O tempo da Justiça na era da hiperconectividade, por Reynaldo Aragon

Enquanto a justiça avança lentamente, a velocidade das narrativas manipuladas nas redes sociais molda opiniões e relativiza crimes

Crédito: Marcello Casal Jr./ Agência Brasil

O Tempo da Justiça na Era da Hiperconectividade: Entre a Verdade e a Manipulação

Por Reynaldo Aragon

Em pleno século XXI, vivemos em uma era em que a velocidade da informação supera a capacidade das instituições de absorver, processar e reagir aos fatos. O avanço das tecnologias digitais e a hiperconectividade moldaram uma nova dinâmica social: opiniões se formam em questão de minutos, sentidos são ressignificados em horas, e narrativas ganham força em dias, enquanto as estruturas de justiça permanecem presas a tempos deliberativos que demandam meses, anos ou até décadas. 

Esse descompasso entre o tempo da justiça e o tempo da formação de opinião pública representa um dos maiores desafios da democracia contemporânea.  No Brasil, esse fenômeno se manifesta de maneira alarmante. Desde o início do governo de Jair Bolsonaro, crimes de enorme gravidade foram expostos, desde a negligência criminosa na gestão da pandemia de Covid-19, até o roubo de joias, atos golpistas e, mais recentemente, denúncias sobre um plano de assassinato das principais lideranças do país, incluindo o presidente Lula. 

Apesar disso, a capacidade do bolsonarismo de ressignificar esses eventos e relativizar crimes em benefício próprio revela uma característica típica de regimes autoritários: a criação de um ambiente onde tudo é permitido e nada é punível, desde que favoreça a manutenção do poder.

Este artigo reflete sobre como a extrema-direita brasileira, amplamente influenciada por estratégias de guerra cultural e híbrida, manipula a circulação da informação para desestabilizar instituições democráticas. Com fortes investimentos de setores conservadores nacionais e globais, como think tanks norte-americanos, redes sociais e big techs, a produção de sentidos é direcionada para neutralizar investigações e deslegitimar a justiça. 

Ao mesmo tempo, a lentidão do sistema judiciário e a postergação de decisões fundamentais, como a denúncia da PGR sobre Bolsonaro, ilustram como o tempo da justiça pode ser incompatível com a urgência dos desafios impostos pela sociedade hiperconectada. Ao longo do texto, analisaremos como esse descompasso ameaça o Estado Democrático de Direito no Brasil e em que medida ele é explorado pela extrema-direita para fortalecer sua base, relativizar seus crimes e perpetuar sua influência. Discutiremos ainda o papel das Forças Armadas, a influência internacional de conservadores norte-americanos e os riscos crescentes de desestabilização política, especialmente com a aproximação de 2025, um ano que promete ser decisivo para o futuro da democracia brasileira.

O Tempo e a Justiça

A justiça, em sua essência, é um processo que demanda tempo. Ela não deve se curvar à pressa ou aos impulsos da sociedade, pois sua função principal é garantir decisões fundamentadas, imparciais e legítimas. Em um Estado Democrático de Direito, o devido processo legal é um pilar que assegura que cada fato seja investigado, analisado e julgado com rigor, mesmo que isso implique em uma marcha mais lenta. No entanto, no século XXI, essa necessidade de reflexão deliberada enfrenta um adversário poderoso: a sociedade hiperconectada. Redes sociais, big techs e plataformas digitais alteraram fundamentalmente o modo como as pessoas consomem e interpretam informações. A velocidade com que narrativas se formam e se dissipam nas redes desafia os tempos tradicionais da justiça, muitas vezes criando um abismo entre a formação de opinião pública e a execução da justiça formal. A verdade, por sua complexidade e necessidade de análise cuidadosa, frequentemente leva mais tempo para ser compreendida, enquanto a mentira, por sua simplicidade e apelo imediato, tende a se disseminar com maior rapidez.

