Não, não é “normal” a promiscuidade entre juiz e parte. Não é, mesmo!, por Lenio Luiz Streck

Resumo: uma coisa ficou marcada e institucionalizada na audiência no Senado desta quarta-feira (19/6) — a de que é normal a promiscuidade entre juiz e membro do MP. "Isso é normal." Será?

Foto O Globo

do ConJur

Não, não é “normal” a promiscuidade entre juiz e parte. Não é, mesmo!

por Lenio Luiz Streck

Benjamin Franklin dizia: “A cada minuto, a cada hora, a cada dia, estamos na encruzilhada, fazendo escolhas. Escolhemos os pensamentos que nos permitimos ter, as paixões que nos permitimos sentir, as ações que nos permitimos fazer. Cada escolha é feita no contexto do sistema de valores que elegemos. Elegendo esse sistema, estamos também fazendo a escolha mais importante de nossas vidas”.

Na semana passada, ainda no calor dos acontecimentos, falei em diversos veículos que o Direito brasileiro já não seria mais o mesmo: DAI-DDI (Direito Antes de Intercept – Direito Depois de Intercept). Mantenho o que disse. Mas, como disse Ben Franklin, estamos na encruzilhada.

Então é hora de escolher. A mudança será para pior ou para melhor? Qual é o sistema que vai guiar nossas escolhas a partir daqui? Será o atropelo da legalidade e seu consequencialismo ad hoc? Como serão vistos, a partir de agora, a Constituição, o CPP, seus princípios e garantias? Escolheremos, afinal, o Direito ou a barbárie?

Tudo vai depender de algumas coisas como: acha(re)mos normal que juiz não tenha imparcialidade? Concorda(re)mos que juiz possa ser acusador? Juiz pode “comandar” o atuar do MP?

Nossas respostas decidirão o futuro do Direito no Brasil. E, atenção: não esqueçamos que vivemos sob a febre de que temos um sistema de precedentes. Pois se ficar decidido que juiz que fez tudo o que fez Moro é um “juiz normal e legal”, então, pelo precedente que daí exsurgirá, todos os juízes poderão fazer o mesmo. E os membros do Ministério Público também poderão fazer o mesmo que Dallagnol. Eis a escolha: Estado de Direito ou Estado à margem do Direito[1].

Não se pode tapar o sol com uma peneira. Jornalistas e jornaleiros (assim como incontáveis juristas, como, por todos, Marcelo NobreÉrica GorgaJuarez TavaresLeonardo Yarochewsky e o contundente artigo de Miguel Weddy no jornal Zero Hora, intitulado “A Linha”) já sabem de tudo. No âmbito do jornalismo, basta ler de Reinaldo Azevedo a Pompeu de Toledo, passando por Jânio de Freitas, Dora Kramer, Élio Gaspari… Todos reconhecem e apontam o agir ilegal de Moro e Dallagnol[2]. Ou toda essa gente está equivocada, fazendo parte de uma espécie de conspiração?

E a trama é maior do que os vazamentos indicam, pois já se via no agir de Janot (enquanto houver bambu, vai flecha, lembram?) quando à testa do CNMP e PGR, dando a Dallagnol a mesma proteção que o CNJ, o TRF-4 e o STF deram ao agir de Moro (lembremos do episódio da divulgação das escutas telefônicas de Lula e Dilma, que, como se pode ver, o vazamento foi fruto de combinação de Moro e Dallagnol, dando para ler Moro dizendo: “não me arrependo de ter divulgado”, enquanto pedia desculpas insinceras em longa carta escrita ao STF).

Alguém, depois de tudo, ainda tem dúvida de que o agir (estratégico) de Moro e Dallagnol, enfim, da “lava jato” como um todo, foi um exercício de lawfare, o uso político do Direito contra inimigos? E veja-se que isso era tão cuidadosamente planejado a ponto de não querer que amigos fossem melindrados (Intercept de 18/6). E o procurador chega a dizer que a investigação contra FHC — considerada, por Moro, como a possibilidade de melindre de um amigo — era só para demonstrar imparcialidade.

