
Um lugar ao sol
por Daniel Afonso da Silva
A nova fase da tensão pela ucrânia completou seu primeiro aniversário neste fevereiro e ainda não existe horizonte para um fim seguro nem para uma paz possível. Desde o seu começo, com a iniciação da operação militar declarada pelo presidente russo no dia 24 de fevereiro de 2022, que vai evidente não se tratar de um conflito convencional tampouco de uma guerra de Rússia versus Ucrânia. As suas questões gerais do problema envolvem o desejo de ressignificação de alguma hegemonia sobre o conjunto do sistema internacional que segue perdendo as suas bases lastreadas em princípios ocidentais que esmaecem.
O fim do mundo soviético e do socialismo real no último quarto do século 20 produziu um aparente vazio ideológico nas quatro partes do mundo. Os liberais defensores da democracia e do mundo livre deixaram de ter clareza estratégica e foco sobre o que, porquê e onde combater. O complexo militar norte-americano, que condicionou parcelas expressivas da performance econômica e do leadership mundial do país, precisou forjar novas estratégias para seguir altivo, ativo e operacional. Francis Fukuyama e a sua tese do “fim da História” ganharam ares triunfalistas por indicar a irresistibilidade da democracia liberal como projeto doravante. Mas a imperiosidade dos ataques de 11 de setembro de 2001 realizou uma verdadeira revanche da história daqueles a quem esse “fim da história” – leia-se, a democracia liberal – seria imposto. E, desde então, desde a destruição das Torres Gêmeas, os Estados Unidos promovem a ressignificação de conflitos em vários continentes para seguir impondo a sua força e o seu poder.
A crise financeira mundial de 2008 foi, sim, um momento diferente, com bem notaram Carmem M. Reinhart e Kenneth S. Rogoff. A Ásia, a África e os emerging countries, desde ali, passaram a dominar positiva e deliberativamente as agendas internacionais. E, com isso, a tópica do internacionalista francês Bertrand Badie sobre o Ocidente, Europa e Estados Unidos, não estar a sós no mundo parece ter aquinhoado níveis de verdade jamais imaginados tempos antes.
O presidente Barack H. Obama, assim que ascendeu à presidência dos Estados Unidos, em 20 de janeiro de 2009, enfatizou uma retórica de ação exterior condescendente com esse verdadeiro novo tempo do mundo que os ataques do 11 de setembro de 2001 e a crise financeira mundial de 2008 abriram. Em seu principal discurso internacional de relevo daquele ano, ele convocou a África, o Oriente Médio e a Ásia a recomeçar, sob outros termos, alguma relação produtiva com o Ocidente e, especialmente, com os norte-americanos. A new beginning foi o título e a tônica de sua manifestação. Seu esforço visava reabilitar alguma respeitabilidade do conjunto das regras do sistema internacional literalmente rasgadas com a intervenção internacional no Iraque em 2003 sem o aval do Conselho de Segurança das Nações Unidas e resgatar a frações da credibilidade norte-americana perdidas em vários anos de navegação a contravento nesses continentes não, necessariamente, totalmente, ocidentais e ocidentalizáveis.
A verdadeira tempestade perfeita de crises do decênio das Primaveras Árabes iniciadas em 2010-2011 à pandemia de covid-19 do biênio 2020-2021 tornou a face do mundo integralmente irreconhecível e os esforços do presidente norte-americano totalmente ineficazes.
O regime change promovido na Líbia, com o aval dos membros-permanentes ocidentais – França, Inglaterra e Estados Unidos – do Conselho de Segurança, intensificou a anomia migratória de expatriados de todas as partes da África e do Oriente Médio para a Europa pelas rotas do Mediterrâneo. As catadupas de desolados que chegaram às orlas da Itália e inundaram praticamente todos os países europeus impuseram a reversão do adágio do socialista francês Michel Rocard que dizia que não se poderia “acolher toda a miséria do mundo”. Após 2011, notadamente europeus e norte-americanos precisaram, sim, acolher toda essa miséria do mundo que eles próprios, em passados distantes e recentes, haviam auxiliado a produzir.