No Brasil, o impacto desse descompasso é evidente. A recente decisão da Procuradoria-Geral da República (PGR) de adiar para 2025 a denúncia contra Jair Bolsonaro e outros envolvidos em atos golpistas é um exemplo claro de como a lentidão do sistema judicial pode se tornar um terreno fértil para a manipulação política. Enquanto as instituições deliberam, a extrema-direita brasileira, habilidosa em estratégias de guerra cultural e psicológica, mobiliza redes de desinformação para ressignificar os fatos e relativizar crimes graves, como o genocídio da pandemia de Covid-19 ou os atos golpistas de 8 de janeiro. Esse intervalo entre os fatos e o julgamento final permite que narrativas falsas ganhem força, enfraquecendo o impacto das decisões judiciais quando finalmente chegam. Essa tensão entre o tempo da justiça e o tempo da informação levanta uma questão fundamental: como preservar os valores do devido processo legal em um contexto onde as percepções públicas podem ser alteradas em questão de horas? Responder a esse dilema exige não apenas um compromisso com a integridade judicial, mas também uma compreensão estratégica do impacto das novas dinâmicas comunicacionais sobre a formação de sentido e a estabilidade democrática.

A Sociedade 4.0 e o Tempo da Informação

A Sociedade 4.0, marcada pela hiperconectividade, inteligência artificial e automação, trouxe consigo profundas transformações nas relações sociais, políticas e institucionais. No centro dessa nova dinâmica estão as redes sociais, que desempenham um papel fundamental na circulação de informações e na formação de sentido. No entanto, a rapidez com que dados, opiniões e narrativas se espalham nessas plataformas representa um desafio sem precedentes para a democracia e para o sistema de justiça. Nesse cenário, a velocidade da informação supera em muito a capacidade das instituições de verificar os fatos e reagir. As redes sociais não apenas disseminam conteúdos em tempo real, mas também criam um ambiente propício para a ressignificação de narrativas. Um evento que ocorre pela manhã pode, em questão de horas, ser transformado em algo completamente diferente, moldado por interesses políticos ou ideológicos. Isso é particularmente evidente no Brasil, onde a extrema-direita utiliza essas ferramentas para relativizar crimes e consolidar apoio popular, mesmo diante de evidências concretas de má conduta.

Os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023 são um exemplo emblemático. Poucas horas após a invasão das sedes dos Três Poderes, as redes sociais já estavam repletas de narrativas que buscavam justificar ou minimizar o ocorrido. Enquanto as instituições iniciavam o processo de responsabilização e investigação, os bolsonaristas empregavam estratégias de desinformação para transformar agressores em “vítimas” de um sistema que, segundo eles, estaria “perseguindo” cidadãos patriotas. Essa rapidez na manipulação da narrativa contrastava com o tempo necessário para que os fatos fossem devidamente apurados e comunicados à sociedade. Esse descompasso entre o tempo da informação e o tempo da justiça é uma característica inerente à Sociedade 4.0. Narrativas ganham força e consolidam percepções públicas antes mesmo que as instituições possam reagir, criando um ambiente em que a verdade é constantemente desafiada e a justiça, enfraquecida. No Brasil, essa dinâmica tem sido explorada pela extrema-direita de forma sistemática, utilizando as redes sociais como palco para a relativização de crimes como a gestão catastrófica da pandemia de Covid-19, os escândalos de corrupção e até mesmo a tentativa de golpe de Estado. Diante desse cenário, a pergunta que emerge é: como as instituições podem adaptar-se a uma sociedade onde a percepção pública é moldada em tempo real, enquanto a justiça ainda depende de processos deliberativos e criteriosos? Essa é uma questão que não apenas desafia o Brasil, mas também democracias ao redor do mundo, que lutam para equilibrar a integridade de seus sistemas legais com a urgência das demandas da era digital.

