por Kalianny Bezerra*
É bem provável que você conheça e até já tenha usado o bom e velho ditado “quem avisa amigo é”, pronunciado quando se quer prevenir alguém sobre algo que, via de regra, é prejudicial e pode ser evitado. A frase bem que poderia ser adotada por uma série de entidades e organizações jornalísticas que, há pelo menos 10 anos, vêm alertando para um caso que pode abrir precedentes sem limites e causar grande impacto na liberdade de imprensa de profissionais e empresas midiáticas em todo o mundo: a prisão, a possível extradição e o julgamento do editor do site WikiLeaks, Julian Assange, nos Estados Unidos.
Há um mês, o caso teve atualizações e o Reino Unido decidiu extraditar o australiano. Em 17 de junho, a ministra britânica do Interior, Priti Patel, aprovou a decisão da Justiça do país de enviar o fundador do WikiLeaks para os Estados Unidos, onde responde por 18 acusações criminais, das quais 17 estão sob a Lei de Espionagem norte-americana e uma sob a Lei de Fraude e Abuso de Computadores que, combinadas, podem levá-lo à prisão por 175 anos.
Recordemos como essa história iniciou. Em 2010, o WikiLeaks divulgou uma série de revelações que chocaram e indignaram o mundo, lançando luz sobre ações governamentais que violavam diversos direitos. No dia 5 de abril daquele ano, a organização vazou o vídeo Collateral Murder, que mostra quando soldados num helicóptero estadunidense disparam contra diversas pessoas em Bagdá. O conteúdo é de 2007 e mostra 12 civis, entre eles jornalistas que colaboravam com a Agência Reuters, sendo atingidos e mortos. Daquele ponto em diante, novos vazamentos sobre a atuação militar dos Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque são realizados, revelando ações brutais das forças armadas contra a população dos dois países.
Entretanto, foi a partir de 28 de novembro de 2010 que Assange e o WikiLeaks passaram a ser alvo de ataques cada vez mais sistemáticos. Nessa data em diante, a organização publicou um conjunto de mais de 250 mil documentos do Departamento de Estado dos EUA em que foram apontados detalhes da comunicação entre o país e mais de 270 embaixadas ao redor do mundo, expondo segredos da diplomacia estadunidense – mais tarde, descobriu-se que a responsável pela entrega dos documentos era a ativista e ex-combatente americana Chelsea Manning.
Essa grande operação, denominada Cablegate e comandada por Assange, foi também um dos maiores vazamentos de documentos da história do jornalismo – de lá para cá já tivemos o Panamá Papers, em 2016, e o Pandora Papers, em 2021 – contando com o trabalho colaborativo dos veículos The New York Times, The Guardian, El País, Le Monde e Der Spiegel. A única repórter brasileira a colaborar com a equipe do WikiLeaks no Cablegate foi Natália Viana, da Agência Pública, que coordenou a parceria junto a veículos nacionais e contribuiu para publicação de documentos sobre o Brasil.
A saga jurídica de Assange iniciou um pouco antes das primeiras divulgações do Cablegate, quando a Suécia emitiu mandado de prisão internacional ao hacker com alegações de que ele havia cometido crimes sexuais no país – o arquivamento das acusações ocorreu em 2019. Naquele mesmo ano, ele se entregou à polícia do Reino Unido, sendo solto após pagar fiança. Em 2012, após ter sido acusado de violar os termos dessa mesma fiança, Assange refugiou-se na embaixada do Equador, em Londres, onde ficou até abril de 2019, quando também é acusado de violar repetidamente os termos do seu asilo político. Isso permitiu que a polícia londrina o prendesse e o detivesse na prisão de segurança máxima de Belmarsh, na capital inglesa, local onde segue isolado até os dias atuais.
Com a prisão de Assange, o governo do então presidente Donald Trump retoma o seu processo de extradição. As audiências nos tribunais do Reino Unido para impedir que Julian fosse levado a julgamento no país norte-americano foram iniciadas em 24 de fevereiro de 2020; a emissão da ordem de extradição pela justiça britânica ocorreu em 20 de abril de 2022 e, como já destacado, em 17 de junho o ministério do Interior emitiu seu parecer e aprovou a ordem. Em 1º de julho, o fundador do WikiLeaks recorreu da decisão e, agora, um novo encontro nos tribunais deverá ser marcado.
