Daniel Afonso da Silva
Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de "Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas". [email protected]
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O Papa Francisco e o ocaso da globalização da indiferença, por Daniel Afonso da Silva

Tempos de renovação e superação. Tempos de Francisco. Tempos de afirmação de Igreja de pobres e com os pobres, ao estilo de São Francisco de Assis.

Foto Vatican News

O Papa Francisco e o ocaso da globalização da indiferença

por Daniel Afonso da Silva

O Papa Francisco iniciou o seu pontificado, dez anos atrás, com bafejos eloquentes de mudança no interior da Igreja. Seu primeiro gesto foi pedir aos fiéis que orassem por ele em lugar de ele lançar a sua santa benção ao encontro dos fiéis, que se acumulavam aos milhares, na Praça de São Pedro, naquele 13 de março de 2013. Sua primeira viagem além-Vaticano foi ao sul da Itália, a Lampedusa, no dia 8 de junho de 2013, onde toda a miséria do mundo vinha plasmada nas barcas de imigrantes que fugiam do Armagedão dos estados falidos do Oriente Médio e da África. Num gesto inédito de solidariedade papal, nessa ocasião, o antigo cardeal de Buenos Aires lembrou a todos que acolher quem tem sede e fome é um princípio católico e um imperativo da fé cristã. No ano seguinte, foi a vez de lembrar ao presidente Barack H. Obama que os embargos norte-americanos a Cuba e aos cubanos eram imorais, inconsequentes, improcedentes e anticristãos.

Esses dois movimentos, entre muitos outros, cunharam a marca de novos tempos para a Igreja, para a fé católica e para a influência da Igreja Católica sobre as diversas manifestações da fé cristã. Tempos de renovação e superação. Tempos de Francisco. Tempos de afirmação de Igreja de pobres e com os pobres, ao estilo de São Francisco de Assis.

O Papa anterior ao Francisco, Bento XVI, promovera o feito extraordinário de renunciar à digníssima condição de sucessor de São Pedro. A crise moral da Igreja chegara a níveis públicos tais que impedia, segundo ele, o avanço do evangelho. O “Vatileaks”, revelado ao longo de 2012, jogava lenha e gasolina na fogueira da malversação da fé e na ruína da imagem da Igreja. A ética espiritual e a moral terrena namoravam com um inquestionável colapso.

A revelação de relações espúrias do Banco do Vaticano com operadores do black market conduziu esse erudito homem de Letras alemão transvestido em Papa a renunciar e, conseguintemente, dissolver a horda de falsários que tomava conta do Vaticano. Há quem entenda que esse foi o sacrifício pessoal mais importante para o salvamento da Igreja em toda a história do catolicismo.

De toda maneira, quando o Habemus Papam soou para cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio, ainda existia uma mácula que precisava ser eliminada. Mas não era simples nem fácil destituir contradições de quase um século de Igreja Católica Apostólica Romana com função estatal e lugar importante no concerto de nações.

É verdade que a tensão entre os mundos do espírito e os mundos da contingência terrena remonta aos tempos de Constantino, no mundo antigo. Mas foi com o Papa Pio XI, após a primeira Grande Guerra, de 1914-1918, que essa situação ganhou aceleração.

No dia 11 de fevereiro de 1929, após uma longuíssima negociação, a sua Santidade o Papa recebeu, em sua residência oficial, no Palácio de Latrão, o duce Benito Mussolini para se consumar o soerguimento do Vaticano ao estatuto de estado independente e de propriedade da Igreja Católica. Era claríssimo ao duce que era impossível governar os italianos sem a solidariedade da Igreja. Do mesmo modo, ia evidente à cúria romana a importância política e moral do cristianismo e do catolicismo após a hecatombe de 1914-1918.

Os 44 hectares cedidos por Mussolini para virar território da Igreja no Vaticano, no coração de Roma, era tudo que se necessitava para se iniciar a harmonização desses interesses.

Em 1933, com ascensão de Hitler ao poder, a Igreja conheceu o seu maior desafio naquela primeira metade do século 20 e, talvez, em toda a sua história contemporânea. O líder nazista alemão colocava em questão a legitimidade de todas as espiritualidades e confissões de fé. O cristianismo, o judaísmo e o catolicismo passaram a ser, desse modo, abertamente, combatidos.

A reação do Papa Pio XI veio, imediatamente, no dia 20 de junho de 1933, com a promoção de um acordo diplomático para que o partido cristão alemão salvaguardasse a sorte dos católicos na Alemanha. Mas de nada adiantou. Hitler, tão logo soube do acordo, mandou dissolver o partido cristão.

Em 1937, o Santo Padre voltou à carga e fez publicar, na imprensa do mundo inteiro, uma encíclica sobre a Situação da Igreja no III Reich. Uma vez mais, a fúria nazista seguiu implacável. Não contentes com simplesmente ignorar o teor da encíclica, os nazistas alemães orquestraram, em 1938, o episódio que entrou para a História como a “noite dos cristais”, com o saque e a profanação de sinagogas por toda a Alemanha.