O Bolsonarismo e a Relativização de Crimes

O bolsonarismo, enquanto fenômeno político e social, representa um dos exemplos mais explícitos de como regimes autoritários empregam estratégias para relativizar crimes e consolidar poder. Inspirado por práticas fascistas históricas, o movimento utiliza ferramentas modernas de comunicação, como redes sociais e plataformas digitais, para moldar a percepção pública. Crimes que deveriam causar repulsa e condenação social são frequentemente minimizados, justificados ou mesmo celebrados, criando uma cultura de impunidade que enfraquece os fundamentos democráticos. Essa estratégia ficou evidente durante a pandemia de Covid-19. Enquanto o Brasil enfrentava uma das maiores crises sanitárias de sua história, o governo Bolsonaro negligenciou medidas básicas de proteção, promoveu tratamentos ineficazes e disseminou desinformação sobre vacinas. Apesar das mais de 700 mil mortes, a narrativa oficial ressignificou a tragédia como uma suposta luta pela “liberdade” contra restrições impostas por governadores e prefeitos. Para muitos apoiadores, a responsabilidade pela crise sanitária foi transferida para outros agentes, enquanto Bolsonaro era retratado como vítima de um sistema “corrupto” que buscava sabotar seu governo.

Outro exemplo emblemático foi o escândalo envolvendo o roubo de joias recebidas como presente oficial ao Estado brasileiro. Embora as evidências apontassem para um esquema claro de apropriação indevida, a narrativa bolsonarista moldou rapidamente o episódio como uma tentativa da oposição de manchar a imagem do ex-presidente. Essa abordagem transformou o caso em mais um capítulo da suposta “perseguição política” contra Bolsonaro, desviando o foco do crime em si. Os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023 foram talvez o exemplo mais alarmante dessa dinâmica. Em poucas horas após a invasão das sedes dos Três Poderes, as redes sociais bolsonaristas estavam repletas de narrativas que justificavam ou minimizavam o ocorrido. Os agressores foram retratados como “patriotas injustiçados”, enquanto a resposta das autoridades foi pintada como uma repressão autoritária. Essa ressignificação não apenas enfraqueceu a percepção pública da gravidade do crime, mas também fortaleceu a base de apoio ao bolsonarismo.

O que torna o bolsonarismo particularmente resiliente é sua capacidade de transformar crimes em batalhas ideológicas. Em vez de enfrentar a verdade objetiva dos fatos, o movimento se apoia em uma lógica de guerra cultural que relativiza a realidade, moldando-a de acordo com seus interesses. Essa estratégia não apenas protege seus líderes de condenações sociais imediatas, mas também dificulta os esforços de responsabilização judicial, uma vez que a opinião pública já foi contaminada por versões distorcidas dos acontecimentos. A recente denúncia de um plano para assassinar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o vice-presidente Geraldo Alckmin e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes tem sido objeto de relativização por parte de diversos atores da extrema-direita brasileira. O pastor Silas Malafaia, por exemplo, questionou a seriedade das acusações, sugerindo que se tratam de movimentos para incriminar Jair Bolsonaro a qualquer custo. Em vídeo divulgado, malafaia afirmou que “há um movimento para incriminar Bolsonaro a qualquer custo” e criticou a condução do inquérito pelo ministro Alexandre de Moraes, classificando-a como uma “aberração jurídica”. Além disso, o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, referiu-se ao indiciamento de Bolsonaro pela Polícia Federal como um “factoide”, sugerindo que a política precisa focar nos problemas reais do país. Caiado afirmou que “o assunto está sob a jurisdição do Supremo Tribunal Federal, certo? Então vamos aguardar o resultado agora. Se ficar comprovado, vai ser condenado. Mas ficar no achismo, acho que isso não acrescenta em nada”. O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, também defendeu Bolsonaro após o indiciamento, afirmando que há uma “narrativa que carece de provas” e que “é preciso ter cautela e responsabilidade ao tratar de acusações tão graves”. Essas declarações exemplificam como setores da extrema-direita buscam minimizar a gravidade das acusações, argumentando que, na ausência de atos executórios, não haveria crime a ser punido. Essa postura reforça a estratégia de relativização de crimes, característica observada em movimentos autoritários, onde a tentativa de deslegitimar as instituições e seus representantes é utilizada para consolidar narrativas favoráveis aos seus interesses.

