Pacto pelo autoritarismo, por Luis Felipe Miguel

De fato, o pacto “responde” às ruas do dia 26, na medida em que elas deram a dimensão da força de Bolsonaro: nem tão forte que possa se impor sobre todos, nem tão fraco que possa ser posto de escanteio.

do blog do Demodê

Pacto pelo autoritarismo

por Luis Felipe Miguel

Na manhã de ontem, os presidentes da República, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal se reuniram e decidiram firmar um “pacto” – que a imprensa definiu, alternativamente, como pacto “pelas reformas”, “para retomar o crescimento” ou “em resposta aos protestos”.

Os protestos a serem respondidos, logo ficou claro, eram os do dia 26 de maio, convocados por apoiadores de Jair Bolsonaro. Aqueles do dia 15 foram ignorados, embora tenham sido bem maiores. Nada do que vazou sobre os termos do pacto se refere, ainda que de forma remota, à garantia do financiamento da educação, à defesa da liberdade de cátedra ou à permanência da autonomia universitária. Pelo contrário, o carro-chefe era a aprovação da reforma da Previdência, em prejuízo de trabalhadores e pensionistas.

Aparece também uma reforma tributária indeterminada, que dificilmente aponta em boa direção – afinal, já durante a campanha, Paulo Guedes propunha dar cabo de qualquer progressividade na cobrança de impostos. E ainda a questão da “segurança pública”, o que deve indicar o pacote de ampliação da violência do Estado de Sérgio Moro.

De fato, o pacto “responde” às ruas do dia 26, na medida em que elas deram a dimensão da força de Bolsonaro: nem tão forte que possa se impor sobre todos, nem tão fraco que possa ser posto de escanteio. Assim, a coalizão golpista, que chegou ao poder em 2016 e que teve seu sempre frágil equilíbrio interno desorganizado com as eleições de 2018, senta-se para redefinir seu programa comum.

As linhas centrais do programa continuam as mesmas: desmanche da Constituição de 1988, redução do espaço de vigência da democracia, edificação de um modelo de dominação sem qualquer propósito de conciliação com os dominados.

Parceira majoritária da coalizão, a burguesia se fez presente na reunião por meio de Paulo Guedes, mas nem precisava. Seus interesses dominam a agenda. O fim da previdência social promete lucros colossais para o capital financeiros – e estamos falando de “colossais” mesmo para os padrões dos bancos. O setor associado ao capital estrangeiro vibra com a acelerada desnacionalização da economia. O chamado “agronegócio”, com o fim das políticas de proteção ambiental, a agressão aos povos indígenas e a permissão, para não dizer incentivo, à violência contra o movimento camponês. Com o aumento da taxa de exploração do trabalho, lucram todos, mas a verbalização desta agenda cabe hoje sobretudo ao comércio, por meio de figuras tão bizarras quanto Flávio Rocha ou Luciano Hang (”o véio da Havan”).

Chama a atenção o fato de que o STF sente-se à mesa para negociar esse novo pacto – ele, cuja função seria a de guardião do pacto já em vigor, que é a própria Constituição. Até jornalistas de direita foram obrigados a apontar o absurdo que é uma corte participar de um pacto em favor de medidas cuja constitucionalidade ela terá que analisar depois.

Talvez um presidente mais preparado e mais zeloso da imagem da instituição do que Toffoli evitasse tamanha exposição, mas o comprometimento com o retrocesso não vem de hoje. Talvez simplesmente tenha chegado o momento de formalizar o lendário “grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo”. E em termos ainda piores do que aqueles que Jucá sugeria.

Coincidência ou não, logo após a reunião do pacto houve outra, para Guedes e Maia avançarem na Câmara pautas que vão desde a restrição do direito de greve até a possibilidade de redução dos salários dos servidores públicos. De tarde, foi a vez do advogado geral da União pedir ao STF autorização para que a polícia reprima discussões políticas dentro das universidades.

De fato, o projeto de redução brutal de direitos, ampliação das desigualdades e banimento político de todo o campo popular precisa de uma escalada repressiva para se manter de pé. É o complemento necessário.

Confirma-se o que escrevi em 2016: o golpe iniciou um período de transição à ditadura.

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O clã Bolsonaro, no entanto, tem uma fatura a cobrar por sua aceitação do pacto. Está em julgamento mais um pedido de Flávio para que sejam interrompidas as investigações sobre ele e Queiroz. Não se espere de Jair o altruísmo de sacrificar a prole, os brothers de Rio das Pedras e, no final, a si mesmo para garantir a unidade da classe dominante brasileira.

Por falta de comunicação ou então por sutil estratégia, enquanto os chefes dos poderes tomavam café da manhã, as bancas de jornal vendiam a edição do Valor Econômico com uma entrevista do general Augusto Heleno – o cérebro militar do governo – em que ele praticamente bradava por uma ditadura aberta, sob o comando de Bolsonaro. Em suma, enquanto o presidente contemporizava, seu mentor dobrava a aposta.

No fim do dia, levado uma vez mais por sua masculinidade frágil e sua mentalidade de pré-adolescente no parquinho, Bolsonaro não resistiu a tentar se afirmar diante de Rodrigo Maia: “minha caneta é maior do que a sua”. Não se trata apenas de uma manifestação de despreparo e imaturidade, mas de uma necessidade na relação que ele mantém com sua base militante. O “mito” tem que se mostrar forte, inflexível, avesso à negociação, “alfa”.

Sem essa base, Bolsonaro torna-se descartável. Com ela, sua relação com os outros integrantes da coalizão golpista sempre será tumultuosa.

A despeito destes problemas, eles estão conseguindo levar adiante um ponto central de seu projeto: bloquear qualquer possibilidade de que o campo popular seja aceito como interlocutor político. Somos levados a crer que a política brasileira está resumida a três caminhos: a insanidade prepotente do ex-capitão, o autoritarismo matreiro do vice ou o republicanismo de araque de Rodrigo Maia.

O campo democrático é quase um espectador destes embates. O centro do poder, com o apoio fundamental da mídia, trabalha para transformá-lo – com seus sindicatos e associações, com suas manifestações de rua, com suas bancadas parlamentares, governadores e prefeitos, com seus 47 milhões de votos em 2018 – em pária da política brasileira.

Não é possível aceitar que o único obstáculo ao retrocesso seja a incapacidade de ação unida da coalizão golpista. A bateção de cabeça entre eles permite ganhar tempo, mas esse tempo tem que ser aproveitado para reorganizar forças e interromper o avanço autoritário. As manifestações do 15M mostraram que isso é possível.

(29 de maio de 2018.)

Luis Felipe Miguel

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