Desfaz-se com a Constituição a fronteira do absurdo, por Luís Carlos Valois

Talvez a Constituição seja mesmo só uma peça de um teatro de hipocrisia em uma sociedade em que crianças recém-nascidas estão no sinal de trânsito pedindo esmola, mas, olhando da minha perspectiva, essa hipocrisia ainda mantinha um ar de limite, uma fronteira nos dividindo da naturalização do absurdo.

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Desfaz-se com a Constituição a fronteira do absurdo

por Luís Carlos Valois

Não que eu tenha passado a acreditar em uma ordem constitucional que ampare o trabalhador, nem muito menos a população pobre e miserável, em um sistema que tem a exploração do mesmo trabalhador como fundamento.  As constituições nasceram para a proteção dos proprietários, de suas propriedades. As garantias constitucionais são garantias burguesas, a maioria pensada em um período da história em que os revolucionários liberais ainda temiam a perseguição monárquica.

Mas, mesmo assim, assusta a que ponto chegou o descaso para com a tal Carta Magna. Talvez o meu assombro derive da minha própria posição de privilegiado nessa sociedade tão desigual, o que não tira a necessidade, e talvez até acrescente na importância, de desabafar sobre.

Confesso também que o ânimo para escrever não anda em alta. Aliás, há muito que ele anda em decadência, porque, de absurdo em absurdo, o desespero vai tomando conta de qualquer pessoa sensata nesse país, seja de direita ou de esquerda.

Ainda que com propósitos de classe, o que somos como país, como nação, como comunidade de seres humanos mesmo, sem uma Constituição? E tudo começou com o golpe chamado de impeachment, onde a presidenta Dilma foi derrubada junto com uns dois ou três princípios constitucionais e mais alguns artigos de leis ordinárias.

Apenas para ilustrar o absurdo, porque dificilmente o absurdo tem voz, para que haja impeachment tem que haver crime. Contudo, a presidenta foi afastada, mas não foi denunciada, não foi condenada por crime algum, foi apenas deposta do cargo.

Qualquer leigo que queira ver, percebe que há algo de estranho aí, não precisa ser formado em direito, a presidenta não cometeu crime, tanto que não houve pena, tudo foi um teatro para afastá-la do governo.

Depois prendem o ex-presidente Lula porque havia visitado um apartamento e dormido em um sítio, ou vice-versa, não interessa, o que interessa é que ele era candidato à Presidência da República. Aquela parte da Constituição que diz não haver crime sem lei que o defina também foi para o saco, porque o ex-presidente foi condenado por atos indeterminados, ou seja, indefinidos.

Em seguida o país elege alguém que defende a tortura, crime hediondo expressamente rechaçado na Constituição Federal, faz manifestações racistas, sendo o racismo igualmente crime pelo próprio texto constitucional, homofóbicas, machistas, alguém que se elege proclamando um viva à morte.

Depois esse mesmo presidente eleito, que havia votado no impeachment da presidenta enaltecendo um general notoriamente reconhecido como torturador, nomeia Ministro da Justiça o juiz que havia mandado prender o ex-presidente Lula, impedindo o mesmo de concorrer nas eleições em que era favorito.

Nesse ponto foi a Constituição que não andou bem. Aparentemente nem ela, nem os constituintes, imaginaram a hipótese de um juiz mandar prender um candidato e logo depois ser nomeado ministro pelo candidato beneficiado com o afastamento do outro. Sei lá, é algo até difícil de explicar, talvez contra a constituição do bom senso, algo que devia ser proibido pela lei da natureza.

Mas como há no governo quem defenda que a terra é plana, nada mais surpreende. E para mostrar que não deve surpreender mesmo, o presidente eleito, depois de jurar sobre a Constituição Federal, diz que prometeu ao juiz uma vaga no STF antes de ele assumir o Ministério.