A Guerra Cultural e Psicológica

A guerra cultural e psicológica, ferramentas poderosas de manipulação ideológica, são marcas distintivas dos movimentos autoritários modernos. Inspiradas por estratégias históricas, como a luta pela hegemonia cultural proposta por Antonio Gramsci, essas táticas buscam moldar a percepção pública e enfraquecer as instituições democráticas. No Brasil, a extrema-direita se apropriou dessas estratégias para atacar adversários políticos, deslegitimar instituições e manipular narrativas que consolidam sua base de apoio. A guerra cultural no Brasil é travada em múltiplos campos. Intelectuais, professores, artistas e cientistas são frequentemente alvos de ataques orquestrados, retratados como ameaças à moralidade ou à soberania nacional. As redes sociais e big techs desempenham um papel central nesse processo, permitindo que narrativas sejam disseminadas em escala massiva e com velocidade sem precedentes. Think tanks conservadores, como a heritage Foundation e o ecossistema Atlas Network, muitas vezes financiados por interesses estrangeiros, como os dos Estados Unidos, também operam para fornecer uma base “intelectual” a essas estratégias, promovendo discursos que reforçam a polarização e a desconfiança. Entre as táticas mais recorrentes está a criação de inimigos imaginários, como o suposto “fantasma do comunismo”, usado para justificar ações autoritárias e mobilizar a base conservadora. Essa narrativa, embora sem base na realidade do Brasil do século XXI, serve como um instrumento eficaz para desviar o foco de problemas reais e para relativizar crimes cometidos por líderes autoritários. A relativização dos crimes de Jair Bolsonaro, analisada no tópico anterior, é um exemplo claro de como a guerra cultural atua para moldar a opinião pública em benefício de interesses autoritários.

Além disso, a guerra psicológica amplifica esses efeitos ao desestabilizar emocionalmente a população e enfraquecer a confiança nas instituições. A disseminação de desinformação e discursos de ódio nas redes sociais cria um ambiente de constante tensão e incerteza, minando os alicerces da democracia. A combinação dessas táticas cria um terreno fértil para a normalização de práticas autoritárias, como ataques à imprensa, à Justiça e a lideranças políticas. O impacto dessa guerra cultural e psicológica na sociedade brasileira é devastador. Ao reforçar divisões e polarizações extremas, ela enfraquece o tecido social e inviabiliza o diálogo democrático. Mais preocupante ainda, essas estratégias abrem caminho para que regimes autoritários consolidem seu poder, criando uma sociedade onde a verdade é constantemente questionada e onde os valores democráticos se tornam frágeis e negociáveis.

O descompasso entre o tempo da justiça e o tempo das operações psicológicas e da guerra cultural agrava ainda mais os desafios enfrentados pela democracia brasileira. Enquanto a justiça, em sua lógica deliberativa, opera com a necessária lentidão para garantir o devido processo legal, as estratégias de guerra cultural e psicológica se aproveitam da rapidez da circulação de informações para moldar narrativas e influenciar percepções públicas. Essa assimetria temporal é explorada pela extrema-direita para relativizar crimes, consolidar apoios e deslegitimar ações judiciais antes mesmo que possam ser concluídas. No contexto brasileiro, essa dinâmica se dá de forma explícita: denúncias graves contra Jair Bolsonaro e seus aliados, como o plano para assassinar lideranças democráticas, são ressignificadas quase instantaneamente por meio de campanhas coordenadas nas redes sociais, pela mídia mainstream e discursos de figuras públicas. Enquanto a justiça se dedica a investigar e fundamentar as acusações, a opinião pública já é bombardeada com versões distorcidas dos fatos, muitas vezes minimizando ou desqualificando os crimes. Isso evidencia como o tempo da justiça, quando comparado à velocidade das operações psicológicas, corre contra a democracia e enfraquece sua capacidade de proteger os valores republicanos. Para preservar a democracia em tempos de hiperconectividade, é essencial reconhecer que a guerra cultural e psicológica não apenas deformam a percepção pública, mas também corroem a legitimidade da própria justiça. A defesa da democracia exige não apenas rigor investigativo, mas também estratégias que confrontem a rapidez e o impacto das narrativas construídas por aqueles que desejam subverter o Estado de Direito.