O Brexit, iniciado com o desespero eleitoral do primeiro-ministro David Cameron no pleito inglês de 2012, estraçalhou os avanços simbólicos da construção europeia e lançou em suspeição a integralidade do mais exitoso modelo de integração em vigência no mundo desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Essa inquestionável entropia da União Europeia desconjuntou a inspiração de vários movimentos de integração regional em construção ou recomposição pelo mundo. Sendo, por exemplo, o Mercosul, um deles.
A emergência de personagens como Donald J. Trump e Jair Messias Bolsonaro a cargos supremos em países democráticos e importantes no cenário mundial representaram, simbolicamente, a aceleração da erosão do sistema representativo liberal. O choque e o féretro de democracias que se notam neste início de século 21, especialmente no Ocidente, produziram e foram produto desses tipos de governantes e a qualidade de suas políticas.
Quando o 24 de fevereiro de 2022 inaugurou os movimentos atuais mundiais de tensão, o “parêntesis ocidental” de quatro a cinco séculos de dominação – mental, moral, intelectual, econômica e racional do mundo – estava acelerando para algum fim. Os relógios dos negócios mundiais já não batiam mais a mesma hora que Londres, Paris nem Nova Iorque. Forças expressivas e determinantes do ordenamento internacionais já transitavam pela Ásia, Eurásia, África e América do Sul. O mistério do BRICS e dos emerging countries que observadores do mundo inteiro tentam decifrar desde o famoso paper do economista Jim O’Neil da Goldman Sachs sobre esses países emergentes foi revelado nas inclementes batalhas com embargos e sanções ante a Rússia neste um ano de conflito. Impedido ou restringido de comercializar ou operar transações em países ocidentais, os russos ampliaram a sua presença fora do Ocidente, aproximaram-se ainda mais da Eurásia, especialmente de China e Índia, e adentraram espaços pela Arábia Saudita, Paquistão, Turquia, Irã, Síria que jamais imaginaram, tão logo, avançar.
Não se trata de russofilia nem de ocidentalofobia. O que ocorre nestes doze meses nas cercanias de Moscou e Kiev representa uma tragédia moral e humana sem precedentes na história do presente século. A agressão inicial dos russos, ao violar a integridade territorial ucraniana, parece uma evidência insofismável. Mesmo sabendo-se que o propósito dos ucranianos era ingressar em organizações europeias e transatlânticas – leia-se, União Europeia e Otan – ferindo as concepções de espaço vital, interesse nacional e soberania dos russos. Trata-se do profundo exercício de exame de consciência coletivo e mundial que toda essa tragédia impõe.
Da mesma maneira que os chineses jamais se esqueceram dos séculos de humilhação ocidental que amargaram, os russos relutam em superar os efeitos dessa mesma humilhação que lhes foi imposta após o desaparecimento da URSS. Poucos países do planeta viram a sua imagem nacional ser tão ostensivamente degradada ao longo da história como a Rússia. Esse país infinito e magistral, sem fronteiras naturais e com a convicção de ser sem limites, deseja um lugar ao sol. Não se trata da promoção de uma “nova guerra fria” nem da reinauguração de um império marinado em alguma ideia de Grande Rússia. Esses herdeiros de Tolstói desejam, como bem nota essa imensa especialista no mundo russo que é a Senhora Helène Carrère D’Encausse, reabilitar a sua sanha de poder e o seu glamour de potência, em algum momento depois do fim da URSS, perdidos. Querem, portanto, um lugar ao sol. Mas todos os países estabelecidos nas melhores paragens que recebem melhores sol – reconheça-se, países ocidentais, notadamente, Estados Unidos e frações de nações europeias – não se imaginam movendo de lugar.
Tudo que se viu e vê nestes doze meses de nova fase da tensão pela ucrânia choca, exaspera e causa perplexidades. Mas decorre de ambições primitivas, profundas e antigas quanto a própria história. Evoca a imperiosidade do desejo de um bom lugar ao sol. E, por ser assim, realiza esses ditames sem fim das tragédias ignóbeis entre as grandes potências que relutam ante a aceleração de sua própria irrelevância e resistem aos imperativos de seu próprio fim.
Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.
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Na Europa não tem sol.