Como disse Élio Gaspari, Moro e Dallagnol se autoenganam, assim como aqueles que não querem enxergar o conjunto de ilegalidades praticadas. Um “magnífico” — as aspas estão na moda — exercício de autoengano, escondido na tese da plebiscitação do escândalo, pelo qual não importa se a “lava jato” agiu ilegalmente; o que importa é saber se você é a favor ou contra a “lava jato”, como se o Brasil pudesse transformar esse escândalo em um simples Fla-Flu. Ou em um programa do Ratinho.

Indubitavelmente, plebiscitar o escândalo — como denuncia Gaspari — é fazer pouco da inteligência de uma boa parcela da população. E ignorar os efeitos colaterais dessa quebra da legalidade.

Vamos esconder as ilicitudes e praticar um consequencialismo ad hoc?
O que fazer com todas as ilegalidades? Juristas e jornalistas já apontaram o elenco de elementos que apontam para a quebra da imparcialidade. Este é o ponto. No depoimento ao Senado, questionado pelo senador Kajuru, Moro chegou a dizer que a indicação de uma testemunha à Dallagnol tinha sido uma notitia criminis enviada via mensagem (repasse de notitia criminis). Dizer o que sobre isso? É a primeira vez que um juiz faz notitia criminis via mensagem de telefone para o próprio órgão acusador que iria se beneficiar desse depoimento. Isso é normal?

Moro e Dallagnol, no início, não negaram o conteúdo dos diálogos. Depois passaram a colocar em dúvida. Mais tarde ainda, passaram a dizer que não se lembram ou que é impossível autenticar tais conteúdos. Dizer que as mensagens são produto de crime não basta, porque se sabe que prova ilícita pode ser utilizada a favor do mais débil, o réu.

Assim, na medida em que o CPP é claro no sentido de que é suspeito (artigo 254) o juiz que aconselha a parte e isso é causa de nulidade absoluta (aliás, sempre alegada pela defesa do ex-presidente Lula), parece que não restará outro caminho que o da anulação da ação penal ab ovo. O melhor conceito de parcialidade e/ou suspeição foi do jornalista Roberto Pompeu de Toledo, na Veja:

“Quando [o juiz] sugere a uma [das partes] que vá atrás de determinadas provas, age como juiz de futebol que, tomado pelo ardor torcedor, ousasse um passe para o atacante na cara do gol”.

Resta saber o caminho que será usado para chegar a esse desiderato, questão afeta à defesa e até mesmo, de ofício — face à nulidade absoluta — ao próprio Supremo Tribunal Federal no caso do julgamento do Habeas Corpus pautado para a próxima terça-feira (25/6).

O Judiciário não pode adotar uma postura consequencialista, algo do tipo “o fato está consumado” e/ou “que seria inviável anular uma ou mais ações penais”. Não se negocia com nulidades. Doa a quem doer.

O que resta(rá) de tudo isso é o efeito ex nunc. Qual é o precedente que exsurgirá? O Direito no Brasil é DAI e DDI. A ver quem vencerá: o Direito, representado no projeto civilizatório do devido processo legal, ou a barbárie de “os fins justificam os meios”. Teremos que escolher.

Numa palavra final, como bem diz o jornalista Jânio de Freitas, “os que apontaram as condutas transgressoras da Lava Jato foram muito atacados, mas eram os que estavam certos”.

Pois é. Fui muito atacado. Mas estou convicto de que as centenas de páginas que escrevi estavam corretas, mesmo que Dallagnol me considere um jurista entre aspas…!

Enfim, comecei e termino com Benjamin Franklin: estamos fazendo a escolha mais importante de nossas vidas. Dela depende o futuro do Direito.

Post scriptum: Promiscuidade é uma coisa normal?