As Forças Armadas e o Risco de Golpismo

As Forças Armadas brasileiras sempre desempenharam um papel central na política nacional, seja como força repressora durante a ditadura militar ou como ator influente em momentos de crise institucional. No entanto, desde a redemocratização, o envolvimento direto dos militares na política havia sido, até recentemente, amplamente contido. A ascensão de Jair Bolsonaro, um ex-capitão do Exército com um discurso abertamente autoritário, trouxe os militares de volta ao centro do poder, reabrindo feridas históricas e acentuando divisões internas. Dentro das Forças Armadas, há hoje uma clara disputa entre setores que defendem a democracia republicana e grupos alinhados a agendas golpistas. Essa divisão ficou evidente durante e após o governo Bolsonaro, quando militares ativos e da reserva foram associados a discursos e práticas que desafiavam a ordem democrática. Declarações recentes como as do general Hamilton Mourão, ex-vice-presidente, que sugerem que “a situação do Brasil não pode ser resolvida dentro das regras convencionais”, alimentam suspeitas de que há setores das Forças Armadas dispostos a apoiar medidas autoritárias. O risco de insurreições ou movimentos desestabilizadores dentro dos quartéis não deve ser subestimado. A extrema-direita, com apoio de militares golpistas, utiliza estratégias de guerra híbrida e psicológica para corroer a legitimidade do governo Lula. Por meio de redes sociais e canais de desinformação, narrativas anticomunistas e discursos de “salvação da pátria” são disseminados, criando um ambiente de constante tensão e desconfiança nas instituições democráticas.

Além disso, as Forças Armadas têm sido historicamente utilizadas como instrumento das elites conservadoras, que as veem como um escudo contra governos progressistas. Essa relação ficou evidente durante o governo Bolsonaro, quando interesses econômicos e políticos das elites foram protegidos e amplificados por militares que ocupavam cargos estratégicos. No governo Lula, essa mesma aliança conserva um caráter ameaçador, enquanto busca minar as políticas desenvolvimentistas e soberanas do governo. O cenário atual reflete um perigo constante: sem um controle firme sobre as Forças Armadas e um esforço para reafirmar seu compromisso com a ordem democrática, a ameaça de insurreições e golpes permanecerá como um fantasma sobre a estabilidade do Brasil. A combinação de divisões internas, influência de elites conservadoras e uso de guerra psicológica nas redes cria uma tempestade perfeita para a desestabilização, exigindo vigilância e ação coordenada para preservar a democracia. 

As Forças Armadas brasileiras enfrentam atualmente uma profunda divisão interna, que compromete sua coesão e mancha sua imagem institucional. Grupos como os Clubes Militares têm emitido declarações que, embora apresentadas como defesa de valores democráticos, podem ser interpretadas como ameaças à estabilidade institucional. Em nota recente, a Comissão de Interclubes Militares expressou preocupação com a exposição de chefes militares associados a atos que supostamente atentaram contra o Estado Democrático de Direito, enfatizando a necessidade de processos conduzidos com responsabilidade e imparcialidade. Essas manifestações refletem a tensão existente entre setores das Forças Armadas e as instituições democráticas, evidenciando a urgência de reafirmar o compromisso militar com a ordem constitucional e a estabilidade do país.

O Brasil como Alvo do Conservadorismo Global

O conservadorismo global, liderado em grande parte pelos Estados Unidos, tem na América Latina um de seus principais focos de intervenção estratégica. O Brasil, como maior potência econômica e geopolítica da região, ocupa um lugar central nessa disputa, sendo alvo de ações que buscam conter projetos desenvolvimentistas e reforçar a dependência econômica e política em relação às potências ocidentais. Esse interesse é amplificado no contexto da ascensão da extrema-direita global, que enxerga na desestabilização de governos progressistas uma oportunidade para expandir sua influência. A relação entre o conservadorismo norte-americano e o bolsonarismo é um exemplo claro dessa dinâmica. Think tanks como a Heritage Foundation têm desempenhado um papel central na formulação de estratégias para fortalecer agendas autoritárias, incluindo o apoio ao Project 2025, que prevê uma radicalização das políticas conservadoras nos EUA e sua exportação para países aliados. A possível reeleição de Donald Trump em 2025 representa um risco significativo para o Brasil, uma vez que sua administração anterior já demonstrou alinhamento ideológico e político com Jair Bolsonaro e seus aliados.