Em seguida surgem as conversas do juiz que prendeu o candidato, já nomeado ministro, com o promotor do processo, e descobre-se que não houve julgamento, mas um acordo de condenação, tudo combinado, tudo discutido sem a participação da defesa.

Aí foram por água abaixo os princípios do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal, entre outros que estão implícitos na própria atividade de julgar, todos da tão maltratada e combalida Constituição Federal.

Se antes esses princípios já pareciam desprezados pelo juiz ao mandar conduzir coercitivamente o réu, ao publicar interceptação telefônica que não era de sua competência e ao mandar descumprir ordem de desembargador que entendia pela soltura do ex-presidente, vindo à tona as conversas do promotor com o juiz, desfere-se o golpe fatal em tudo que a Constituição representa em termos de justiça.

A sociedade aplaudindo, porque ela mesma não se vê como um conjunto de cidadãos passíveis de sofrerem a mesma arbitrariedade, ou seja, a de ser julgada por um juiz que dialoga tão somente e em segredo com a outra parte.  A visão individual de cada um anula a visão de coletividade que permite o debate político, é cada um por si. Aliás só a figura de um juiz combatente já devia transparecer o paradoxo, juiz não devia combater nada, juiz devia ser somente juiz.

Talvez a Constituição seja mesmo só uma peça de um teatro de hipocrisia em uma sociedade em que crianças recém-nascidas estão no sinal de trânsito pedindo esmola, mas, olhando da minha perspectiva, essa hipocrisia ainda mantinha um ar de limite, uma fronteira nos dividindo da naturalização do absurdo.

Doce ilusão. Como dizia a faixada de uma penitenciária, “já que veio, seja bem-vindo”. E, nesse ponto, nos encontramos com milhares de brasileiros que nunca puderam se defender com a Constituição Federal, sejamos bem-vindos ao absurdo.

 

Redação

6 Comentários

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  1. A constituição equivale a um tratado de paz. Quando seu guardião (o STF) a transforma em papel de bunda usado a guerra civil se torna inevitável.

  2. Caro Dr. Valois,
    Sua angustia é a nossa, a minha. Seu desespero é compartilhado. Como compartilhado é o sentimento de impotência que acompanha a vontade, ou melhor, a necessidade de parar-se a insensatez.
    A sensação é de isolamento, de desemparo ao vermos que não somos protagonistas do nosso destino, essa ilusão cultivada pela minha geração. Iniciamo-nos na política, na conscientização do nosso papel de cidadãos, como agentes do avanço da Democracia e do que chamamos princípios civilizatórios nas escolas e universidades desse país, nas fábricas e nas ruas. Esse despertar se deu quando dos estertores da ditadura ao que seguiram-se a Constituição Cidadã e governos eleitos. Andando com dificuldades, pela falta de hábito, avançamos. Óbvio, não alcançamos os objetivos, em muitas áreas nem chegamos perto, em outros parcialmente registramos êxitos. Porém, com todos os percalços, com todas as dificuldades inerentes a um processo de transformação social tínhamos a certeza de que estávamos andando, de que o caminho estava sendo percorrido e de que, cedo ou tarde, chegaríamos a um bom destino. Se essa chegada triunfal não acontecesse em nosso tempo, aconteceria no tempo de nossos filhos ou de nossos netos, não importava quando. O que de fato importava era que chegaria e que sabíamos estar contribuindo para um hoje melhor que ontem e de ter contribuído para um amanhã melhor. Isso bastava.
    De repente o tombo, a rasteira e a dor. Não da queda, a essa estamos acostumados, mas, pela primeira vez em muitas décadas e pela primeira vez na nossa geração, a dor da derrota. Não uma simples derrota, mas uma derrota que se consolidada far-se-á definitiva, ao menos para nós, os da geração na qual muitos ousaram a construção de um Brasil diferente.
    O que fazer agora? Não sei. O que sei é que não podemos desistir. Seria abrir mão de todos os nossos princípios e do que trouxe-nos até aqui. Não há como deixar de herança um pais lobotomizado. Sem líderes nem projeto de futuro, entregue à própria sorte.
    Quando frente a um desabafo como o seu, frente às minhas próprias inquietações, em primeiro sinto-me só e desassistido, para, em seguida, reagir raciocinando. Se ambos pensamos de forma semelhante e temos os mesmo anseios eu não estou só, se somo 1+1 já são 2. Suponho que existam outros e, passo-a-passo, vejo-me em meio a uma multidão. Somos milhões! Isolados, separados, desamparados e perdidos. É preciso não resignarmo-nos, irmos à luta a brigar pelos nosso ideais. Fazermos dessa luta um rotina de inconformismo, denúncia e combate diário, onde quer que estejamos e nas oportunidades que nos derem. Enquanto o espírito de luta permanecer bastará a oportunidade surgir e estaremos unidos e prontos. Basta não desistirmos.
    Receba toda a minha solidariedade e um abraço fraterno, estendido a todos os irmãos brasileiros quem, como nós, têm como ambição a construção de uma sociedade mais inclusiva, mais justa e mais livre.

