereceria ser ” agraciado ” pelos seus fãs SE FÔSSEMOS UMA TEOCRACIA. Graças a deus não somos.
    A ” graça ” do STF, deverá devolve-lo ao cercadinho, onde ele é realmente engraçado.
    Estrategicamente, por outro lado, os conselheiros do bozo estão de parabéns por terem fortalecido os tíbios argumentos da defesa do criminioso. Palavras saidas diretamente da boca do silas malafia compuseram os “considerandos” da graça concedida.
    PORÉM, nenhum dos assessores do bozo tem competência jurídica, lógica ou argumentativa para enfrentar o STF.
    Aguardemos com serenidade sem dar circo ao Bozo, que afinal, já caiu de moda até nos iseites.
    https://youtu.be/AsS9r_o8h24

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