Ferramentas como redes sociais e big techs têm sido fundamentais para a execução dessas estratégias de desestabilização. Plataformas como X (antigo Twitter), sob a gestão de Elon Musk, têm favorecido a amplificação de narrativas conservadoras e autoritárias. Esse cenário é particularmente preocupante diante do embate direto entre Musk e o governo Lula, incluindo o ministro Alexandre de Moraes, que busca responsabilizar plataformas por seu papel na disseminação de desinformação e no enfraquecimento da democracia. Historicamente, os Estados Unidos sempre trataram o Brasil e a América Latina como “quintais” geopolíticos. Essa visão colonialista, que remonta à Doutrina Monroe, persiste na contemporaneidade, adaptada às novas ferramentas de guerra híbrida e psicológica. As intervenções norte-americanas na política brasileira, ainda que sutis, refletem uma tentativa de manter o controle sobre uma região estrategicamente vital para seus interesses econômicos e de segurança. O governo Lula enfrenta uma pressão constante para reverter essa lógica de submissão e reafirmar a soberania brasileira. No entanto, essa tarefa é dificultada pela aliança entre elites locais e grupos conservadores globais, que utilizam todas as ferramentas disponíveis para minar a estabilidade do governo e impedir a consolidação de um projeto nacional soberano e desenvolvimentista. A ameaça de desestabilização contínua é real e reforça a necessidade de vigilância e ação estratégica para proteger a democracia brasileira em um contexto de crescente agressividade do conservadorismo global.

Esse cenário reflete diretamente o tema central deste artigo: o descompasso entre o tempo da justiça e a velocidade das estratégias de desinformação e manipulação narrativa, amplificadas por atores globais. A articulação entre o conservadorismo norte-americano e a extrema-direita brasileira evidencia como o tempo da opinião pública é manipulado por operações de guerra híbrida, enquanto o sistema de justiça, preso a seus próprios tempos deliberativos, luta para reagir de forma eficaz. Ao explorar a desinformação e a relativização de crimes por meio de redes sociais e narrativas construídas, essas forças conservadoras moldam percepções antes que as investigações e processos judiciais possam ser concluídos. Esse processo mina não apenas a credibilidade do governo desenvolvimentista de Lula, mas também a capacidade da justiça de exercer seu papel de forma plena. Assim, o Brasil continua exposto a pressões externas que ameaçam sua soberania e a estabilidade de sua democracia, enquanto o tempo da justiça permanece em desvantagem em relação à velocidade das operações psicológicas e informacionais.

A Justiça e o Risco da Postergação

O tempo da justiça é essencialmente lento, guiado por princípios como o devido processo legal e a necessidade de uma análise criteriosa das provas. No entanto, essa lentidão, embora fundamental para garantir a legitimidade das decisões, pode se transformar em um risco para a democracia em contextos de guerra cultural, como estamos presenciando. A postergação de julgamentos e denúncias permite que narrativas manipuladoras sejam disseminadas e consolidem percepções que, muitas vezes, enfraquecem a capacidade de responsabilização das instituições judiciais. O caso da Procuradoria-Geral da República (PGR) e sua decisão de adiar para 2025 a denúncia contra Jair Bolsonaro e aliados é um exemplo claro dessa problemática. A demora em formalizar as acusações contra uma figura central da extrema-direita brasileira dá espaço para que narrativas de “perseguição política” ganhem força. A estratégia bolsonarista de deslegitimar instituições, amplificada por redes sociais e mídias conservadoras, utiliza esse intervalo para ressignificar os crimes e normalizá-los aos olhos de sua base de apoio. Isso não apenas dificulta a aplicação da justiça, mas também compromete sua percepção pública.