Em janeiro de 1939, o Papa Pio XI escreveu uma nova encíclica com um novo apelo. Um apelo que conclamava todas as igrejas católicas da Europa a combater o antissemitismo e a dar amparo aos judeus perseguidos na Alemanha. “Somos todos, espiritualmente, semitas”, diria ele. Mas, por obra do destino, ele morreria no 10 de fevereiro de 1939, antes de assinar e fazer publicar a encíclica.

O seu sucessor, Pio XII, foi, rapidamente, imobilizado e censurado por Mussolini. A nova Grande Guerra já avançava pela Polônia. Aliados começavam a se mobilizar para conter a Alemanha. O fascismo na Itália ganhava feições mais radiais e também nazistas. E a parceria ítalo-alemã, entre Hitler e Mussolini, virava insofismável. Nesse contexto, o maioral da Igreja, sem suportar a pressão, preferiu a neutralidade. Uma neutralidade que custaria caro à instituição, ao cristianismo e ao catolicismo. Mesmo que, durante a ocupação de Roma, em 1943, muitos judeus tenham sido salvos pela cúria romana e pelo próprio Papa, após a guerra, ficou impossível defender aqueles que haviam coonestado com extremismos do conflito.

Esse mal-estar conduziu a uma crise profunda na Igreja Católica que só começaria a ser remediada no papado de João XXIII a partir de 1958.

Entendido como um Papa de transição entre o passado e o futuro do catolicismo no século XX, João XXIII surpreendeu a todos com a convocação do Concílio do Vaticano II, cujo objetivo era modernizar a Igreja e localizar o seu lugar no mundo após as tragédias globais de 1914-1945.

A partir de 1962, cardeais do mundo inteiro tomaram o Vaticano para discutir e deliberar sobre esses desafios. Mas no 3 de junho de 1963 o Papa morreu e os trabalhos foram descontinuados.

O seu sucessor, Paulo VI, deu continuação ao Concílio. Mas não com o tom quase revolucionário entoado na véspera. A questão do celibato dos padres, por exemplo, nem foi tocada. Mas, de toda sorte, o Concílio foi concretizado.

Após o Concílio, o papado rendeu-se conta da dimensão material da Igreja. Percebeu-se que a instituição, por ser um estado com vocação e pretensão mundiais, vivia mais do vil metal que de homilias. Para suprir essa demanda, a partir de 1970, o Banco do Vaticano começou a interagir com agentes não necessariamente frequentáveis para angariar recursos financeiros para a Igreja.

Ao que tudo indica, desde então, toda sorte de operadores de recursos da Máfia, especialmente da Cosa Nostra, e de partidos políticos não necessariamente convencionais passaram a transitar recursos pelo Banco do Vaticano como o objetivo de “clareá-lo”.

A morte de Paulo VI e a ascensão de João Paulo I não modificou essa trama – o papado de João Paulo I durou trinta dias. A ascensão de João Paulo II menos ainda. Do contrário, com o Papa João Paulo II essa prática aumentou.

Não restam dúvidas sobre a relevância e a excepcionalidade do Papa vindo da Polônia. O cardeal Wojtyla foi o primeiro não italiano sucessor de São Pedro em mais de mais de cinco séculos de história da Igreja Católica Romana. Foi o primeiro Santo Padre vindo de um país dominado pelo comunismo. Foi o primeiro a ter um verdadeiro tino político, diplomático e pragmático para gestão da fé depois de Pio XI. E foi uma personalidade decisiva na aceleração do fim da URSS.

Aquela sua missa histórica em Varsóvia, naquele 2 de junho de 1979, inaugurou a distensão do regime na Polônia e aproximou os Estados Unidos do presidente Reagan da cúria romana.

O colapso do socialismo real lançou a Igreja e o Papa nos desafios da globalização. João Paulo II foi, praticamente, voz solitária na denúncia dos riscos de uma sociedade pós-teísta que ali se afirmava e acelerava. A carnificina nos Balcãs foi outro momento de participação eloquente do Papa polonês. Esse herdeiro intelectual do Santo Padre Pio antevia naquele conflito o aprofundamento a agudização do “conflito de civilizações”; dos ocidentais contra os outros. Ele via, também, ali, uma globalização que impulsionava mais pobreza que prosperidade. Uma pobreza indiferente aos olhos dos estados que não poderia ser indiferente aos olhos da Igreja. Entretanto, esse abaixo à globalização da indiferença tomaria corpo apenas com o Papa Francisco.

O Papa vindo do Sul da América do Sul é quem está levando às últimas consequências esse abaixo à globalização da indiferença. Ele encarna, com seus gestos, a Igreja pobre e com os pobres.

Não restam dúvidas que foi imenso o esforço do Papa Francisco, nestes dez anos de pontificado, para tonificar a dimensão teológica da Igreja e vai continuar gigantesca a sua missão de avivamento da fé primitiva enquanto ele permanecer Papa. Mas caso ele consiga, como se propôs, humanizar globalização e torná-la mais sensível aos desvalidos deste planeta no presente século, ele vai entrar para a História não simplesmente como Papa, mas, certamente, como o maior – talvez, o único – estadista do século 21. O estadista que inaugurou o ocaso da globalização da indiferença.

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.

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