  3. O uso da Penitenciária como exemplo é ótimo. Quando esta tal fraudulenta e farsante Constituição olhou para os Presídios? E quando nossas Elites Esquerdopatas o fizeram? São 40 anos de Redemocracia, 30 apenas sob o manto desta caricatura que chamamos de Constituição. Extensão de 88 anos de Estado Ditatorial Absolutista Fascista. Sites de Notícia censuram descaradamente, enquanto seus Jornalistas e Diretores bradam pela Livre Imprensa, Livre Direito de Expressão, Democracia, Liberdades,… É Surreal !! Seria trágico senão fosse trágico. É o pais das Elites da Bipolaridade, da Redundância !!! Mais de 3 Alqueires de terreno (80.000M2), sendo mais de 1 Alqueire de construção (30.000 M2) para a Cidade do Samba em plena Marginal Tiête (uma das regiões mais valorizadas da Capital Paulista de Montoro, Lula, FHC, Erundina, Marta, Haddad,…), onde as pontes despencam sem manutenção e CRIANÇAS não tem Creches para desespero e mais dificuldades de seus pais. Nossas Elites, que dizem não serem Elites (são sempre os outros) só enxergaram agora a falta de Constituição? O óbvio continua de difícil compreensão. Qual Constituição, esta do ‘ Estado Varguista ‘, como disse Nassif para Juca Kfoury? Estado Varguista. Assentado em Golpe Civil Militar. Em Ditadura. Em Caudilhismo. Em Assassinatos e Perseguições. Em Prisões Políticas. Em Legislações Fascistas. Este Novo Governo quer colocar alguma coisa neste lugar? As Elites, como toda Aquela da República de Juiz de Fora (De onde vem Nassif e Kfoury? E Tancredo? E JK? E Moreira Salles? E Itamar? E Aécio?) Não pode permitir isto !!!! O que exigirão a seguir? Representatividade?!! Voto Livre e Facultativo?!! Um Presidente Paulista?!!!! Pelo Amor de Deus !!!!! Pobre país rico. mas de muito fácil explicação.

  4. Lamentavelmente, votou-se em Bolsonaro por falta de opção razoável mas ele decepciona. Privilegia o poder economico e destroi a previdência pública, em proposta de reforma feita por banqueiros que serão os beneficiários da reforma. Paulo Guedes é cínico e defende pagar benefício abaixo do mínimo quando não temos um salário mínimo constitucional. O Paraguai paga mínimo superior ao nosso e isso já diz muito.https://jornalggn.com.br

  5. “Infelizmente, os senadores de oposição estavam cochilando…”

    Desde um pouco antes do golpe contra Dilma a oposição está cochilando

    e prolongaram o feriado com o final de semana, e provavelmente estão tomando uma cervejinha com o Queiroz

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