Historicamente, a postergação de decisões judiciais em casos de grande repercussão política tem sido utilizada como ferramenta de desestabilização. No Brasil, exemplos como o mensalão e a Lava Jato mostram como a demora em julgar crimes de alta complexidade pode ser manipulada para criar narrativas polarizadoras. No cenário global, processos como o impeachment de Donald Trump ilustram como a opinião pública é moldada muito antes que os julgamentos formais sejam concluídos, muitas vezes influenciando seus desfechos. Esse descompasso entre o tempo da justiça e a velocidade das narrativas é um dos principais desafios enfrentados pelas democracias no século XXI. Em um ambiente hiperconectado, onde a opinião pública é moldada em questão de horas, a demora judicial pode minar a confiança nas instituições e relativizar crimes que deveriam ser tratados com rigor. A sociedade, inundada por versões manipuladas dos fatos, arrisca aceitar discursos que deslegitimam a justiça e normalizam a impunidade. Para enfrentar esse dilema, é necessário repensar mecanismos que tornem a justiça mais ágil e eficaz, sem comprometer seus princípios fundamentais. Paralelamente, é imprescindível avançar na regulação de redes sociais e plataformas digitais, garantindo que elas não sejam utilizadas para manipular narrativas e desestabilizar o Estado de Direito. Somente com essas ações será possível reduzir o impacto do descompasso entre o tempo judicial e a formação de opinião pública, protegendo a democracia dos riscos impostos pela guerra híbrida. 

Além da importância imediata de uma regulação efetiva do ambiente virtual, que coíba a disseminação desenfreada de desinformação e manipulação, o inquérito das fake news surge como um instrumento indispensável na luta contra a máquina de ódio da extrema-direita. Ao desarticular as estruturas que sustentam a guerra informacional, ele não apenas reduz o impacto dessas operações na formação da opinião pública, mas também prepara o terreno para que ações judiciais contra golpistas e criminosos sejam efetivamente respaldadas pela sociedade. Sem essa desarticulação, o risco de que essas figuras reconstruam narrativas de vitimização e usem a própria prisão como combustível para novas ondas de instabilidade é imenso. A história recente já demonstrou como a extrema-direita é hábil em transformar derrotas institucionais em discursos que alimentam o ódio e a desconfiança nas instituições nacionais. O inquérito das fake news, portanto, é um passo crucial para impedir que essa dinâmica se repita, fortalecendo o Estado Democrático de Direito e garantindo que a justiça seja aplicada de forma legítima e aceita pela sociedade.

Lawfare: O Tempo da Justiça e o Tempo da Informação

O fenômeno do lawfare — o uso político do sistema de justiça para destruir adversários — é um dos exemplos mais contundentes do descompasso entre o tempo jurídico e o tempo da informação. Trata-se de uma prática que explora a lentidão da justiça para maximizar os efeitos da manipulação narrativa, usando acusações infundadas ou politicamente motivadas para destruir a reputação de figuras públicas. Mesmo após a absolvição ou o arquivamento de processos, a marca deixada por esses ataques dificilmente pode ser removida da memória coletiva, especialmente em um mundo hiperconectado onde as informações se propagam com velocidade avassaladora. No Brasil, o caso mais emblemático de lawfare é o do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Condenado em um processo repleto de irregularidades, Lula foi preso e teve sua imagem atacada durante anos. Embora suas condenações tenham sido anuladas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que reconheceu a parcialidade do então juiz Sergio Moro e as violações processuais cometidas, a percepção pública sobre sua figura continua polarizada. Para muitos, a narrativa construída durante o período de sua prisão permanece como verdade, ilustrando como o tempo da justiça não é capaz de acompanhar a velocidade com que informações — e desinformações — moldam a opinião pública. Outro exemplo significativo é o da ex-presidente Dilma Rousseff. Embora não tenha sido formalmente condenada judicialmente, a narrativa construída em torno de seu impeachment, amplamente considerada um golpe parlamentar, destruiu sua reputação pública. Mesmo após análises históricas e jurídicas demonstrarem a fragilidade das acusações de “pedaladas fiscais”, a estigmatização de sua imagem como “incompetente” persiste na sociedade, reforçando os efeitos destrutivos do lawfare.