De tudo o que está se vendo, a coisa é pior do que se pensa. Ficamos sabendo, depois da audiência do Senado, pela boca do ex-juiz Moro e de parlamentares aliados, que é da tradição jurídica brasileira essa “coisa” de “comunicação entre juiz e procuradores” e quejandos. Tradição? Disse-se a mil bocas que “quem está lá dentro sabe como funciona”. É mesmo? Ora, há que se ter cuidado para não confundir as coisas. Explicarei.

Um estrangeiro, ouvindo o ministro Moro, diria que, se isso é verdade, não é séria a Justiça brasileira. E concluirá que, se Moro está certo, os brasileiros estão com sérios problemas. E digo eu: se tudo isso é normal, temos de estocar alimentos.

Todavia, na contramão, proponho que façamos um raciocínio diferente: para preservar a honra dos juízes e membros do MP desse Brasil, quem sabe não devamos dizer: isso não é normal. Isto é, devemos dizer que a frase “isso é normal” é ofensiva aos magistrados brasileiros. E admitamos que, sim, Moro e Dallagnol erraram. Isso que os dois fizeram não se confunde com os contatos diários que advogados fazem com juízes pelo Brasil afora. Isto é, o problema está no conteúdo dos contatos, dos diálogos. Ali está demonstrada a quebra da imparcialidade. O ponto é esse.

Por isso, é profundamente ofensivo aos advogados confundir o enunciado performativo “é normal esse tipo de contato e conversação” e chamar a isso de embargos auriculares (sic). Isso está sendo dito para confundir. Ora, advogados têm direito de falar com juízes e membros do MP sobre seus processos. O que não é normal é o juiz aconselhar uma das partes. Isso é que não é normal.

Essa confusão acerca do “isso é normal” faz muito mal ao relacionamento entre advogados e magistrados. Contatos cotidianos feitos por milhares de advogados não podem ser “misturados” — nem contaminados — com essa relação entre Moro e Dallagnol.

Aliás, se “isso é normal” (sic), então que Moro apresente alguma outra mensagem similar trocada com algum advogado, com aconselhamentos similares aos dados a Dallagnol. Ou que se apresente uma única “notitia criminis” (aqui as aspas são necessárias) já feita por algum juiz via WhatsApp ao MP tratando do assunto com o próprio acusador interessado no depoimento da pessoa envolvida na tal “notitia”. Afinal, se é “normal”… Esse é o busílis.

Por isso, parem com esse enunciado “isso é normal”.


[1] Aliás, o senso de humor dos brasileiros é incrível: já existe uma brincadeira que rola nas redes sociais dizendo que, se a tese de Moro vingar, os advogados vão querer ter o telefone pessoal do juiz (será um direito fundamental), poder trocar uats ou Telegram com ele tratando da causa de forma bem intimista, com direito a kkks (direito líquido e certo), pedir dicas e, melhor, receber dicas (decorrência lógica da relação juiz-parte na nova política). Isso, é claro, sem “comprometer a imparcialidade…”! Esse povo brasileiro…!
[2] Aqui um parêntesis: fui promotor e procurador durante 28 anos. E a pior “pergunta” que tinha de ouvir era: quando você será juiz? Ou até a brincadeira infame: você é bandeirinha do juiz. Pois não é que Dallagnol reforçou esse imaginário preconceituoso contra a função do MP? Além de tudo o que fez, Dallagnol dará azo a um monte de piadinhas… Era o que faltava.

 é doutor em Direito (UFSC), pós-doutor em Direito (FDUL), professor titular da Unisinos e Unesa, membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional, ex-procurador de Justiça do Rio Grande do Sul e advogado.

Redação

10 Comentários

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  1. Nos diálogos revelado pelo TIB, quando o Deltan repassa ao Moro dados de uma delação, ao dizer que há 9 presidentes e mais um tanto de outros políticos relacionados, não estariam eles inviabilizando aquela delação, já que a mesma ainda não havia sido homologada?

    1. Ele informou, posteriormente, que os 9 eram (presidentes e candidatos a presidente)

      __________
      Moro, em resposta dada e documentada pelo intercp e não contestada como contra legis

      Para mim.