Alerta à liberdade de imprensa
Liberdade de expressão é um direito fundamental e a liberdade de imprensa é um dos componentes essenciais de um regime democrático, por isso o caso de Assange preocupa diversas organizações jornalísticas e entidades que lutam pelos direitos desses profissionais ao redor do mundo, entre elas estão Federação Internacional de Jornalismo, Repórteres sem Fronteiras e Artigo 19. No Brasil, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), a Associação Profissão Jornalista (APJor) e a Assembleia Internacional dos Povos (API) também fazem eco contra as acusações sofridas pelo editor do WikiLeaks.
Se um dos princípios democráticos é a construção de uma sociedade plural e tolerante, é necessário, para isso, construir pilares informacionais para que a sociedade possa compreender e construir debates em torno de temáticas que dizem respeito a ela, e assim fazer escolhas mais acertadas. O jornalismo contribui para descobrir e apresentar essas informações, servindo ainda de fiscalizador público, daí essas organizações reforçarem que a opressão e os ataques feitos contra o editor do WikiLeaks representam uma ameaça à liberdade de imprensa e informação em todo o mundo.
É sempre importante lembrar que, se Julian Assange for extraditado e julgado nos Estados Unidos, isso abre precedentes para que jornalistas ao redor do globo também estejam suscetíveis a ataques. Afinal, se qualquer vazamento e denúncia praticada por veículos de imprensa for inconveniente, o discurso de que esse é um ato ilícito e deve ser criminalizado pode ser facilmente adotado.
E, se uma coisa leva a outra, a extradição de Assange também pode refletir no receio das redações em explorar determinados assuntos e publicar materiais vazados devido ao medo de serem punidas. Os veículos de imprensa podem acabar, portanto, praticando o sutil e perverso movimento da autocensura, abdicando do seu papel de fiscalizador público.
Não dá para olhar para o outro lado…
Não é difícil imaginar governos fazendo uso dessa prática para minar a atuação do jornalismo. Em especial quando nos deparamos com um cenário crescente de violência e ataques à liberdade de imprensa em todo o mundo. Os exemplos, infelizmente, são muitos. Em maio deste ano, a correspondente da Al Jazeera, Shireen Abu Aklen, foi morta enquanto cobria uma incursão militar israelense na Cisjordânia. O desrespeito é tanto que, durante o velório, tropas de Israel atacaram pessoas que acompanhavam o funeral. No México, 12 profissionais foram assassinados só este ano, enquanto a população e os profissionais assistem à inércia do governo do país que não realiza investigações eficazes para apontar os responsáveis.
No Brasil, o Relatório da Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa de 2021, publicado pela Fenaj no início deste ano, mostra que o número de agressões sofridas por jornalistas e veículos de comunicação foi o maior desde que os dados começaram a ser catalogados, na década de 1990. Ao todo, 430 casos foram computados, entre censura, descredibilização, agressões verbais e físicas, ameaças e outras formas de violência, sendo o próprio presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, responsável por 147 dos casos.
Mais recentemente, o assassinato do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira, na região do Vale do Javari, na Amazônia, chocou a população brasileira e internacional. Chocou também a omissão das autoridades nacionais, claramente espelhadas na apatia de Bolsonaro, em responder ao desaparecimento e, muito antes, aos alertas de violência contra povos indígenas – também fruto do desmonte de políticas públicas do atual governo.
Em um momento em que 80% da população mundial vive com menos liberdade de expressão que há 10 anos, é importante lutar pela garantia dos direitos de profissionais de imprensa. O que está acontecendo com Julian Assange não pode ser ignorado, é um caso de ameaça à liberdade de expressão, de imprensa, de desvio da atenção para o que realmente importa, retirando do público seu direito de saber. É como destaca a Artigo 19, “não dá mais para olhar para o outro lado…”.
*Kalianny Bezerra é doutoranda do PPGJOR/UFSC e pesquisadora do objETHOS
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