Esses exemplos demonstram a covardia do método, que não busca apenas a punição judicial, mas sim a destruição moral e política de seus alvos. O lawfare é eficaz porque, ao contrário da justiça, que opera dentro de prazos e formalidades, a manipulação narrativa ocorre em tempo real, atingindo rapidamente a opinião pública. Essa dinâmica expõe uma falha estrutural no sistema judiciário, que, ao não acompanhar a velocidade da hiperconectividade, acaba por se tornar cúmplice involuntário de estratégias autoritárias. O impacto dessas práticas vai além dos indivíduos perseguidos. Ao permitir que o lawfare destrua reputações e deslegitime adversários políticos, a justiça compromete sua própria credibilidade perante a sociedade. Essa realidade ressalta a urgência de reformas estruturais no sistema jurídico, que devem incluir tanto mecanismos para impedir a judicialização política quanto medidas para lidar com o impacto das narrativas formadas nas redes sociais e nos meios de comunicação. Em um mundo onde a informação viaja na velocidade da luz, é imprescindível que o sistema de justiça encontre formas de proteger a integridade de seus processos e a reputação de seus cidadãos. O lawfare, mais do que uma prática covarde, é um alerta para a necessidade de uma justiça ágil, transparente e preparada para os desafios do século XXI.

Conclusão

O descompasso entre o tempo da justiça e o tempo da informação é um dos maiores desafios enfrentados pelas democracias contemporâneas. Em uma era marcada pela hiperconectividade e pela velocidade da circulação de narrativas, a lentidão inerente ao sistema judiciário, embora essencial para garantir o devido processo legal, pode ser explorada por forças autoritárias para desestabilizar instituições, relativizar crimes e manipular a opinião pública. No Brasil, exemplos como o lawfare e as estratégias da extrema-direita para ressignificar crimes demonstram como esse descompasso é usado de forma calculada para enfraquecer a democracia. A postergação de decisões judiciais, como nas denúncias contra Jair Bolsonaro e seus aliados, ilustra como a demora judicial permite que narrativas manipuladoras ganhem força, dificultando não apenas a responsabilização dos culpados, mas também a reconstrução da confiança nas instituições. Este artigo mostrou que, sem reformas estruturais no sistema de justiça e sem uma regulação efetiva das redes sociais e plataformas digitais, a democracia continuará vulnerável às estratégias de guerra híbrida e psicológica. É imperativo que o Estado reforce sua capacidade de agir de maneira ágil e eficaz, sem prescindir dos princípios que sustentam o Estado de Direito. Ao mesmo tempo, é crucial que se desarticulem as estruturas que sustentam a máquina de desinformação e ódio, como no inquérito das fake news, um passo fundamental para neutralizar a ameaça autoritária. Por fim, é necessário reconhecer que a luta pela democracia vai além da justiça ou da regulação das plataformas digitais. Ela exige um esforço coletivo de toda a sociedade para resistir às narrativas que tentam normalizar o inaceitável e deslegitimar as instituições. Sem essa vigilância constante e sem uma resposta proporcional à velocidade e ao impacto das operações psicológicas e informacionais, o risco de que a justiça seja permanentemente desacreditada e a democracia enfraquecida continuará a pairar sobre o Brasil e o mundo.

Reynaldo Aragon Gonçalves é jornalista, Coordenador Executivo da Rede Conecta de inteligência Artificial e Educação Científica e Midiática, é membro pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT DSI).

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1 Comentário

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  1. No entanto, é espantoso como a justiça foi capaz de se ajustar à velocidade das modernas mídias ao julgar, condenar e encarcerar Lula em 2018. Instituições são entidades humanas e humanos são maleáveis quando querem…

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