      Os 30 por cento, são 3 governos ( 2 de Lula, 1 de Dilma)

  2. A pergunta que fica é:
    pode um juiz ser o grande responsável pelo sucesso de uma força tarefa, sendo premiado como herói destemido, tendo aceito tal conceito e prêmios dados por instituições controladas por poderosos e, ao mesmo tempo, seguir as regras da magistratura e da constituição?
    Está muito claro que a divulgação das conversas traz evidências materiais daquilo que já se sabia e condenava, por parte das vítimas e seus aliados, e de outro lado se sabia e se tolerava, por parte dos interessados nos resultados políticos e econômicas de tal “operação”.
    Ao aceitar a condição de grande responsável pelo combate efetivo da corrupção, claramente em contrário aos limites de poderes que tem um juiz, Moro se auto delatou. Nem precisava do Intercept.

  3. Mentiras que a incompetente oposição deixa de bater forte para constranger e desmascarar o juizticeiro e seu ridiculo “boss”:
    1) …”relações entre promotores, policiais, etc. com o juiz são ‘normais'”… sim, relações entre adultos e crianças também são normais, desde que não sejam, por ex. sexuais … depende.
    2) Juiz de instrução
    3) O grampo de Lulas e Dilma foi legal: MENTIRA! Sem mencionar o fato de que a “legalidade” (dada por ele próprio) estava EXPIRADA, e apesar de saber disso (e do conteúdo), não só não destruiu a gravação por isso como, ignorou tanto a expiração quanto o fato de conter a presidente da república. Pior de tudo, já havendo 3 ilegalidades (expiração, não destruição e fala presidencial sabida), ainda deu DIVULGAÇÂO imediata e pública à um grampo de investigação em sigilo. Pior, com conteúdo sem evidência de crime.
    4) Armas: NÃO é verdade que o povo decidiu pela posse ou porte de armas no referendo de 2005. A dicisão foi por não proibir a COMERCIALIZAÇÂO de armas, o que desde então CONTINUOU valendo. Pesquisas de opinião pública são claramente contrárias a posse ou porte generalizado, a última por 73% contra.

    Quando a oposição irá processar Bozo, Moro (estes aqui flagrados) e outros de seu inacreditavelmente medíocre governo por MENTIREM PUBLICAMENTE, inclusive ao Senado Federal?!?!?!?!?!?!

    1. No comentário acima, deixei de desenvolver o item “2) Juiz de instrução”: Moro alegou em sua defesa que no Brasil não existe juiz de instrução (como em outros países), onde um primeiro juiz conduz a investigação, decidindo ou não pelo processo, que então é julgado por OUTRO juiz, não envolvido na acusação. Exatamente por aqui ser um mesmo juiz, deve ser MAIS CUIDADOSO AINDA COM A IMPARCIALIDADE.

  4. E necessário o resgate urgente da dignidade e dos princípios que regem a magitratura, barbantemente violentada pela malfadados Lava-Jato (LavaGate). Parabéns ao verdadeiro jornalista Gleen, que nos possibilitou enxergar a realidade.

  5. Para ter crédito novamente, a justiça tinha que prender o Conge, o dalanhinho, o Carlos Santos…pelo menos eles
    Quanto aos demais envolvidos, não importa se são duas centenas de pessoas: tem que serem exonerados, no mínimo.
    Caso contrário, a justiça de Curitiba acaba e a do restante fica bem complicada…

  6. Sinceramente, acho Péssimo, Torpe, este Uso dos Direitos de Lula que foi preso Sem Provas De Corrupção para casos extra pauta.

    Esta preso a mais de um ano!!

    _________

  7. O senhor foi procurador do RS no período do Tarso Genro? Só para controle. Abçs de um colega de profissão que entende que toda essa discussão em cima de provas coletadas de forma indevida ñ tem validade jurídica. Se é que esses diálogos são verdadeiros…vindo de um hacker, tudo é possível, até o de modificar o seu conteúdo!

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